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Herança judaico-cristã e Constituição europeia

Alberto Costa *

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A primeira vez que desde a Antiguidade reaparece o termo “europeus” é numa crónica do século VIII alusiva à vitória cristã sobre os “Sarracenos”em Poitiers (732). Denis de Rougemont gostava de celebrar esse texto como “a certidão de nascimento da Europa histórica e política”. Tratava-se então de uma assumida “Europa cristã” que, durante perto de um milénio, até ao segundo cerco de Viena (1683), sentiria ainda a ameaça do Islão e que só nos tratados de Vestefália (1648), reafirmando os valores cristãos, se abriria à separação entre a Igreja e o Estado.

 

O lugar do cristianismo

O recente debate sobre o lugar do cristianismo, ou da herança judaico-cristã, no futuro tratado constitucional, deu prevalência, à entrada do século XXI, a um olhar europeu mais aberto – sobre si e sobre os outros. Na Europa actual há diferentes tradições e particularismos constitucionais a reger as relações religião/igrejas/Estado. Há países da União Europeia com autênticas religiões e igrejas de Estado ou situações de claro privilégio (Dinamarca, Grécia, Reino Unido); há outros com invocações ou referências constitucionais a Deus ou à Santíssima Trindade (Alemanha, Irlanda, Grécia); e vários outros que consagram concepções postulando a total laicidade do Estado (grupo em que pontifica a França). Esta diversidade é reconhecida e valorizada no actual compromisso europeu, havendo disso expressão directa, por último, no Tratado de Amesterdão (1997), que incluiu uma “Declaração relativa ao estatuto das igrejas e das organizações não confessionais”, onde se estabelece que “a União respeita e não afecta o estatuto de que gozam ao abrigo do direito nacional as igrejas e associações ou comunidades religiosas dos Estados-membros” e que “a União respeita igualmente o estatuto das organizações filosóficas e não confessionais”.

 

A liberdade religiosa

Ponto comum a todos os ordenamentos nacionais da União e elemento estruturante do modelo europeu é, não obstante tal diversidade, a consagração e garantia da liberdade religiosa, que a nível europeu adquiriu expressão, primeiro, com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950) e depois com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, objecto de proclamação no Conselho Europeu de Nice (2000). A Carta dos Direitos Fundamentais não trouxe, nem tinha de trazer, neste ponto, verdadeiras inovações. Além das cláusulas já introduzidas em Amesterdão e outras de carácter promocional, ficou aí reconhecido que “todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e de celebração de ritos”. Há que falar com rigor, a este respeito, de uma consolidação – e assim também se passará no âmbito do tratado constitucional (que terá anexa uma declaração a abordar o ponto).

 

Laicismo e religião na Convenção

Mas foi na convenção que preparou a Carta – de composição já aproximada à da futura “Convenção Europeia” – que se registaram os primeiros confrontos sobre a pertinência de uma específica referência religiosa numa carta europeia de direitos fundamentais. Perante a inultrapassável resistência de posições que, de uma forma ou de outra, se inspiravam no laicismo, o compromisso final veio a estabelecer-se em torno de uma menção, no preâmbulo da Carta, ao mais vasto “património espiritual e moral” da União Europeia (expressão que na tradução alemã inclui no entanto a referência religiosa). É irónico que na oposição à inscrição religiosa se tenha destacado o executivo francês, quando, no seu país, integra o bloco de constitucionalidade da República a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, que menciona ter sido adoptada “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo” – afinal uma forma particular de “invocatio Dei”.

A convenção convocada pelo Conselho Europeu de Laeken (2001) – denominada “Convenção sobre o Futuro da Europa” (2002-2003) – cedo consolidou entre as suas grandes opções a inclusão da Carta no projecto de constituição europeia que se propôs elaborar, como sua parte integrante. Tratava-se, em rigor, de atribuir força jurídica, e neste caso força máxima, a uma Carta que em Nice só fora objecto de proclamação política e cujo conteúdo se não pretendia alterar. Pareceria que estava assim feita a economia do confronto verificado na primeira convenção, com a recondução automática do consenso que a referência ao “património espiritual e moral” europeia proporcionara. Não foi assim que aconteceu. Quer o preâmbulo quer o projecto do articulado constitucional respeitante aos “valores da União”, apresentados pelo presidium da Convenção, e que se desenvolviam na linha da Carta, foram objecto de contestação fora e dentro da assembleia.

No primeiro caso, para além da acção persistente conduzida por João Paulo II (que além do mais, chegou a deslocar-se ao Parlamento Europeu e a convidar o Presidente da Convenção para o Vaticano) e com participação de vários governos, diversos movimentos dedicaram-se a suscitar apoios na maior parte dos países da Europa, no sentido de consagrarem no projecto a invocação de Deus e, em particular, o cristianismo. No segundo caso, cerca de um quarto dos membros da Convenção – entre eles Elmar Brok, que aí liderava os populares europeus – viriam a propor a inclusão da referência a Deus no enunciado dos valores da União, segundo uma fórmula decalcada da Constituição polaca (que alude, primeiro, àqueles para quem Deus é a fonte dos valores, acrescentando depois aqueles para quem essa fonte é outra que não Deus). Em termos idênticos, viria a ser proposta (contando-se aqui também entre os subscritores o representante do governo português) a alteração do preâmbulo, de forma a ficar patente no projecto constitucional a específica inspiração decorrente da “herança judaico-cristã”.

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As vertentes do debate

Nos debates, dentro e fora da Convenção, viria a ser posta em realce a inconveniência de formulações, ainda por cima de ambição “fundante”, que separassem, ou postulassem a separação, entre crentes e não crentes: de europeus no passado necessariamente crentes, passar-se-ia, no discurso constitucional contraproposto, a europeus da categoria crentes, em primeiro lugar, seguidos de europeus da categoria não crentes, em segundo lugar. Destes se poderia dizer que, em matéria de valores, eram “cidadãos de segunda zona”. Contra a pretendida incorporação da menção judaico-cristã, para lá da transposição para o plano europeu da clássica visão laica, ergueram-se argumentos impressivos retirados, quer da história, quer do contexto actual. A invocação judaico-cristã, escolhida agora como sinal constitucional europeu, representaria sempre uma mensagem pró-judaismo (para além de pró-cristianismo) prolongando a diferença ou a hostilidade em relação ao Islão. Como foi dito, um contexto constitucional com esse registo pareceria um sinal a encorajar a eventual adesão de Israel e a contrariar a da Turquia.

Mesmo sem entrar em linha de conta com a provável admissão, a prazo, da Turquia, vivem hoje na Europa cerca de quinze milhões de muçulmanos. Seria justificado que a primeira Constituição europeia, a esta distância de Poitiers, lhes viesse lembrar – e a todos os outros pelo mundo fora – a prevalência do Deus dos cristãos? A exclusão simultânea de muçulmanos e judeus da história da Europa e o seu apagamento da memória europeia não podiam, num momento constitucional, ser objecto de uma revisão parcial, sobretudo numa altura em que a imigração, na ordem dos factos, questiona a comum representação da Europa como uma “entidade secularizada de fundamento cristão”.

A maioria dos membros da Convenção que elaborou o projecto do tratado constitucional manifestou-se indisponível para acolher formulações que divergissem das constantes da Carta – e as propostas iniciais acabaram por transitar para o compromisso final sem alterações de maior. Porém, no âmbito da conferência intergovernamental (2003-2004), um grupo minoritário de governos (entre as quais alguns dos países do alargamento e Portugal) não se conformou com esse resultado e procurou rever o texto constitucional de forma a inscrever nele a menção ao cristianismo. Também na conferência das comissões de assuntos europeus dos parlamentos nacionais (COSAC) que decorreu em Roma, durante a CIG, o tema foi objecto de controvérsia, sem que, no entanto, tenha sido apurada qualquer orientação maioritária favorável a tal alteração. Não obstante os trabalhos intergovernamentais terem decorrido sob presidências com visões e ordenamentos particulares neste domínio (Itália, Irlanda), a pretensão acabaria por ser afastada.

 

O projecto de Tratado Constitucional

No projecto que recebeu, por fim, a aprovação dos vinte e cinco governos da União Europeia e que vai ser submetido aos parlamentos nacionais e povos da Europa, não se encontra assim, de caso pensado, uma especificação cristã ou judaico-cristã do património europeu – e, em matéria religiosa, o valor que é constitucionalmente assumido pela Europa é o da liberdade. Esse texto integra uma garantia plena não só da liberdade e da diversidade religiosa como também, na linha de Amesterdão, do estatuto de que gozam as igrejas e organizações não confessionais ao abrigo dos direitos nacionais. Reconhece ainda a identidade e o contributo específico de tais igrejas e organizações, comprometendo a União num diálogo aberto, transparente e regular com elas (I-51º, II-10º, II-22º). Mas, respeitando os estatutos nacionais, o projecto constitucional europeu resistiu à tentação de “identificar” a União – ainda que sob o ambíguo signo da história – com uma específica referência religiosa. Ao mesmo tempo que, recusada a pretensão harmonizadora ou de imposição de um modelo particular, as relações Igreja-Estado ficam na esfera da competência dos Estados.

 

Conclusão

Em correspondência com a realidade, histórica e actual, de uma Europa pluri-religiosa, temos pois um mais genuíno e irrestrito acolhimento constitucional da pluralidade. E se se quiser falar de laicidade à escala da Europa ou de modelo europeu da laicidade terá de se pensar numa laicidade plural e em movimento: países onde até há pouco a separação Igreja-Estado quase não se aplicava abrem-se a ela (Suécia) e países onde essa separação ia mais longe dão provas de mais atenção ao fenómeno religioso (é o caso da França), ao mesmo tempo que, nos últimos vinte anos, a percentagem de jovens adultos europeus (18-29 anos) que se declaram sem religião sobe de 22% para 32%.

Como a crónica do século VIII, uma Constituição europeia tem também uma dimensão incontornável de “certidão de nascimento” – e com ela os europeus têm, outra vez, a possibilidade de “reaparecer”, numa União baseada em novos princípios. A não identificação da União com qualquer particular inspiração, herança ou orientação religiosa e a colocação de todas as convicções sob uma idêntica garantia constitucional europeia de liberdade e de diversidade podem constituir traços da identidade da Europa no mundo do século XXI. O projecto que vai ser submetido aos parlamentos e aos povos tem condições para se tornar a sua “certidão de nascimento” – porque não será mais ou menos amigo ou mais ou menos próximo de qualquer cidadão em função da sua convicção em matéria religiosa. Depois de Poitiers e Vestefália, será a vez de Roma, com a assinatura do tratado constitucional, representar um novo marco?

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* Alberto Costa

Advogado. Deputado à Assembleia da República desde 1991. Representou o parlamento português na Convenção sobre o Futuro da Europa, que elaborou o “projecto de tratado que institui uma constituição para a Europa” (2002-2003). Presidiu à Comissão parlamentar de Assuntos Europeus. Ex-Ministro da Administração Interna.

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