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Instituições e crescimento económico A corrente institucionalista, que teve em Thorstein Veblen (1857-1929) o seu fundador, viu ao longo do século XX associar-se-lhe um conjunto de relevantes autores, muitas vezes com pouco de comum entre si a não ser o carácter heterodoxo do seu pensamento – entenda-se a sua visão crítica de alguns dos principais postulados e pressupostos da escola neoclássica. Muitos deles, de resto, não assumiram sequer explicitamente essa ligação à corrente institucionalista (1). Ainda assim, não sem dificuldade, dada a hegemonia de outras escolas e tradições de pensamento, o institucionalismo sobreviveu, sobretudo nos Estados Unidos, e uma das razões para isso, paradoxalmente, deve-se ao facto de a teoria neoclássica ter ela própria conhecido desenvolvimentos de cariz institucionalista que obtiveram grande projecção, como é o caso das obras de Ronald Coase, de C. Douglass North, e de Oliver Williamson, entre outros, falando mesmo alguns, a seu propósito, de uma “nova economia institucionalista”. Mais recentemente, com uma orientação muito diferente da de tais autores, os trabalhos do britânico Geoffrey M. Hodgson têm procurado fundar uma economia institucionalista moderna, colocando as instituições sociais no centro da análise económica. Este autor faz uma crítica cerrada dos fundamentos da economia neoclássica, em particular do conceito do homo economicus, e procura definir um quadro teórico original em que está presente e é assumido o ambicioso propósito de realizar uma síntese da obra de autores como Thorstein Veblen, John Keynes, Karl Marx, Joan Robinson, Karl Polanyi, Joseph Schumpeter e Herbert Simon (2). Estes e outros desenvolvimentos teóricos contribuíram para que se desse uma maior atenção à problemática institucional mas – evidentemente – não é preciso aderir aos princípios da escola institucionalista para reconhecer que as instituições são um factor de grande importância para o desempenho das economias, e em particular para os seus processos de crescimento e desenvolvimento económico. Pode mesmo dizer-se que nas últimas décadas essa importância tem vindo a ser generalizadamente reconhecida no plano teórico e prático. Com efeito, têm-se multiplicado os estudos sobre o assunto e a questão tem merecido também a atenção de muitos governos e instituições internacionais. Por exemplo, mesmo uma organização insuspeita de heterodoxia como o Fórum Económico Mundial, que organiza os célebres encontros de Davos, elege a qualidade das instituições públicas como um dos indicadores a considerar para efeito da construção dos índices de competitividade, anualmente publicados no seu Relatório sobre a Competitividade Global (3). O Banco Mundial, por seu turno, dedicou o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2002 à apreciação do papel das instituições na promoção do desenvolvimento económico, tendo-lhe dado o significativo título “Building Institutions for Markets”. No fundo, o conceito de “boa governação”, que se foi afirmando na ordem económica internacional, em larga medida sob influência das principais organizações internacionais, e que, com grandes dificuldades, se tem procurado impor aos países em desenvolvimento, está intimamente conectado com este reconhecimento da importância das instituições como factor de desenvolvimento. Estamos pois perante uma visão que, trazendo embora as instituições para o centro da acção e do discurso económicos, o faz de modo perfeitamente articulado e compatível com o pensamento económico dominante. Como diz o Banco Mundial no Relatório supracitado, trata-se de “construir instituições para os mercados”.
Sistema judicial e actividade económica Como seria de esperar, em todos esses estudos e relatórios entre as instituições consideradas especialmente relevantes para o desempenho da actividade económica destacam-se as instituições jurídicas e, em particular, o sistema judicial. De facto, a qualidade da legislação, o grau de eficácia da dissuasão do incumprimento dos contratos, a intensidade da protecção do direito de propriedade e o nível do risco de expropriação, as condições do acesso dos cidadãos e das empresas à justiça, o grau de eficácia do combate à corrupção, o tempo de resolução dos litígios e, em geral, a eficácia do sistema judicial são manifestamente aspectos que influenciam bastante o desempenho das economias. Com efeito, numa época em que estão generalizadas as relações económicas transnacionais, e em que a concorrência é feroz e os investidores estão aconselhados por equipas de especialistas, uma avaliação negativa de alguns dos aspectos acima referidos pode ser suficiente para impedir um investimento estrangeiro ou gerar deslocalizações com todos os prejuízos daí decorrentes para a economia em causa. Não obstante, entre nós, a reflexão sobre a “crise da justiça”, apesar de ter invadido com estrépito o espaço público e mediático, só muito incidentalmente tem considerado a dimensão económica do problema (4). E no entanto é da maior importância fazê-lo. Não só no que tange ao relacionamento do sistema de administração da justiça com a actividade económica mas também do ponto de vista da análise do contributo que os princípios e os métodos da ciência económica podem dar para a resolução dos problemas do sistema de justiça, designadamente quanto à sua “economia interna”. De facto, onde se joga o êxito da reforma da justiça portuguesa é na capacidade que ela tiver para aumentar significativamente a eficácia e a eficiência do sistema de administração da justiça. Nesse sentido, os conhecimentos da ciência económica podem revelar-se da maior importância, tendo ainda a vantagem adicional de deslocarem as questões para o terreno da gestão, por definição mais neutro e, portanto, menos atreito aos bloqueios de carácter corporativo. Há designadamente que retirar todas as virtualidades – também em sede de sistema de justiça – da teoria da escolha em situações de escassez de recursos, que está subjacente ao raciocínio económico. Não se trata de acreditar que os pressupostos da chamada “análise económica do direito” podem conduzir à solução de todos os problemas. Bem longe disso. Até porque, como oportunamente salientou o Professor Sousa Franco, “o sistema jurídico tem fins e valores próprios e autónomos, não recondutíveis à mera análise económica”, sendo por isso “tão inadequado encará-lo com o idealismo de pendor positivista como cair num oposto materialismo económico, igualmente redutor” (5). O que se afigura é que – ao contrário do que até agora inexplicavelmente tem sucedido – os métodos e os ensinamentos da ciência económica podem e devem ser convocados para dar o seu contributo à resolução dos problemas do sistema de justiça. Mas mesmo num plano menos exigente, como é o da mera avaliação do impacto económico das medidas na área da justiça, e não obstante a sua grande importância, como já acima se assinalou, verifica-se que essa avaliação normalmente não é feita. Aliás, só bem recentemente o Ministério da Justiça, através da reforma da sua orgânica operada pelo Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho, se dotou de uma estrutura mais adequada às exigências de uma política de justiça moderna, em especial com a criação do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento e do Gabinete de Auditoria e Modernização. Isso mesmo foi de resto sublinhado e reconhecido numa deliberação do Conselho Superior da Magistratura, que exprimiu a sua preocupação pelo anunciado propósito de extinguir o segundo dos referidos gabinetes (6). A sensibilidade para a questão do impacto do funcionamento do sistema judicial nas decisões das empresas e, em geral, no desempenho da economia está felizmente a aumentar. Começam por isso a surgir agora entre nós trabalhos visando o seu estudo e avaliação, como é o caso dos de C. C.Cabral e A. C. Pinheiro (7) e J. A. Tavares (8). C. Cabral e A. Pinheiro advertem para o facto de ser mais difícil do que à primeira vista pode parecer a definição do que seja um bom sistema judicial do ponto de vista económico, sendo por isso indispensável a definição de rigorosos parâmetros para o efeito. O estudo assinala o forte impacto do funcionamento do sistema judicial no desempenho económico, designadamente através dos seguintes canais: investimento, eficiência das empresas, progresso tecnológico e qualidade da política económica. A sua análise baseia-se num inquérito às empresas. Foi seleccionada uma amostra de 2.672 empresas, definida de forma a garantir a representatividade para os diferentes sectores de actividade e três níveis de dimensão empresarial. Apenas responderam 602, considerando no entanto os autores que esse universo é bem equilibrado em relação ao desenho da amostra inicialmente definida. Não sendo propriamente surpreendentes, as respostas obtidas não deixam de impressionar pelo seu carácter negativo. Assim, avaliando a morosidade dos processos, 32,9% das respostas consideram o sistema “mau” e 59,5% (!) “muito mau”. Ou seja, o total de insatisfação atinge os 92,4%! Quanto à previsibilidade da decisão final, o somatório das respostas “mau” e “muito mau” é de 44,5%, valor portanto também bastante elevado. E importa sublinhar que a possibilidade de melhor prever o resultado de um caso em tribunal é considerada por 31,2% dos inquiridos “muito útil” para o planeamento das actividades da empresa e “útil” por 43,2%, o que dá bem uma indicação da importância deste aspecto. Mesmo relativamente à imparcialidade da decisão final, aspecto que de uma maneira geral não tem sido considerado negativo no sistema português, 29,1% atribuem a notação “mau” e 3,5% “muito mau”. Os dois valores somados atingem assim a significativa expressão de 32,6% contra 45,7% do somatório das respostas “muito bom” (2,3%) e “bom” (43,4%). Sem dúvida, dados para reflectir. Em face do que antecede, não espanta que o funcionamento do sistema judicial seja classificado como “mau” por 57,8% dos inquiridos e como “muito mau” por 26,6%. Apenas 8% lhe atribuem a notação “bom”. Deve todavia sublinhar-se que – questionados sobre a importância relativa dos factores que mais afectam a vida das empresas – os inquiridos colocaram o desempenho do sistema judicial praticamente no fundo da tabela (a par dos custos de cumprimento da regulação industrial), atrás dos impostos, dos custos salariais, do acesso à mão-de-obra especializada e das infra-estruturas. Quanto a comparações internacionais (ver tabela correspondente), os resultados também não são animadores. Com efeito, pode ver-se que a duração total dos procedimentos legais previstos para dois tipos de acção bastante frequentes ultrapassa largamente a que se verifica nos nossos parceiros europeus mas também nos países que, em virtude do seu rápido crescimento económico, ficaram conhecidos por “tigres asiáticos”. Todavia, a consideração de outros indicadores (v.g. risco de incumprimento dos contratos, risco de expropriação, acesso à justiça, nível de corrupção) leva a resultados não tão negativos (9).
Conclusão Na reflexão sobre a “crise da justiça” e na acção tendente a debelá-la ou, pelo menos, a minorar os seus efeitos há sem dúvida um importante lugar para a problemática do impacto económico do funcionamento do sistema judicial. Ténues embora, há sinais de que poderá a estar a chegar ao fim uma época em que esta questão foi pura e simplesmente ignorada. Num país que tem dificuldade em reformar-se se não for sob o impulso externo, a atenção que as instituições internacionais estão a dar a esta questão é um sinal bem esperançoso. Embora a ineficiência dos sistemas judiciais se verifique um pouco por todo o lado, sendo afinal a “crise da justiça”, como alguém já disse, o somatório de muitas outras crises, a situação a que chegámos em Portugal de mau funcionamento do sistema judicial é sem dúvida de grande gravidade e, como os estudos supracitados demonstram, prejudica de forma relevante o desempenho da economia portuguesa. Também por isso temos de ser capazes de aumentar a qualidade e a eficiência do nosso sistema judicial.__________ 1 Sobre a escola institucionalista, cf. Michel BEAUD e Gilles DOSTALER, O Pensamento Económico, de Keynes aos nossos dias – Súmula Histórica e Dicionário dos Principais Autores, Edições Afrontamento, Porto, 2000, pp. 117-119 e 159-171, bem como MauriceBASLÉ, Camille BAULLANT e outros, Histoire des penseés économiques – les contemporains, Éditions Sirey, Paris, 1988, pp. 450-452 e 462-477. 2 Para o conhecimento do pensamento de Geoffrey HODGSON, cf. o seu Economia e Instituições, Celta Editora, Oeiras, 1994. De notar que o subtítulo desta obra não podia ser mais esclarecedor quanto às intenções do autor: “Manifesto por uma Economia Institucionalista Moderna”. Outras importantes obras de Geoffrey HODGSON são Economia e Evolução, Celta Editora, Oeiras, 1997, e How Economics Forgot History, Routledge, Londres, 2001. 3 Mais especificamente, no âmbito do “Growth Competitiveness Index”, a variável “instituições públicas” é considerada, a par da tecnologia e do ambiente macroeconómico, uma das três fundamentais para determinar o crescimento a médio e longo prazos. Cf. Global Competitiveness Report 2002-2003, pp. 3-22, do Fórum Económico Mundial, disponível no site da organização (www.weforum.org). 4 Ver no entanto Diogo de LUCENA, “Os Sistemas Jurídico e Judicial – Uma Análise Económica”, João Ramos de SOUSA, “Que crise? Que Justiça? Mercados judiciários: um estudo de economia normativa”, e Mário TORRES, “Por uma Economia do Serviço Público da Justiça”, todos publicados em António BARRETO, Justiça em Crise? Crises da Justiça, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000. 5 Cf. António de SOUSA FRANCO, “Análise económica do Direito: Exercício intelectual ou fonte de ensinamento?” in Sub Judice-Justiça e Sociedade, nº 2, Janeiro-Abril, 1992, p. 64. 6 Cf. deliberação do Plenário de Outubro de 2002, publicada no Boletim Informativo do Conselho Superior da Magistratura de Janeiro de 2003 (p. 90). 7 Cf. Célia da Costa CABRAL e Armando Castelar PINHEIRO, A Justiça e seu Impacte sobre as Empresas Portuguesas, Ministério da Justiça/Coimbra Editora, 2003. Assinale-se positivamente o facto de este estudo ter sido realizado sob encomenda do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça. 8 Cf. José Albuquerque TAVARES, Firms, Financial Markets and Law: Institutions and Economic Growth in Portugal, comunicação apresentada na Conferência do Banco de Portugal organizada em 24 e 25 de Maio de 2002 sob o tema “Desenvolvimento Económico Português no Espaço Europeu: Determinantes e Políticas”. 9 Tais dados são extraídos de outro estudo mas são assumidos tanto no trabalho de Célia da Costa CABRAL e Armando Castelar PINHEIRO (cf. pp. 34 e 35) como no de JoséAlbuquerque TAVARES (cf. pp.13 e 14). * Luís Máximo dos Santos Docente no Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Consultor Jurídico do Banco de Portugal. Vogal do Conselho Superior de Magistratura. Dados adicionais Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas (clique nos links disponíveis) Comparação internacional da duração de uma acção em dias Impacto do funcionamento do sistema judicial no desempenho da sua empresa Imparcialidade da decisão final Previsibilidade da decisão final
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