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Onde estou: | Janus 2004 > Índice de artigos > O direito e a justiça em acção > O poder judicial e o exercício da justiça > [Os Direitos da Criança em Portugal e Cabo Verde] | |||
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Partindo deste quadro, analisámos as normas da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 relativas aos direitos das crianças e dos jovens que praticam crimes e realizámos um estudo comparativo da sua aplicação em Portugal e Cabo Verde, tendo por referência a década de 90 (1). Esta análise afigurava-se o laboratório ideal. Distintos contextos económicos, políticos, sociais e culturais diferenciam estes países mas, consequência de um passado de colonização e de um presente marcado, por um intenso processo de transnacionalização jurídica, no qual Portugal se assume claramente como intermediário privilegiado de Cabo Verde, a produção legal aproximaestes dois países.
Da norma universal à norma local A Convenção consagra um modelo de administração do sistema de justiça juvenil que, não esquecendo o estatuto jurídico especial das crianças que praticam crimes e a necessidade de promover a sua reintegração social, assenta num conjunto de garantias fundamentais típicas do processo penal. Determina o art.º 40.º que devem ser estabelecidas leis, processos, autoridades e instituições especificamente adaptadas a crianças suspeitas ou acusadas da prática de crimes e devem ser assegurados direitos fundamentais como a presunção de inocência, o direito à assistência judiciária e a imparcialidade e independência das autoridades competentes. A intervenção de entidades não judiciais é admitida e desejável, desde que os procedimentos cumpram com os requisitos consagrados na lei, nomeadamente a sujeição das decisões a controle ou recurso judicial. Em contraposição, nos termos do modelo previsto na anterior Organização Tutelar de Menores (1978), reproduzido na íntegra no Código de Menores de Cabo Verde (1981), competia às instâncias oficiais, judiciárias e não-judiciárias, aplicar sempre medidas de protecção e defesa do menor, quer actuassem sobre um menor em perigo por maus tratos ou sobre um menor que já delinquiu, não lhe sendo formalmente reconhecidas garantias judiciais mínimas, como o direito ao contraditório ou a assistência de mandatário judicial (2). Em ambos os países, os tribunais de menores intervêm nas situações de prática de factos qualificados pela lei penal como crimes por menores de idade compreendida entre os 12 e os 16 anos e sempre que não houver consentimento à intervenção das instâncias oficiais não judiciárias, no caso de Portugal as Comissões de Protecção de Menores e em Cabo Verde o Instituto Cabo-Verdiano de Menores. Relativamente aos menores de 12 anos, a intervenção será, preferencialmente, das instituições oficiais não judiciárias (3). A intervenção tinha na base um processo de tramitação muito simplificada, que podia terminar com a aplicação de uma medida tutelar, de natureza institucional ou outra, cuja duração máxima não estava especificada e que podia ser revista a qualquer momento. Temos aqui, no plano do direito interno, um primeiro filtro na implementação da norma universal. Resulta claro que as normas locais se aproximam, em alguns aspectos, da norma universal, nomeadamente nas instituições e processos especificamente adaptados a menores, na imparcialidade e independência das autoridades e no controle judicial da intervenção das instâncias não judiciárias. Porém, a filosofia que inspira o modelo consagrado na Convenção e nos ordenamentos jurídicos nacionais é bem distinta. Tal resulta da própria evolução histórica dos modelos dominantes de intervenção do Estado em matéria de delinquência juvenil, na qual a norma universal e a norma local em análise se situam em fases diferentes. Na década de 80, em plena crise do Estado Providência, surgem fortes movimentos de crítica aos diversos sistemas jurídicos, que, de forma diferenciada, acolheram as ideias de protecção das crianças e jovens que praticam crimes. A par das críticas a uma intervenção paternalista, na qual não se respeitava o direito de audição e do contraditório das crianças e jovens, surgem movimentos que, invocando o aparente crescimento da delinquência juvenil e dos níveis de insegurança dos cidadãos, defendem um sistema de intervenção de natureza penal, por oposição a um sistema proteccionista. Os anos 80 assistem, assim, a um debate entre o chamado modelo de justiça, em que se privilegia, simultaneamente, a defesa da sociedade e o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos menores, e o modelo de protecção, em que se privilegia a protecção do interesse do menor, sem que formalmente lhe sejam reconhecidos os direitos processuais próprios de uma intervenção judicial. Esta tensão atravessa as reformas efectuadas no plano internacional pelas Nações Unidas, reflectindo-se na Convenção dos Direitos da Criança, ao ser consagrado um modelo de intervenção preferencialmente judicial, dotado de um amplo catálogo de direitos de natureza processual. Foram necessários 10 anos para que a norma interna portuguesa reflectisse o modelo consagrado na norma universal (4). Semelhante processo ainda não ocorreu em Cabo Verde, mas admitimos que tal venha a suceder, na sequência das observações do Comité dos Direitos da Criança e no âmbito de um processo de cooperação jurídica entre estes dois países.
Justiça juvenil: Portugal e Cabo Verde Voltando à década de 90, época em que situámos o nosso estudo, verificámos que quadros jurídico-institucionais produzem diferentes resultados, quando accionados em sociedades com diferentes níveis de desenvolvimento económico e social, nas quais dominam diferentes modelos de organização familiar e distintas percepções sociais sobre a infância. Da confluência destes factores resulta, desde logo, diferentes conceitos sociais de “criança em risco” e diferentes percepções sobre o papel do Estado, da sociedade e da família e, portanto, diferentes quadros de conflitualidade social relacionada com as crianças e os jovens. O conceito de criança inadaptada ou delinquente é uma realidade social muito recente em Cabo Verde. A sua visibilidade começa a surgir lentamente, muito em consequência das aceleradas transformações sociais e económicas que, entre outros, têm tido um especial impacto na desestruturação da família tradicional e enfraquecimento das redes sociais de providência. No entanto, esta crescente visibilidade social não tem, ainda, tradução judiciária. Numa sociedade eminentemente rural, como Cabo Verde, as crianças e os jovens estão mais protegidas pelas redes familiares e sociais alargadas, e, portanto, menos expostas a um contacto com as instâncias oficiais de controle social. O papel da família é, assim, preponderante face ao papel do Estado, que apenas intervém em casos extremos e, tradicionalmente, ao nível do sistema administrativo e social, através do Instituto Cabo-Verdiano de Menores, por contraposição ao nível judicial. Assim, o tribunal de menores da Cidade da Praia, instalado apenas em 1997, não regista qualquer processo motivado pela prática de crimes por crianças ou jovens. Tal não significa, porém, que as crianças e os jovens não pratiquem crimes. As autoridades policiais detectam, e apresentam no tribunal, crianças e jovens que praticaram crimes. Porém, a acção dos magistrados limita-se à “negociação pedagógica” informal entre menor, pais e ofendidos, caso existam. De salientar que não está referenciado nenhum caso em que a prática de um crime por um menor tenha despoletado uma intervenção coerciva, seja do tribunal ou do Instituto Cabo-Verdiano de Menores. Este Instituto, que apenas intervém caso exista consentimento e interesse por parte dos menores e da respectiva família, tem vindo a desenvolver uma importante acção nas situações, cada vez mais detectadas, de miúdos que “andam na rua”, uns a fazer pequenos biscates, outros que já praticam, de modo reiterado, pequenos delitos, essencialmente pequenos furtos, e outros crimes mais graves, como introdução em casa alheia e roubo. A intervenção consubstancia-se no enquadramento em centros de acolhimento diurnos, nos quais os menores frequentam a escolaridade obrigatória e ateliers profissionais, tendo em vista uma colocação profissional, que, em regra, é concretizada em oficinas mecânicas. Por contraposição a Cabo Verde, Portugal tem uma longa tradição judiciária em matéria de delinquência juvenil, tendo sido um dos primeiros países a criar, em 1911, uma jurisdição especializada de menores. Desde sempre, no cômputo global dos processos tutelares decididos pelos tribunais de menores portugueses, predominaram as situações de prática de crimes por contraposição às restantes situações previstas na lei, tendência que viria a ser atenuada a partir do início da década de 90, com o crescimento do número de situações de abandono, desamparo e de inadaptação social. Assim, também em Portugal tem vindo a registar-se uma alteração significativa do conceito de “criança em risco”. Esta alteração é particularmente visível no Tribunal de Menores de Lisboa, no qual, ao longo da década de 90, o número de processos decididos em situações de prática de crimes foi significativamente minoritário no cômputo global de decisões judiciais. Tal não significa, porém, que esteja a diminuir o número de situações participadas ao tribunal por prática de crimes, pois os dados estatísticos referem-se a processos decididos e não entrados. Mas tal significa, por um lado, que se alteraram as representações sociais sobre a “infância em risco”, com um aumento muito significativo das participações em situações de abandono, desamparo, maus tratos e outras e, por outro lado, que se alteraram significativamente as representações dos magistrados e dos técnicos de apoio ao tribunal sobre o seu papel, no sentido de valorizarem a intervenção judicial nas situações de maus tratos e desprotecção infantil. Perante o acumular de processos pendentes neste tribunal, quer o Instituto de Reinserção Social quer os magistrados, optaram, ao longo da década de 90, por tramitar de modo prioritário os relatórios sociais e os processos tutelares referentes a menores em situação de perigo, o que se traduz num aumento do número de processos findos nessas situações quando comparado com os processos motivados por crimes. Nas situações de criminalidade juvenil, que assumiu, desde sempre, uma natureza eminentemente patrimonial, característica que se tem vindo a acentuar ao longo das últimas décadas, a um ritmo semelhante ao da consolidação da própria sociedade de consumo, os tribunais, e também o Tribunal de Menores de Lisboa, optam maioritariamente por aplicar medidas tutelares não institucionais. Mas é de salientar, também, que se alterou significativamente o padrão de medidas aplicadas pelo Tribunal de Menores de Lisboa. Até meados da década de 90, o tribunal aplicou, maioritariamente, a medida de internamento em estabelecimento de reeducação, registando-se, a partir de 1994, uma tendência decrescente da aplicação desta medida institucional e um crescimento significativo da medida de acompanhamento educativo e de admoestação (6). Realizado o nosso percurso de investigação, apresentamos em destaque, as principais conclusões (ver Informação Complementar).
Informação Complementar Da norma universal à acção local: conclusões A Convenção dos Direitos da Criança, norma universal de referência em matéria de direitos das crianças que praticam crimes e de administração dos sistemas de justiça juvenil, é implementada de modo distinto em Portugal e Cabo Verde, à luz de diferentes conceitos sociais de “criança em risco” e “interesse superior da criança”. Esta é necessariamente uma conclusão não universal. Reconhece que a força das aspirações globais não pode combater a inevitável influência dos valores e percepções sociais e culturais. Mas este nosso estudo demonstra, também, que as sociedades não são estáticas, os conceitos não são imutáveis e que factores e actores internos e externos à sociedade constituem-se como importantes motores de mudança social. O conceito social dominante de “criança em risco” e “interesse superior da criança” alterou-se profundamente na sociedade portuguesa e está a registar importantes transformações em Cabo Verde, na confluência de um complexo processo de mudanças demográficas, sociais, económicas e políticas, fortemente influenciado por uma crescente internacionalização dos Estados. Cada sociedade terá sempre os seus modos particulares de formular e implementar direitos humanos. Mas as sociedades são realidades mutáveis. Crescentemente multiculturais. Crescentemente globalizadas. As fronteiras dos Estados não desaparecem. Misturam-se. O poder dos Estados permanece como uma realidade fundamental, mas já não é único. A globalização reduz o espaço de manobra dos Estados, enquanto as instâncias internacionais, as dinâmicas transnacionais, a cooperação regional, as organizações não governamentais expandem o seu alcance. Esta diversificação de estruturas e modos de organização do poder e esta miscigenação social e cultural transportam, em si, inúmeras possibilidades para o desenvolvimento de uma política de direitos humanos cada vez mais adequada à realidade mundial, porque capaz de construir consensos normativos mais amplos e que se assumam como projecções da multiplicidade de valores sociais e culturais existentes na sociedade global. Neste mundo global, a norma universal constitui um importante factor de promoção da cidadania das crianças. É, não obstante, fundamental que, beneficiando das condições únicas deste mundo global, a norma universal se baseie em consensos normativos alargados que, por incorporarem o conhecimento e a diversidade local, contenham, em si, força suficiente para impulsionar a mudança, onde a mudança seja necessária. Nesse sentido, o papel de países como Portugal, pela posição que ocupam no sistema mundial, e dos órgãos da ONU pela sua importância na protecção e promoção dos direitos humanos, afigura-se fundamental na construção de uma dinâmica mais democrática entre o universal e o local. Esta democratização é, na nossa perspectiva, condição essencial para que a norma de Direitos da Criança se constitua como um importante factor de promoção da cidadania das crianças, contribuindo para mudanças e ajustamentos das instituições legais, políticas e sociais, para a protecção e promoção dos direitos civis, económicos, sociais e culturais das crianças, enfim, para a fundação de um modelo participativo e democrático de todos os actores sociais, incluindo as crianças. CARRILLO SALCEDO , J.A (1995): Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Internacional contemporáneo. Editorial Tecnos, Madrid. FONSECA, G (2002): “Da norma universal à acção local: os direitos das crianças em Portugal e Cabo Verde”. Dissertação de Mestrado apresentada na Fac. de Economia da Univ. de Coimbra, Dezembro de 2002. PEDROSO, J; Gersão, E; Fonseca, G (1998): A justiça de menores: as crianças entre o risco e o crime. Vol. 4 do Relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Março 1998. PEDROSO, J; Fonseca, G (1999): “A justiça de menores entre o risco e o crime: uma passagem... para que margem?”. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 55, Novembro de 1999. SANTOS, Boaventura de Sousa (1997): “Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos”.Revista Crítica de Ciências Sociais, 48, Junho de 1997. VAN BUEREN , G (1998): “Children’s rights: balancing traditional values and cultural plurality”. In Children’s rights and traditional values, ed Douglas, G and Sebba, L. Ashgate-Darmouth, 1998.
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