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Onde estou: | Janus 2004 > Índice de artigos > O direito e a justiça em acção > O poder judicial e o exercício da justiça > [O sistema de extradição em mutação: perspectivas europeias] | |||
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Data, aliás, dessa altura o primeiro tratado de extradição português, celebrado em 1360 entre o rei D. Pedro I de Portugal e o rei D. Pedro I de Castela, tencionando Portugal obter a extradição dos dois assassinos de D. Inês de Castro. A troca de fugitivos em causa foi já qualificada de imoral, uma vez que – sem garantias de defesa nem aparência de processo – se procedeu a um assassinato dos cativos trocados.
Panorâmica contemporânea Muito evoluiu desde então o instituto, estando hoje a sua configuração jurídica desenhada numa panóplia vasta de tratados de extradição bilaterais, convenções multilaterais e, naturalmente, de leis internas (incluindo disposições constitucionais como a do artigo 33.º da Constituição portuguesa), reflexo também da crescente internacionalização e organização do crime e da respectiva necessidade de aprofundamento da cooperação judiciária internacional em matéria penal. A globalização, abalando a soberania dos Estados, torna as suas influências, capacidade de controlo e constrangimento, por vezes, inoperantes face a redes transnacionais desafiadoras, surgindo muitas vezes como mero interlocutor de um diálogo plural. Dado essencial e distintivo neste século XXI são também os novos meios e inovadores instrumentos de cidadãos e criminosos, sendo que no seio do desenvolvimento da nova ordem mundial, em que se nos depara uma erosão acentuada do Estado, as redes de capitais, de informação, universitárias, de defesa, religiosas e, também, de crime constituem efectivas forças transnacionais intervenientes nas relações internacionais, desafios a que os Estados, em resposta, correspondem com a construção de edifícios como o do espaço de liberdade, segurança e justiça. Numa Europa aberta e assente em liberdades como a de circulação, exige-se que o espaço judiciário europeu acompanhe o aprofundamento da própria UE. Este espaço tem-se caracterizado por uma evolução faseada que pode ser enquadrada em etapas que têm por base os instrumentos normativos do Conselho da Europa e uma cooperação política entre os Estados membros que antecede o Tratado de Maastricht. Como já antes foi dito, é com Maastricht que adquire identidade própria e com Amesterdão que se consolida este universo. Hoje é objectivo assumido pela UE o de facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça (ver Informação Complementar), o que fica internamente reflectido na recente legislação publicada em Portugal: destaque-se a transposição de três decisões-quadro do Conselho, todas de 13 de Junho de 2002, que deram origem a uma lei de combate ao terrorismo (Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto – diploma dirigido a uma aproximação e harmonização da legislação penal dos diferentes Estados membros), a uma alteração ao regime jurídico da cooperação judiciária em matéria penal, introduzindo normas respeitantes a equipas de investigação criminal com elementos de diferentes Estados (Lei n.º 48/2003, de 22 de Agosto) e a uma Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, que aprova o regime jurídico do mandado de detenção europeu (LMDE); realce-se também a publicação da Lei n.º 36/2003, de 22 de Agosto, que estabelece normas de execução da decisão do Conselho da União Europeia que cria a EUROJUST, a fim de reforçar a luta contra as formas graves de criminalidade e regula o estatuto e competências do respectivo membro nacional.
O mandado de detenção europeu Giscard d’Estaing, no Conselho Europeu de Bruxelas de 1977, tenta impulsionar a criação de um espaço jurídico europeu, tendo proposto a celebração de um tratado de uma extradição automática. O Conselho Europeu de Tampere convidou os Estados membros a transformar o princípio de reconhecimento mútuo na “pedra angular” de um verdadeiro espaço judiciário europeu, o que acontece, também, com a decisão-quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho (DQ): esta visa alterar profundamente o actual panorama da extradição entre os Estados membros da UE (e de outros Estados a quem se venha a aplicar), pretendendo, desde logo, substituir as disposições aplicáveis em matéria de extradição de seis instrumentos internacionais – já em 2004 (ver Informação Complementar) – no que respeita a uma aplicação entre Estados membros: a Convenção Europeia de Extradição de 1957 (e respectivos protocolos), a Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo de 1977 (no respeitante à extradição), os artigos 59.º a 66.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, o Acordo entre Estados membros das Comunidades Europeias sobre simplificação e modernização das formas de transmissão dos pedidos de extradição (de 1989), a Convenção relativa ao processo simplificado de extradição entre os Estados membros da UE (de 1995) e a Convenção relativa à extradição entre os Estados membros da UE (de 1996). Será importante verificar agora quais os principais elementos distintivos desta figura – que se visa célere face aos actuais procedimentos de extradição e que se encontra caracterizada enquanto decisão judiciária emitida por um Estado-membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (cfr. n.º 1 do art.º 1.º da LMDE). • Em primeiro lugar, refira-se a eliminação da actuação político-administrativa do Governo: trata-se de um objectivo da DQ a eliminação de possibilidades de actuação que se prendam com questões políticas, de oportunidade, dos diferentes Estados. Ficará, assim, subtraída deste âmbito a gestão da política criminal e administrativa (raison d’Etat) dos Estados membros. • Em segundo lugar, deve nomear-se a “liberalização” da entrega de nacionais: facilitando-se a extradição daqueles, embora com entorses que limitam tal inovação. No caso português, para além das situações a que se refere a Constituição (n.º 3 do art.º 33.º) e a lei (art.º 32.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – LCJMP) veremos assim abrir-se a possibilidade de entrega de nacionais com maior amplitude (cfr. art.º 2.º da LMDE), algo que fica constitucionalmente legitimado pelo n.º 5 do art.º 33.º da Constituição. No entanto, no caso de pedidos para execução de pena ou medida de segurança, fica prevista uma causa de recusa facultativa, o que se acolhe desde que o Estado português se comprometa a executar a pena ou medida de segurança (cfr. al. g) do n.º 1 do art.º 12.º da LMDE); nos casos de pedidos para efectivação de procedimento criminal, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida a Portugal (cfr. al. c) do art.º 13.º da LMDE). • Em terceiro lugar, refira-se a matéria das penas e medidas de segurança perpétuas: deve frisar-se que foi por insistência de Portugal que foi introduzida a norma do n.º 2 do art.º 5.º da DQ, prevendo a possibilidade (ver caixa) de os sistemas jurídicos dos vários Estados membros exigirem garantias com vista à não aplicação ou não execução da pena de prisão perpétua. Assim, no caso português (cfr. al. b) do art.º 13.º da LMDE) só será proferida decisão positiva se estiver prevista no Estado de emissão uma revisão da pena aplicada – a pedido ou, o mais tardar, no prazo de vinte anos – ou a aplicação de medidas de clemência a que o procurado tenha direito com vista a que tal pena ou medida não seja executada, norma esta ancorada no n.º 5 do art.º 33.º da Constituição. • Já no que respeita à pena de morte (ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física) e à excepção de delito político, a exclusão da previsão na DQ como causa de recusa implicaria a impossibilidade da sua previsão e invocação? Qualquer dos casos não se encontra previsto na DQ como constituindo caso de recusa (facultativa ou obrigatória). No entanto, na sequência do n.º 6 do art.º 33.º da Constituição, que sempre se imporia nos casos em concreto, são introduzidas as alíneas d) e e) no art.º 11.º da LMDE, consagrando-se tais situações enquanto causas de recusa de execução do MDE. Note-se que a questão da pena de morte não se encontra expressamente referida na DQ, por não estar prevista no sistema jurídico dos vários Estados membros e, também, por se encontrar abrangida pela norma do n.º 3 do artigo 1.º da DQ (veja-se ainda o considerando 13 da mesma), que ressalva o respeito pelos direitos fundamentais e princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.º do Tratado da União Europeia. Relativamente ao caso da excepção de delito político, também o considerando 12 da DQ deve ser tido em conta, demonstrando que aquela não se alheou de tal problemática (apesar da “despolitização” que se tem verificado existir). • Em quinto lugar, deve fazer-se menção a uma forte limitação ao controlo da dupla incriminação dos factos. Tal entorse, no entanto, limita-se, no caso português (cfr. art.º 2.º da LMDE), ao já previsto como mínimo pela DQ (cfr. art.º 2.º). Diga-se que não se trata aqui de absoluta inovação no plano jurídico, mas o campo de aplicação é vasto, tratando-se de reflexo do princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais já enunciado. Por esta via tornar-se mais difícil beneficiar das diferenças entre os ordenamentos jurídicos nacionais, aspecto para que contribui também muito fortemente a aproximação de legislações (cfr. al. e) do art.º 31.º do Tratado da União Europeia). • Refira-se ainda que derrogações de maior monta ao princípio da especialidade poderiam ter sido introduzidas, não sendo esse o caso português (cfr. art.º 27.º da DQ e 7.º da LMDE). • Note-se, por último, a simplificação obtida relativamente aos elementos que deverão ser remetidos ao Estado de execução (cfr. art.º 8.º da DQ e artigos 3.º e 15.º e seguintes da LMDE).
Nota conclusiva Encontra-se agendada para muito breve a aplicação do regime do MDE aos Estados do alargamento (ver Informação Complementar), pelo que, desde logo por isso, o MDE encontrará uma muito maior dimensão de aplicação territorial. Por outro lado, note-se que diversos instrumentos internacionais foram ultimados por Espanha nos anos de 2000 e 2001, com países como Itália, França, R. U. e Bélgica, apresentando-se nos mesmos soluções próximas ou equivalentes àquelas que agora são implementadas por toda a UE. Assim, cremos que o caminho do acordo bilateral acabará por ser tomado, designadamente no que respeita ao alargamento das fórmulas agora adoptadas face a terceiros com que alguns Estados membros mantenham uma “afinidade” próxima daquela que tem de ser encontrada entre os Estados membros da UE: é a uma plena confiança que nos referimos, quiçá algo mais do que o elevado grau de confiança a que se refere o considerando 10 da DQ citada. A eficácia de tais instrumentos depende, tal como o MDE, da confiança entre os Estados relativamente aos respectivos ordenamentos jurídicos e à aceitação e reconhecimento das decisões dos respectivos tribunais. Registem-se nessa linha as iniciativas de EUA e R. U., que assinaram um novo tratado de extradição em 31 de Março de 2003. Cremos, portanto, que o passo que deu a UE poderá ser um avanço para uma nova etapa da figura da extradição, ficando agora os caminhantes e aqueles que os pensam acompanhar de olhos postos na execução do regime jurídico, que se inicia já em 1 de Janeiro de 2004, e pensando mesmo na possível eliminação futura da extradição dentro do espaço judiciário europeu.
Informação Complementar Diferentes concretizações do mandado de detenção europeu Tratando-se de um objectivo assumido pela UE o de facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, foi nesse sentido disponibilizado um conjunto de instrumentos, entre os quais avulta a possibilidade de adopção de decisões-quadro (cfr. em especial os artigos 29.º, 31.º e 34.º do Tratado da União Europeia). Foi nessa sequência adoptada a decisão-quadro (DQ) n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados membros (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L 190, de 18 de Julho). Deste modo, ficam os Estados membros obrigados a alcançar os resultados visados pela DQ, estando os meios e a forma de o fazer entregues àqueles. No entanto, para além desta realidade e das consequências derivadas da própria interpretação das normas em causa, a DQ permite, numa diversidade de situações, a adopção de diferentes soluções, cuja previsão caberá a cada um dos Estados determinar. É o que acontece em preceitos da DQ como os seguintes: artigo 2.º (eventual sujeição a exigências de verificação da dupla incriminação de algumas condutas subjacentes aos pedidos); 5.º (possibilidade de sujeição da execução do mandado de detenção europeu a uma prestação de determinadas garantias, designadamente em casos de julgamento na ausência do arguido, penas de carácter perpétuo e procedimentos contra nacionais ou residentes do Estado membro de execução); 8.º (contemplando uma eventual aceitação de uma tradução do MDE numa ou em várias outras línguas oficiais das instituições das Comunidades Europeias); 13.º (possibilitando a previsão de que o consentimento na entrega ao Estado membro de execução e a renúncia ao princípio da especialidade podem ser revogados); 27.º (eventual presunção genérica de consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, por uma infracção praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue); e 28.º (eventual presunção genérica de consentimento para a entrega de uma pessoa a outro Estado membro que não o Estado membro de execução por força de um MDE emitido por uma infracção praticada antes da sua entrega). Encontraremos, portanto, na implementação a que os diferentes Estados se obrigaram a realizar até 1 de Janeiro de 2004 (1 de Maio no que respeita aos novos Estados membros), regimes jurídicos próximos, mas podendo divergir em ponto determinantes.
Acordos de cooperação em matéria penal com os EUA Especial relevo no âmbito do tema principal têm os acordos assinados em 25 de Junho de 2003 em Washington D. C. entre a UE e os EUA, referentes ao instituto da extradição e ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal (veja-se a Decisão do Conselho, de 6 de Junho de 2003, relativa à assinatura dos acordos entre a UE e os EUA e respectivos anexos, publicados no Jornal Oficial da União Europeia de 19 de Julho de 2003). Enquadrados na Nova Agenda Transatlântica e no Plano de Acção de Luta Contra o Terrorismo, visam, em especial, o combate àquele fenómeno, ao tráfico de droga e ao crime internacional em geral, e constituem elementos de cooperação e agilização fundamentais, perspectivados por espaços que comungam de problemas próximos. Encontramo-nos perante actos celebrados ao abrigo dos artigos 24.º e 38.º do Tratado da União Europeia (TUE), sendo de realçar que os acordos celebrados de acordo com as condições fixadas nestes preceitos vinculam as instituições da União e, conforme prevê o n.º 5 do art.º 24.º, não vincularão um Estado membro cujo representante no Conselho declare que esse acordo deve obedecer às normas constitucionais do respectivo Estado; os restantes membros do Conselho podem decidir que o acordo seja, contudo, provisoriamente aplicável. Para Portugal, questão de especial relevo colocada por estes acordos é a da extradição para os EUA nos casos em que a pena de morte seja aplicável. Daí uma actuação portuguesa que se apresenta como peça de uma sequência histórica que se inicia, pelo menos, em 1779, com a celebração de um tratado de extradição entre Portugal e Espanha que consagra a exigência da comutação da pena de morte prévia à extradição. Tal procedimento vai também ao encontro das exigências consagradas no seio do Conselho da Europa e, especialmente, das normas constitucionais portuguesas positivadas – veja-se o n.º 6 do artigo 33.º da Constituição, ao qual o legislador constitucional de 2001 quis garantir um ênfase acrescido, pleno de significado, face a outros preceitos que ficam abrangidos pelo novo número 5 do mesmo artigo.* António Delicado Adjunto da Ministra da Justiça. Assistente-Estagiário na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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