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Janus 2004



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As crises e as reformas da administração da justiça

João Pedroso e João Paulo Dias *

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Portugal teve, na sua história recente dois momentos de crise do sistema judicial – uma após 1974 e a outra no início dos anos 90. A primeira relacionou-se com a defesa dos direitos dos cidadãos, a segunda com a dura crítica da ineficiência, inacessibilidade, morosidade e falta de transparência dos tribunais, comum a vários países europeus. Esta situação teve origem na intensa procura dos tribunais pelas empresas, em regra para demandar os consumidores por atraso no pagamento de dívidas. Alguns governos têm optado como solução pela “administração tecnocrática da justiça”.

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O direito e a administração da justiça nas sociedades contemporâneas desenvolvidas têm estado sujeitos a uma transformação acelerada. Todos nós partilhamos a sensação de que o mundo sofreu um processo de “juridificação” da sociedade, ou seja, a “extensão dos processos jurídicos a um número crescente de domínios da vida económica e social” (Friedman, 1993: 320). Assistimos à denominada “explosão do direito”, ao aparecimento de um número excessivo de processos, passando por uma profunda ansiedade quanto à “burocratização do mundo”, à “juridificação das esferas sociais” e à “colonização do mundo-da-vida” (1).

A crise e transformações do Estado-Providência lançaram um grande debate sobre a crise e as transformações do direito, designadamente entre a concepção do direito como sistema auto-referencial e autopoiético e a concepção do direito como construção social, produzido num contexto social.

 

Os dois momentos de crise do sistema judicial português

Em Portugal é possível identificar nas últimas décadas dois momentos de crise do sistema judicial. O primeiro ocorreu nos anos setenta – após o 25 de Abril de 1974 – durante o período de transição democrática e a consequente reforma do judiciário que teve como objectivos principais reintegrar os Tribunais no Estado de Direito emergente e satisfazer as novas procuras decorrentes, por exemplo, da judicialização dos conflitos familiares ou laborais.

O segundo momento de ruptura ocorreu no início dos anos noventa e deu origem a uma crise da justiça de natureza diferente, em que não predomina a defesa dos direitos dos cidadãos, mas sim a sua “colonização” pela cobrança de dívidas, tanto na jurisdição cível (acções declarativas e executivas), como na penal (cheques sem provisão) que é acompanhada nas zonas urbanas pelo crescimento do crime de furto e de roubo, em regra relacionado com o consumo de estupefacientes.

A par de algum protagonismo dos tribunais (crimes de políticos) o seu desempenho é, assim, abafado e banalizado por uma explosão de litigiosidade “rotineira” e por uma insuficiência de alocação de recursos para responder a este aumento da demanda (Santos et al. 1996; Pedroso e Cruz, 2000).

 

À procura de respostas: as tendências de reforma da justiça

Os tribunais têm vindo a ser duramente criticados, particularmente em Itália, França, Portugal e Espanha, pela sua ineficiência, inacessibilidade, morosidade, custos, falta de responsabilidade e de transparência, privilégios corporativos, grande número de presos preventivos, incompetência nas investigações, entre outras razões.

No estudo realizado por Santos et al. (1996), sobre o uso dos tribunais em Portugal, emergiu uma imagem muito elucidativa acerca da grande distância e desconfiança dos cidadãos do sistema judicial, e do baixo grau de satisfação nas situações em que estiveram envolvidos em processos judiciais. Esta situação de ruptura é comum à generalidade dos denominados países desenvolvidos e é originada essencialmente num crescimento explosivo da procura dos tribunais pelas empresas, que, como litigantes frequentes, demandam, em regra, cidadãos consumidores, que não pagam atempadamente os bens e serviços que adquirem.

Para evitar a ruptura dos sistemas judiciais, os diversos governos têm promovido uma pluralidade de reformas designadamente da administração judicial e da justiça cível. Assim, ao longo dos últimos anos, as reformas da administração da justiça têm balançado, nos países periféricos, entre a indiferença e o crescente interesse das agências internacionais em aí implantar sistemas judiciais (Santos, 1999) e, nos países centrais e semiperiféricos, entre o que se pode designar por uma “administração tecnocrática da justiça” e por “desjudicialização da justiça” (Santos, 1982).

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A informalização e desjudicialização: a construção de um sistema integrado de resolução de litígios

Os conceitos de justiça alternativa ou informal de resolução de litígios nasceram “fora do direito estadual” e corresponde-lhes um conjunto de práticas e de processos, mais ou menos informais de resolução de conflitos, com o recurso, em regra, a uma terceira parte, que permite prevenir ou resolver o referido litígio. Este tipo de justiça privilegia formas de justiça mais ou menos espontâneas geradas no seio das comunidades, privilegiando os meios da negociação e consenso.

O desenvolvimento destes processos alternativos ou informais de resolução de litígios constitui um movimento de pensamento aparecido nos anos 60/70, que questionava a centralidade dos modos jurisdicionais em matéria de regulação social, preferindo os modos informais, descentralizados, fazendo apelo à participação activa das partes e dos cidadãos na resolução dos seus conflitos (Bonafé-Schmitt in Arnaud, 1993: 11).

O conceito de desjudicialização, por seu turno, é concebido no quadro do direito estadual e do sistema judicial como resposta à incapacidade de resposta dos tribunais à procura (aumento dependências), ao excesso de formalismo, ao custo, à “irrazoável” duração dos processos e ao difícil acesso à justiça. Os processos de desjudicialização têm-se desenvolvido essencialmente por duas vias. Por um lado, na simplificação processual e na possibilidade de recurso dos tribunais, dentro do processo judicial, a meios informais e a “não-juristas” para a resolução de alguns litígios. Por outro lado, através da transferência da competência da resolução de um litígio do tribunal para instâncias não judiciais ou para o âmbito de acção das “velhas” ou “novas” profissões jurídicas, ou mesmo das novas profissões de gestão e de resolução de conflitos.

O movimento de reformas de administração da justiça de natureza informal e desjudicializadora inclui-se num processo complexo de juridificação e desjuridificação das sociedades modernas e revela uma permanente ambivalência. Umas vezes é de iniciativa do Estado, outras vezes tem origem na comunidade. Ora é uma justiça de “segunda classe”, ora é uma justiça mais próxima dos cidadãos. Ou ainda, tanto tem como função “descarregar” os tribunais da “litigação de massa” e melhorar o seu desempenho (cobrança não judicial de dívidas) como desenvolve uma perspectiva de integração social, reduzindo tensões sociais, criando solidariedades através da participação dos cidadãos e promovendo o seu acesso ao direito e à justiça.

A informalização da justiça assenta, por um lado, na criação de uma “justiça alternativa ou informal” decorrente do movimento Alternative Dispute Resolution (Resolução Alternativa de Litígios), em regra oriundo das organizações sociais e económicas – de natureza plural quanto aos meios, processos, e litígios que resolve – e no desenvolvimento do paradigma do consenso, reparação e negociação e da “justiça em comunidade”. Por seu lado, a desjudicialização consiste na simplificação processual e no recurso a meios informais para acelerar ou melhorar o desempenho dos processos judiciais; na transferência de competências de resolução de litígios para instâncias não judiciais e na transferência de competências de resolução de litígios para “velhas” ou “novas” profissões jurídicas ou de gestão/resolução de conflitos.

Neste último movimento de reforma(s) judicial(is) podemos conceber a existência de um sistema integrado de resolução de litígios, em que os tribunais não são o único recurso de uma política pública de justiça, mas integram uma nova relação (alternativa, complementar e/ou substitutiva) entre o judicial e o não judicial. Este novo modelo de justiça, que integra diversos meios de resolução de litígios, deve ser construído de modo a ser mais democrático, mais acessível e mais eficiente.

Verifica-se, por um lado, uma tendência de informalização e de desjudicialização dos litígios privados, laborais e de consumo, e a transformação da justiça penal, com o aparecimento de um novo paradigma de diversão, descentralização, consenso e oportunidade. Por outro lado, observa-se o (re)nascimento da Justiça de Paz e a transformação das profissões jurídicas em função da evolução das sociedades e das reformas da administração da justiça, que se encontram em curso.

 

Conclusão

A(s) reforma(s) da justiça estão, cada vez mais, interligadas com os novos sistemas de acesso ao direito e à justiça, pelo que deverão ter, por um lado, um novo figurino institucional e jurídico que integre todas as respostas existentes e a criar, no âmbito da informação, da consulta e do patrocínio jurídico e ainda de entidades não judiciais que previnam ou que resolvam litígios. Por outro lado, esta nova filosofia deve ser construída de modo a que, no respeito pela independência da profissão dos advogados, se conceda às funções do regime de apoio judiciário alguma continuidade temporal, possibilitando que o desempenho dessas funções seja feito com a devida formação, qualidade, adequadamente remunerado e sujeito a um controlo externo, por uma entidade à qual sejam atribuídas essas competências.

O novo sistema integrado de resolução de litígios tem como consequência a assunção e reconhecimento pelo Estado duma política pública de justiça, que inclui os tribunais judiciais e o denominado “pluralismo jurídico e judicial”, ou seja, que reconhece também aos meios não judiciais legitimidade para dirimir litígios. A informalização da justiça e a desjudicialização, incluindo todo o movimento ADR, constituem, assim, caminhos da reforma da administração da justiça desde que defendam a igualdade das partes e promovam o acesso ao direito. Só deste modo esta multiplicidade de processos pode tornar a justiça mais democrática.

 

Informação Complementar

Os tipos mais comuns de reforma da administração da justiça

Mais meios...

O primeiro é defendido, em regra, pelos profissionais e a solução reside no aumento quantitativo dos recursos (“mais tribunais”, “mais juízes”, “mais funcionários”) e tem como obstáculo a incapacidade financeira do Estado para alargar indefinidamente o orçamento da justiça.

 

Melhor gestão...

O segundo é essencialmente defendido pelos cientistas sociais, administradores e políticos, para os quais a solução é uma reforma “tecnocrática e gestionária”, que consiste numa melhor gestão dos recursos, o que envolverá alterações na divisão do trabalho judicial, a delegação do trabalho de rotina e um processo judicial mais expedito. Tais soluções tendem a ser inviabilizadas por magistrados e advogados, mais preocupados com a eventual perda do controlo da actividade judicial, e que resistem de forma passiva através das rotinas estabelecidas e dos interesses que elas acabam por criar e reproduzir.

 

Mais inovação e tecnologia...

O terceiro aposta na reforma da “inovação e tecnologia”, na concepção e gestão do sistema judicial, apetrechando-o com sofisticadas inovações técnicas, que vão do processamento automático dos dados ao uso generalizado da tecnologia do vídeo, das técnicas de planeamento de longo prazo, à elaboração de módulos de cadeias de decisão. Estas reformas envolvem a criação de novos perfis profissionais e novas formas processuais, pelo que, se aplicadas, produzirão alterações profundas na organização do trabalho e no actual sistema de autoridade e hierarquia.

 

As “alternativas” aos tribunais... a informalização e a desjudicialização

O quarto tipo de reformas caracteriza-se pela elaboração de “alternativas” ao modelo formal e profissionalizado que tem dominado a administração da justiça. Os novos modelos emergentes têm constituído o movimento ADR (Alternative Dispute Resolution, ou mais recentemente, Amicable Dispute Resolution), consistindo na criação de processos, instâncias e instituições descentralizadas, informais e desprofissionalizadas.

O desenvolvimento de meios alternativos de resolução de litígios, através do mero incentivo à realização de acordos extrajudiciais, ou de processos mais institucionalizados, que desviam a procura dos tribunais para outras instâncias, públicas ou privadas.

Trata-se de uma espécie de privatização da justiça, que por isso terá como limite os conflitos que versem sobre os denominados direitos indisponíveis. Este movimento de informalização e desjudicialização ensaia a construção de uma nova relação entre o judicial e o não judicial na administração da Justiça, dando conta, por um lado, da emergência de uma justiça informal ou comunitária e, por outro lado, das tendências do legislador em transferir competências do judiciário para entidades administrativas, privadas ou mistas, ao mesmo tempo que, em função da evolução da sociedade e do mercado e das reformas judiciais em curso, se vive um período de transformação acelerada das profissões jurídicas, reconfigurando-se as suas competências.

__________
1 Galanter (1993: 103), citando Macneil (1984-1985); Galanter (1983); Teubner (1987).

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* João Pedroso

Investigador no Centro de Estudos Sociais e Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

* João Paulo Dias

Investigador no Centro de Estudos Sociais e Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.


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Bibliografia

ARNAUD, André-Jean. 1993. “Alternatif (Droit) – Alternative (Justice)”, in Arnaud, André-Jean (dir.). 1993. Dictionnaire encyclopédique de théorie et desociologie du droit. 2.ª edição. Paris: LGDJ, 17-20.

FRIEDMAN, Lawrence M. 1993. “Juridisation (processus de)”, in Arnaud, André-Jean (dir.). Dictionnaireencyclopédique de théorie et de sociologie du droit. 2ª edição. Paris: LGDJ, 319-322.

PEDROSO, João; CRUZ, Cristina. 2000. A arbitragem institucional: um novo modelo de administração de justiça – o caso dos conflitos de consumo. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, JoãoPaulo. 2001. Percursos da informalização e da desjudicialização– por caminhos da reforma da administração dajustiça (análise comparada). Coimbra: Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, JoãoPaulo. 2002. O Acesso ao Direito e à Justiça: um direito fundamentalem questão. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/ Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

SANTOS, BoaventuradeSousa. 1999. “The Gatt of law and democracy: (Mis)trusting the global reforms of courts”. Oñati Papers, 7, 49-86.

SANTOS, Boaventura de Sousa. 1982. “O direito e a comunidade: as transformações recentes da natureza do poder do Estado nos países capitalistas avançados”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 10. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 9-40.

SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João; MARQUES, Maria ManuelLeitão; FERREIRA, Pedro. 1996. Os tribunaisnas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento/CES/CEJ.

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