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Janus 2005



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Uma nova configuração geopolítica

Luís Tomé *

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O fim do confronto EUA-URSS, a queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética desmantelaram, há década e meia, o sistema bipolar das relações internacionais, deixando em aberto a redefinição de uma nova arquitectura do poder mundial e de uma nova ordem internacional. Sem equilíbrio de poderes nem rival estratégico à altura, os Estados Unidos afirmaram-se como a “hiperpotência”, tornando obsoletos muitos dos paradigmas, conceitos e até expectativas que se haviam produzido (essencialmente daqueles que anteviam – ou desejavam – uma “ordem multipolar”).

Em virtude da globalização/mundialização nas suas múltiplas dimensões, dos processos de integração regional e da nova proeminência de outros actores internacionais, o Estado vai perdendo relevância na arena internacional – e vai sendo confrontado com a erosão progressiva de competências que eram exclusivamente suas. A este fenómeno, que não é necessariamente nem bom nem mau, mas que é um dado de facto, devem somar-se outros igualmente relevantes: o conceito de Estado nacional está a sofrer uma metamorfose e o território perdeu, há muito, grande parte do seu significado como elemento de poder nacional. Estes dados podem associar-se a um outro ainda mais “desmantelador” da ordem tradicional vestefaliana.

O princípio da não interferência nos assuntos internos dos outros Estados tem sido abandonado em prol da consagração de um princípio de ingerência humanitária e até de jurisdição universal. E não apenas pelos EUA, como também por muitos outros países ocidentais, pela Aliança Atlântica e até pelas próprias Nações Unidas. Durante os anos 90, os Estados Unidos empreenderam operações humanitárias na Somália, no Haiti, na Bósnia e no Kosovo; outros países assumiram a iniciativa em Timor Leste (liderada pela Austrália) e na Serra Leoa (liderada pelo Reino Unido). Com excepção do Kosovo, todas estas iniciativas foram sancionadas pelas Nações Unidas; na Bósnia e no Kosovo, as intervenções foram da NATO, ou seja, com o acordo e a participação dos aliados europeus e norte-americanos.

Por outro lado, o Estado já não detém o monopólio do uso da força e da guerra, pelo que as ameaças sobre a segurança e a defesa advêm muitas vezes, e cada vez mais, de grupos não estatais, como as organizações terroristas. Nunca como hoje o “terrorismo” constituiu uma tão perigosa ameaça para a segurança internacional, um dado inquestionável que altera muitas das concepções habituais sobre ameaças, defesa, segurança, estratégia, política e relações internacionais, e que leva a alterar regras de comportamento estratégico e geopolítico, e a reequacionar a arbitragem no sentido de “evitar a guerra” ou “fazer a paz” Além disso, é evidente que os perigos provenientes do terrorismo, na actualidade, são indissociáveis do risco de proliferação das armas de destruição massiva (ADM): a conjugação destas duas ameaças – terrorismo e ADM – aumenta exponencialmente o perigo, pelo que a principal responsabilidade de eliminar, reduzir ou atenuar essas ameaças e esses riscos é de cada Estado mas, sobretudo, da acção colectiva e concertada dos Estados.

 

Dois acontecimentos “detonadores” e um “revelador”

O novo recorte geopolítico mundial decorre dos efeitos provocados por dois acontecimentos “detonadores” – o final da Guerra Fria e o 11 de Setembro – e por um outro “revelador” – a crise iraquiana. Os “detonadores” provocaram alterações substanciais na estrutura de poder mundial, na medida em que os Estados Unidos encararam o fim do confronto bipolar e, posteriormente, a “guerra contra o terror”, como oportunidades para expandirem o seu alcance estratégico.

A crise em torno da intervenção militar no Iraque, por seu lado, serviu, sobretudo, como “revelador” da realidade das relações de poder e de força, bem como das divergências transatlânticas e intereuropeias. Com efeito, se as relações dos EUA com a Rússia e com a China melhoraram de forma significativa na sequência da tragédia do 11 de Setembro e da “guerra contra o terror”, nas relações transatlânticas regista-se um movimento inverso, em virtude do acentuar das diferenças e do agravamento das desavenças sobre as estratégias adequadas para enfrentar as novas ameaças.

Num contexto fortemente marcado por estes acontecimentos e pela emergência de um novo paradigma de conflito com a guerra assimétrica, a nova ordem internacional é actualmente caracterizada por um modelo híbrido, complexo e original na estrutura de poder mundial, que podemos designar por uni-multipolar, e pela coexistência de dois vastos movimentos geopolíticos e geoestratégicos: por um lado, a guerra mundial “contra o terror” e, por outro, o jogo de “contenções mútuas e múltiplas” entre a pressão hegemónica dos EUA e os que se batem no sentido de conter ou mesmo contrariar essa hegemonia, em particular grandes potências, como a União Europeia, a Rússia e a China.

 

Ordem “uni-multipolar”

A hegemonia actual dos Estados Unidos é um facto indesmentível, incontornável, e não resulta apenas do seu inigualável poderio militar. Os EUA são uma superpotência em todos os domínios do poder – do militar, político e estratégico ao económico, tecnológico, científico e cultural. Os Estados Unidos detêm claramente a supremacia e são omnipresentes no mundo, sendo obrigatório reconhecer que a sua hegemonia não emana apenas do poder para impor e coagir, mas também de um grande capital de influência e de “poder de atracção”. Evidentemente, a implosão da URSS acentuou o desnível do poder e da força norte-americana relativamente aos restantes países, ficando num mundo privado de um adversário único relevante.

Na presente conjuntura, o objectivo estratégico declarado dos Estados Unidos é impedir que qualquer potência ou coligação de países iguale o poderio americano, reforçar o diferencial de poder em relação a todas as outras potências, e instaurar uma verdadeira pax americana mundial. Não podem ser coagidos, não se lhes podem impor regras, condutas e comportamentos que os próprios não queiram assumir e respeitar e, no entanto, gozam de uma posição que lhes permite virtualmente intervir onde, quando e como quiserem.

Os limites são fixados por si, nos seus termos e em função dos seus interesses e dos seus ideais, ultrapassando, se necessário, os organismos internacionais a que pertence para forjar coligações de circunstância e de conveniência ditadas pelos respectivos objectivos. Têm o poder efectivo de vetar ou boicotar propostas que afectem os seus interesses, e não estão dispostos a ceder ou a partilhar competências que consideram ser exclusivamente suas, ou parcela alguma da sua soberania, numa definição clássica que a entende como “um poder sem igual na ordem interna e sem superior na ordem externa”. Tal situação gera inevitavelmente tendências unilateralistas nos EUA, porque, dispõem de poder suficiente para agir sozinhos. Pretendem assumir o papel de regulador da ordem mundial, podendo substituir-se, se necessário, aos mecanismos multilaterais formais; e identificam largamente os interesses e os ideais americanos com os da comunidade internacional – a defesa de uns serve a implementação dos outros.

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A faceta “multi” e os limites à “unipolaridade”

O facto inegável da existência de uma só superpotência, no entanto, não implica que, na realidade, a ordem internacional seja verdadeiramente unipolar, entendida como uma situação em que, para além da superpotência solitária, não existem grandes potências significativas. Apesar da sua hegemonia, os Estados Unidos não exercem, de facto, uma unipolaridade efectiva, por quatro razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque a unipolaridade descreve um modelo com um único poder determinante.

Ora, no modelo actual, parece evidente que a superpotência coexiste com outros poderes regionais e internacionalmente muito relevantes, como a China, a União Europeia ou a Rússia, também eles determinantes para a resolução de grandes questões internacionais e regionais. É por isso que, na actual arquitectura do poder mundial, não se podem ignorar outras grandes potências, cujas capacidades, percepções, ambições e evoluções são atentamente seguidas e ponderadas pela superpotência e por outros actores internacionais, embora não disponham nem do poder nem as ambições universais dos EUA. Além disso, a enorme disparidade militar favorável aos EUA não significa que a dissuasão não funcione ou que eles possam ou queiram coagir pela força outras grandes potências.

Segundo, se é verdade que os EUA são a superpotência no pleno dos poderes, também não podemos deixar de reconhecer que, em algumas áreas do poder, defrontam rivais à altura. Do ponto de vista geoeconómico, os EUA confrontam-se com rivais de poder semelhante, em particular a União Europeia, mas também o bloco asiático, liderado pelo Japão, com a China à espreita. Em termos científicos e tecnológicos, a Europa e o Japão disputam a supremacia com os norte-americanos em muitas áreas; numa óptica mais cultural ou civilizacional. O mundo é ainda menos propício ao domínio americano – basta recordar as dificuldades de penetração dos “valores ocidentais” e da cultura norte-americana no mundo árabe, na imensa China, ou na populosa democracia indiana.

Em terceiro lugar, o mundo permanece demasiado anárquico e complexo para intenções hegemónicas absolutas, sendo que a tendência é para uma complexidade crescente, razão pela qual, não só a superpotência não se consegue impor como o único pólo de poder, como também não consegue resolver grandes questões internacionais por si só. Assim, o êxito na resolução dos mais importantes dilemas internacionais – por exemplo, os esforços contra a proliferação das armas de destruição massiva e de tecnologia míssil, a guerra contra o terrorismo, a gestão de crises e conflitos ou a pacificação e a estabilização de uma região do globo – depende quer do empenhamento efectivo dos Estados Unidos quer da cooperação com, pelo menos, algumas outras potências, cujo papel e estatuto regional e internacional são verdadeiramente imprescindíveis. Por outro lado, a estabilidade internacional e nas várias regiões depende tanto do comportamento da única superpotência como da postura das potências regionais, embora, globalmente, os Estados Unidos sejam, de facto, “a nação indispensável”, parafraseando Madeleine Albright.

Finalmente, os Estados Unidos não se mostram preparados para impor uma gestão verdadeiramente unipolar do mundo, não apenas por factores externos, mas, igualmente, por razões internas, uma vez que os cidadãos norte-americanos recusam assumir os sacrifícios financeiros e humanos que tal imposição exigiria – o fardo seria incomportável. Na verdade, há grandes restrições ideológicas, sociais, económicas e políticas intrínsecas a um regime democrático como é o dos Estados Unidos, que os impedem, por exemplo, de aproveitar a oportunidade desta hegemonia para um confronto preventivo directo com os maiores e potenciais opositores. Acresce que a opinião pública norte-americana não aceita formas muito violentas ou malévolas de coerção, pelo menos duradouramente, sem as quais é muito difícil impor a unipolaridade e preservar um sistema imperial.

 

O jogo de “contenções mútuas e múltiplas”

Desta actual ordem internacional uni-multipolar decorre um grande confronto geopolítico, ou melhor, uma sucessão de confrontos geopolíticos, de competições geoestratégicas que, no seu conjunto, funciona numa espécie de “choques múltiplos de contenções e competições”. Num primeiro plano, temos um vasto confronto entre a pressão hegemónica dos Estados Unidos e as três grandes potências regionais – UE, Rússia e China –, entre outros, que se batem no sentido de conter ou mesmo contrariar essa hegemonia.

Estas três potências são actores completamente distintos entre si, em praticamente todos os planos, desde a relação com a superpotência até às respectivas capacidades e ambições, mas possuem elementos comuns. São regionalmente proeminentes; ambicionam um mundo verdadeiramente multipolar, procurando alcançar um outro estatuto e desempenhar um papel mais relevante nos assuntos internacionais; e sentem-se, de uma forma ou de outra, “contidos” nas suas aspirações pelos EUA. Cada uma destas grandes potências procura ser reconhecida como um parceiro estratégico relevante pela superpotência, ao mesmo tempo que montam estratégias anti-hegemónicas – embora o façam de forma bem distinta e não coordenada entre si – e políticas destinadas a “multilateralizar” os Estados Unidos. Neste sentido, encaram os tratados, as convenções, o Direito Internacional e os mecanismos multilaterais formais como o principal meio de “contenção” dos EUA e, sobretudo, o Conselho de Segurança das Nações Unidas como forma de “multilateralizar” as acções americanas.

Num segundo plano, temos um confronto geopolítico entre outros poderes e as potências regionais proeminentes – na Europa, Reino Unido e outros versus eixo franco-alemão; na Ásia, o Japão e Taiwan (Nordeste Asiático), a Índia (Ásia do Sul) e países ASEAN (Sudeste Asiático) face à China; na Eurásia, o GUUAM (Geórgia, Ucrânia, Uzbequistão, Azerbaijão e Moldávia) mais o Turquemenistão (da Europa Oriental ao Cáucaso e Ásia Central) e ainda a Turquia (em relação à Transcaucásia) face à Federação Russa. Este nível de competição é habitualmente arbitrado, vigiado e muitas vezes instrumentalizado pela superpotência.

Num terceiro plano, temos outro nível de confronto de dimensão mais reduzida e variada entre “outros poderes” – Índia v. Paquistão, Coreia do Norte v. Coreia do Sul, Israel v. países árabes, Arménia v., etc. Este nível de competição é simultaneamente “vigiado” e controlado pela superpotência e pelas potências regionais significativas, ou então conta com as suas ingerências.

Num quarto nível do complexo xadrez geopolítico, encontram-se muitas outras pequenas e médias potências que procuram aumentar o seu estatuto e a sua relevância regional e internacional: Espanha, Itália, Grécia, Polónia, Portugal, Holanda, Ucrânia e Turquia, entre outros, na Europa; Austrália em direcção ao Sudeste Asiático; México na América do Norte e Central; Irão, Egipto, Arábia Saudita, Turquia e, eventualmente, de novo o Iraque, no Golfo Pérsico/Médio Oriente; África do Sul, Angola, Ruanda, Uganda, Congo e Nigéria, no subcontinente africano; Brasil e Argentina na América Latina; entre outros.

No fundo, todos os países procuram aumentar a sua margem de manobra e de influência nas relações internacionais, jogando as suas estratégias no favorecimento ou na contenção dos EUA e das outras grandes potências. Para conter a emergência e a afirmação de outras grandes potências, a superpotência pode pretender tirar partido de velhos antagonismos e rivalidades que aquelas têm com outras potências regionais. O estatuto e poder de atracção e de coerção dos EUA permitem-lhe, de facto, gerir e instrumentalizar as rivalidades, quer entre as grandes potências, quer entre estas e outras potências regionais.

Da mesma maneira, para contrariar, conter ou contrabalançar a superpotência, as outras grandes potências podem aproximar-se entre si ou promover “parcerias” com outros países antagonistas, proscritos ou apenas adversos à “ordem imperial americana”. Ora, este conjunto de dinâmicas – que envolvem a superpotência, as grandes potências, e ainda as outras médias ou pequenas potências regionais –, já é perceptível na actualidade e aumentam o risco de uma evolução em escalada na degradação do ambiente e da crispação internacional, catalisando a confrontação em vez da cooperação. Com efeito, a uni-multipolaridade convive com este dilema pela possibilidade de uma má gestão da situação por parte das principais potências, em virtude da relativa insatisfação com a sua posição actual, procurando, por isso, impor a unipolaridade ou buscar a multipolaridade, contendo-se mutuamente.

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* Luís Tomé

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL. Mestre em Estratégia pelo ISCSP. Doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra. Docente na UAL. Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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