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Janus 2004



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Criminalidade organizada transnacional

António Ramos Caniço *

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Desde a última década do século XX que se tem vindo a assistir a uma internacionalização crescente da criminalidade organizada. Para tal contribuiu o desenvolvimento dos meios de transporte, das telecomunicações, com destaque para o avanço tecnológico verificado na transmissão de dados à distância e em tempo real. A criminalidade organizada relaciona-se sobretudo com os crimes de tráfico de estupefacientes, branqueamento de capitais e auxílio à imigração ilegal. No início do século XXI surgiu um outro tipo de criminalidade transnacional ligada à actuação de grupos terroristas.

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Embora se fale hoje de criminalidade organizada como se se tratasse de uma realidade recente, o certo é que a criminalidade organizada não representa um conceito novo do fenómeno criminoso.

 

A génese da criminalidade organizada

Na verdade, ela remonta aos primórdios do século XX. Mais concretamente, foi a partir da última década do século XIX que as polícias começaram a detectar o surgimento de um fenómeno criminoso coordenado, direccionado e também hierarquizado. Nas primeiras décadas do séc. XX, nomeadamente nas zonas urbanas com forte pressão imigratória proveniente da Europa, na costa leste dos Estados Unidos, o fenómeno organizativo do crime foi-se tornando uma evidência cada vez mais acentuada.

Assistia-se a uma escolha pormenorizada das tipologias criminais a praticar, estabelecendo-se uma hierarquia rígida de decisão e controle de ganhos, proporcionando-se, ainda, aos membros do grupo assistência médica e jurídica quando feridos ou detidos, a expensas da organização. Tudo isto de par com uma forte noção de território exclusivo, a qual gerou lutas sangrentas entre grupos rivais pelo controle de ruas, bairros ou mesmo cidades. E, no entanto, esta criminalidade organizada, instalando-se o grupo num determinado local, com maior ou menor dimensão, não prescindindo de se expandir na medida em que tal lhe fosse possível, não lutava pela internacionalização da sua actividade. Os seus chefes preferiam corresponder-se em matéria de negócios com os seus homólogos de outros países, estabelecendo redes de cumplicidades e de apoios, em detrimento da expansão do seu próprio grupo para outros Estados. A tal tipo de decisão não seria, por certo, alheia a existência de fronteiras e o seu controle pelas autoridades policiais e aduaneiras dos respectivos países.

 

A criminalidade organizada na transição do séc. XX para o séc. XXI

Na última década do século XX e no dealbar do século actual tem-se assistido a uma crescente internacionalização da criminalidade organizada, com crimes praticados num dado local de um dado Estado e lucros daí provenientes recolhidos noutro Estado, de par com uma mobilidade sempre em crescendo dos seus autores materiais e morais. Para isto contribuiu decisivamente não só o incremento dos meios de transporte – cada vez mais rápidos e fiáveis – mas também o desenvolvimento dos meios tecnológicos adstritos à transmissão de dados à distância em tempo real, bem como dos restantes modos de telecomunicações e, sobretudo na Europa, à criação de grandes espaços com atenuação acentuada de controles fronteiriços ou mesmo supressão de fronteiras, em matéria de controle aduaneiro e de trânsito de pessoas.

É este o caso de Portugal no que concerne à sua fronteira terrestre por efeito da sua adesão à União Europeia e de nesta União se encontrar também a Espanha, único país com o qual existe fronteira terrestre. E todavia a posição de Portugal é neste âmbito mais exigente agora, porquanto passou a constituir-se como fronteira aeromarítima da União Europeia, o que significa que passou a deter uma responsabilidade acrescida.

Na verdade, um país com as características geográficas de Portugal encontra-se face a face com o novo desenvolvimento do conceito de criminalidade organizada – o seu carácter transnacional –, o que em certa medida também acontece com os demais da União Europeia.

 

A transnacionalidade da criminalidade organizada

Realmente, o século XXI está a confirmar a existência deste novo conceito, o qual, de resto, é hoje perfeitamente detectável no que toca, sobremaneira, aos crimes de tráfico de estupefacientes, branqueamento de capitais e auxílio à imigração ilegal.

Sobre o primeiro mencionado, e sendo ele o que, ainda em pleno século XX, constituiu a ponta-de-lança para a experiência e aperfeiçoamento subsequente do conceito de transnacionalidade em matéria de perpetração e consumação de actos criminosos, já muito se teorizou, estando perfeitamente definidas as causas que geraram o seu crescimento e delimitadas as suas consequências. Relativamente ao branqueamento de capitais, também não subsistem grandes dúvidas quanto à sua génese:

  • a necessidade de movimentar largas somas de dinheiro, dispersas por várias moedas nacionais, provenientes da execução de actos criminosos;
  • o aproveitamento pleno das novas tecnologias de transmissão de informação em tempo real, que propiciaram o crescimento exponencial da movimentação de fluxos monetários virtuais, ou seja, a transferência electrónica ilimitada de capitais sem a presença física de notas, moedas ou outros meios de pagamento em suporte de papel.

O branqueamento de capitais esteve no seu início primacialmente ligado ao tráfico de estupefacientes, mas com o evoluir das sociedades e o desenvolvimento das antigas, bem como o surgimento de novas práticas criminais na área económico-financeira, veio progressivamente a diversificar-se a origem dos fundos a lavar. Hoje não é invulgar que eles provenham de burlas, corrupção, falsificações e tráficos, designadamente o de pessoas.

É certo que, embora constituindo uma tipologia penal autónoma, o branqueamento de capitais só subsiste em ligação ou como consequência da prática de outros crimes geradores de amplos proventos financeiros. A prática do crime de branqueamento de capitais só é atractiva para um grupo criminoso que detenha grandes concentrações monetárias e possua capacidade para continuadamente as manter. Daí que os crimes de branqueamento de capitais não sejam quantitativamente relevantes. A verdade porém é que, face às somas movimentadas o são e muito, do ponto de vista qualitativo, para além de serem, por excelência, crimes praticados por grupos de várias nacionalidades em vários países. É o que resulta do quadro e gráfico sobre branqueamento e número de arguidos. E trata-se de crime em expansão, como facilmente se infere dos números mencionados.

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Outro dado interessante a reter é que enquanto de 2000 para 2001 o número de arguidos por tráfico de estupefacientes desceu, o dos referentes a branqueamento de capitais subiu. Vejam-se os gráficos intitulados “Tráfico de estupefacientes” e “Branqueamento”.

O que nos conduz para a pesquisa de outras tipologias penais que propiciem o crime de branqueamento de capitais e entre elas depara-se-nos de imediato o tráfico de pessoas e neste âmbito o auxílio à imigração ilegal. Na União Europeia, a imigração ilegal surge, presentemente, entre os crimes que mais se estão a expandir e a maior parte dos grupos criminosos organizados que aqui operam está, em maior ou menor escala, envolvida no branqueamento de capitais(cf. DCCB – Direcção Central de Combate ao Banditismo, com base no 2002 EU Organized Crime Report – EUROPOL).

No auxílio à imigração ilegal estão envolvidos vários grupos criminosos organizados, compostos por nacionais de países da União Europeia e outros oriundos de países da Europa de Leste – muitos futuros Estados que integrarão a Europa – Próximo e Médio Oriente e ainda de vários países africanos, entre eles os de língua oficial portuguesa. Estes grupos actuam em vários países, e a actividade ilícita que desenvolvem só se consuma com a passagem de fronteiras. Este é o exemplo típico de uma actividade criminosa organizada de carácter transnacional.

É pelos requisitos que encerra a sua consumação, o menor dos quais não é a falta de capacidade de reacção decorrente da relação de dependência que se estabelece entre o grupo e o imigrante ilegal, que este último se vê na situação de explorado – quase escravo –, obrigado a entregar elevadas somas em dinheiro através de pagamentos sucessivos.

De resto, as pressões exercidas pelos grupos sobre os imigrantes são de tal modo fortes e violentas que, no caso principalmente dos imigrantes de Leste, já levaram alguns ao suicídio (cf. DCCB). Para tal contribui, como é óbvio, o facto de o imigrante ilegal ser, na realidade, uma pessoa, que se pretender reagir pela via legal, expõe a sua situação. Isto é, pedir a protecção das autoridades do Estado onde se encontra é a solução ideal para preservar a integridade física e em alguns casos a própria vida, mas constitui simultaneamente o ponto final no sonho que o trouxe até ali e que, sem excepção, se traduz na busca – já desesperada porque só assim se compreende que, tendo consciência da situação de ilegalidade a que se submetem, a aceitem – de melhores condições de vida.

No caso português, como país de acolhimento, a influência da ausência de fronteiras internas no espaço Schengen é visível no aumento sustentado que este tipo de crime apresenta. O seu combate passa pelo reforço da cooperação internacional, designadamente na vertente da recolha e análise de informação.

Este princípio director da actuação policial é válido para toda a criminalidade organizada transnacional, mas não pode ser implementado de forma dissociada de outros, quer a montante quer a jusante, nomeadamente, a harmonização das legislações aplicáveis em cada Estado, não só a estas tipologias penais, mas também àquelas que surgem como apoio para a sua prática, v.g. as falsificações de documentos, de moeda e de outros meios de pagamento de circulação internacional.

O carácter transnacional, quer na autoria quer nos métodos aplicados, quer, ainda, no suporte material à execução tem vindo também a crescer, no âmbito da criminalidade mais violenta de que é expoente máximo o terrorismo.

Nas décadas de 60 e seguintes do século XX o mundo assistia ao surgimento e, infelizmente, manutenção no tempo de actos terroristas que surpreendiam pela complexidade da sua execução e pela capacidade organizativa dos grupos envolvidos, designadamente nos apoios logísticos. Porém, estas acções terroristas, em regra, tinham por objectivo, chamar a atenção da opinião pública internacional para a evolução de alguns conflitos perfeitamente localizados ou para criar situações de instabilidade político-social interna em alguns Estados.

Assim sendo, o terrorista procurava sobretudo conseguir a maior cobertura possível por parte dos órgãos de comunicação social para a sua causa, expondo o seu ponto de vista e fazendo as suas – na sua perspectiva, justas – reivindicações. Não obstante tentar também pressionar as autoridades, através da ameaça permanente à vida dos reféns, para ver satisfeitos os seus objectivos, a verdade é que o homicídio puro e imediato dos capturados não lhe interessava. Um refém morto não tem valor.

Acrescia, por outro lado, que ao terrorista interessava também preservar a sua própria vida e por isso os atentados, ainda que espectaculares, não se revestiam de violência mortal totalmente gratuita e quando se objectivavam em território de país terceiro relativamente ao conflito que estava na sua génese, em geral, ocorriam com cidadãos e no território de país apoiante dos seus oponentes. Veja-se o caso dos desvios de aeronaves.

Sendo certo que em alguns casos existiu violência que gerou número apreciável de vítimas, na sua maioria o número destas foi diminuto face ao número de reféns obtidos em cada acção. E, neste caso particular, os terroristas tinham na prática de ser especialmente cautelosos na preservação da integridade física do pessoal navegante técnico – designadamente comandante e oficial piloto –, pois tinham absoluta necessidade deles para poderem tripular a aeronave, assim propiciando a sua própria fuga para países que lhes concediam abrigo. Neste início do século XXI tudo mudou.

 

As organizações terroristas do novo milénio

Hoje a organização terrorista possui ou tende a possuir células onde se inserem pessoas de várias nacionalidades, incluindo algumas que nada têm a ver com conflitos específicos, funcionando numa lógica de solidariedade ideológica apoiada em fundamentos religiosos provenientes de uma interpretação pervertida de textos sagrados, visando não a obtenção de objectivos concretos localizados e previamente definidos, mas antes a “punição do outro”. Neste conceito de punição indiscriminada, a vida humana perdeu a esmagadora maioria, senão mesmo a totalidade, do seu valor. Incluindo a vida do perpetrador do atentado.

No planeamento do atentado, o terrorista que actua dentro destes parâmetros e a partir de tais premissas tem a sua tarefa extremamente facilitada porque em tais planeamentos a parte mais difícil, na maioria das vezes, consistia em estabelecer rotas de fuga eficazes, sozinhos ou na companhia de reféns. A maior dissuasão à prática de um atentado consistia no planeamento prévio da saída do seu autor do local daquele, em segurança. Deixou, nestes primórdios do século XXI de o ser.

Tomando de novo, por exemplo, o caso de aeronaves civis, constata-se que no desenvolvimento desta lógica da violência punitiva, a vida das pessoas deixou de ser valorável, incluindo a daqueles que eram fundamentais para propiciar ao terrorista capacidade de movimento. Antes, este entrava no cockpit e impunha ao pessoal navegante técnico as condições que queria ver cumpridas e a rota a seguir. Hoje entra no cockpit, remove o pessoal técnico, assume o comando da aeronave e executa a sua missão, só podendo, eventualmente e em último recurso, ser travado pela actuação de meios bélicos externos à aeronave.

Agora não se enunciam objectivos que se querem ver acolhidos pelo oponente; pune-se o oponente. Isto é, não se ameaça com a prática de violência para se obter um qualquer ganho de causa; aplica-se, desde logo, a violência pura com fundamento numa “punição” ao mundo ou ao oponente por estes discordarem ou não acolherem a causa que aqueles defendem.

É para fazer face a esta nova metodologia que os Estados e as Nações têm de estar técnica, física e mentalmente preparados.

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* António Ramos Caniço

Director do Departamento Central de Informação Criminal e Polícia Técnica.

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