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Janus 2005



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O diálogo cultural no espaço do Mediterrâneo

João Maria Mendes *

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Os europeus vão discutir, nos próximos dez anos os prós e contras da eventual adesão da Turquia à UE. Não é um prazo longo, dada a magnitude da questão, que suscita tensões intra-europeias e riscos de implosão da UE. A discussão reconfigurará a totalidade dos diálogos civilizacionais no espaço do Mediterrâneo entre a Europa e o Islão, que até agora encarávamos sobretudo numa perspectiva Norte/Sul. Na óptica civilizacional, a eventual adesão da Turquia seria, de facto, mais significativa do que o alargamento a dez novos membros em 2004, mais os dois (Roménia e Bulgária) previstos para 2007.

Actualmente, a UE alberga já mais de dez milhões de muçulmanos, mas contará mais de 92 milhões em 2015, se a Turquia aderir nessa data, como preconizava o relatório Verheugen de Setembro 2004. À margem da questão turca, e no estado actual das mentalidades, dos medos reais e imaginários e das ignorâncias cultivadas, tem parecido irrealista visar maior coerência política, económica, cultural e histórica do Espaço Mediterrânico. Mas a discussão da adesão turca abre a porta ao desbloqueamento dessa recomposição, obrigando a Europa a reavaliar o interesse estratégico da admissão, no seu seio, de uma potência pesada do ponto de vista demográfico e militar, cujo PIB per capita é apenas 28,5% da média europeia, mas que, com o seu islamismo moderado, pode representar, se integrada, uma versão inovadora de “Estado pós-islâmico”, “terceira via” entre a teocracia pré-moderna e a modernidade laica ocidental.

A adesão turca seria também o contraponto civilizacional à convicção americana de que o poderio militar, além da costa oriental mediterrânica, prevalece sobre o diálogo. Noutro registo, que vale a pena ouvir, Zianddin Sardar, conselheiro de governos muçulmanos da Ásia — um dos muitos shaping actors que ajudam a compreender os shaping factors regionais — sublinha que o Islão se sente globalmente atacado pela pressão para se modernizar, e que “no Islão actual já ninguém quer ser moderno”, significando que “o projecto ocidental de modernização do Islão está ultrapassado, apesar de se manter muito activo”.

Essa ultrapassagem gera danos colaterais: por exemplo, o conflito interislâmico entre o clero pré-moderno e uma opinião pública jovem e sobretudo feminina, que não tem como modelos o secularismo ocidental nem a teocracia da charia (caso do Irão e das monarquias petrolíferas), é, na prática, menosprezado pela Europa. Para o Islão contemporâneo, o Ocidente cristão está hoje, no seu fato laico, a fazer do islamismo um pária das religiões, como no passado, com outras vestes, fez com o judaísmo — o que também é sentido no mundo especificamente árabe.

Finalmente, vista do Islão, a prioridade dada pela UE ao alargamento para Leste pôs em evidência as solidariedades entre mundos cristãos e ocidentais, mas também a desconfiança histórica dos europeus em relação ao Sul e Sudeste mediterrânicos. De facto, era a Turquia o mais antigo candidato ao “alargamento para Leste”. A Europa moderna abriu uma excepção para a Grécia ortodoxa, por lhe ter atribuído um papel seminal na sua própria história, o do “milagre grego”. Veremos se a Europa contemporânea abrirá segunda excepção para a Turquia islâmica mas não teocrática, à custa de uma alteração profunda dos seus hábitos identitários. Mais genericamente: nenhuma organização internacional tem o “Espaço Mediterrânico” como interlocutor ou o reconhece como entidade geopolítica formal, mas todas as que, directa ou indirectamente, têm na sua agenda as relações entre o mundo ocidental e o mundo muçulmano, se preocupam com o que nele se processa. O passado recente da interface Europa do Sul/Norte de África/Próximo Oriente exprime essa preocupação: no início da década de 70 do séc. XX, os presidentes Boumedienne (Argélia), Bourguiba (Tunísia) e Pompidou (França) desejavam tornar o Mediterrâneo um “lago de paz”, estimulando a cooperação entre Europa e África do Norte.

Logo após o choque petrolífero de 73, a então CEE e a Liga Árabe lançaram um “Diálogo Euro-Árabe” (nas vertentes política, económica e cultural) que definhou sem liderança partilhada e face à desconfiança dos EUA, temerosos de um novo protagonismo identitário regional. Na década de 80, o Mediterrâneo protagonizou nova ameaça: iria tornar-se um possível lugar de tensões futuras, devido à pressão migratória Sul/Norte, que parecia ir gerar um rolo compressor? É um fantasma que mantém actualidade e que pede políticas comuns sobre as migrações. Pouco depois, a anulação dos resultados eleitorais na Argélia (1991), favoráveis à FIS islâmica, seguida da sangrenta “guerra sem números”, e a repressão de fundamentalistas, a meio da década, no Egipto, davam o tom das novas tensões político-religiosas no seio do mundo árabe — mundo que já era, há muito, minoritário no Islão.

 

O pós-11 de Setembro

A seguir ao 11 de Setembro de 2001, o medo de que sucedâneos da Al Qaeda venham a liderar ideologicamente o conjunto do Islão, como vanguardas activas de um vasto corpo mole, relançou as apreensões que a região suscita. E, de facto, Marrocos juntou-se à Arábia Saudita e a outros estados árabes como ninho do islamismo terrorista (atentados de Casablanca a 16.05.2003, de Madrid a 11.03.2004). Talvez por isso, na sua mensagem aos últimos Encontros de Fez, em Maio, Romano Prodi, ainda presidente da Comissão Europeia, exprimia apenas um optimismo prudente: “O choque de civilizações no espaço mediterrânico continua a ser — de momento — uma quimera instrumentalizada por alguns e desejada por outros, sobretudo desde o 11 de Setembro de 2001 e os horrores do Iraque”. A Comissão criara, em 2002, um “grupo de sábios” para monitorizar o diálogo entre povos e culturas no espaço euromediterrânico. Mas Prodi sublinhava que “o diálogo cultural só é um valor acrescentado se contribuir para mais coerência, partilhada por todos, nas dimensões política, económica e da segurança”.

Aos que acusam a UE de “falta de firmeza” por insistir no diálogo, Prodi respondia que “os desenvolvimentos trágicos no Iraque e no Médio Oriente (conflito israelo-palestiniano) confirmam o carácter vão e contraprodutivo da abordagem que baseia os valores nas relações de força”. Cooperação para o desenvolvimento tem sido a chave das relações regionais Norte/ Sul: entre a Europa e o Mediterrâneo árabe proliferam protocolos, projectos e programas bilaterais e multilaterais, com destaque para o Partenariado euromediterrânico de 1995, a Convenção de Barcelona assinada desde 1976 e ampliada também em 95 (sobre a redução da poluição marítima e a protecção do mar), os programas Med Urbs (cooperação entre cidades), Med Campus (interuniversitário), Med Invest (desenvolvimento das PME), Med Médias, Euromedis (saúde pública), a Universidade do Mediterrâne (Aix Marselha II) e muitos outros. A Convenção de Barcelona, que ainda em 2004 deu origem a novos protocolos, é a cúpula da PMR (Política Mediterrânica Renovada), surgida da plêiade de acordos de financiamento assinados na primeira metade da década de 90: face às 800 mil toneladas de petróleo derramadas no mar e aos 430 milhões de toneladas de efluentes não tratados, além dos metais pesados e pesticidas, até países incompatibilizados (Grécia e Turquia) aceitaram unir esforços. Vista globalmente, porém, esta actividade constante, multifacetada e meritória tem o sabor de magro paliativo contra o fosso que separa a Europa da África do Norte e do Próximo Oriente (ver indicadores).

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Simulacros de diálogo

Os Encontros de Fez elegem quatro temas: “Por uma democracia global”, “As espiritualidades face aos problemas do mundo”, “Economias solidárias” e “Culturas de paz no Médio Oriente”. Mas Mohammed Arkoun, argelino, professor emérito da Sorbonne e editor da revista Arabica —outro shapingactor— exprime o cansaço de programas como este, que tendem a perpetuar lugares-comuns. Para ele, “uma das razões políticas que levam a UE a reactualizar o diálogo no espaço mediterrânico é a clivagem histórica e cultural entre os árabes-iranianos-turcos muçulmanos e a Europa, entre esta e um Islão político combativo, oposto à modernidade de um Ocidente cada vez mais envolvido numa globalização sem projecto humanista”.

Para Arkoun, as derivas fundamentalistas actuais do Islão assentam também, tanto na histórica falta de diálogo sobre o passado colonial da Europa no Mediterrâneo islâmico, como no facto de, na Europa “cada vez menos humanista”, tudo o que respeita ao Islão ter sido relegado, desde o séc. XIX, para o gueto dos “Departamentos de Estudos Orientais”, dos “Middle & NearEast studies” e das “curiosidades egípcias”. Até o Império Otomano, cuja história se interliga com a europeia desde 1453, foi empurrado para o gueto orientalista. Daí resulta um simulacro de diálogo, não entre povos, mas entre instituições formais dos Estados-sem-Nações. Ora esse simulacro de diálogo, rico e institucional, é precisamente algo que os fundamentalismos islâmicos — e não só os recentes— rejeitam em conjunto.

O regresso à cena política internacional do valor religioso não domesticado pela razão política, na forma dos novos extremismos islâmicos violentos — e os seus efeitos nos Estados membros da Liga Árabe — pode induzir um enorme passo atrás no diálogo civilizacional e dificultar o caminho que levaria a equilíbrios duráveis em todo o Espaço Mediterrânico. A adesão turca, que gera expectativas contraditórias no Mediterrâneo árabe e no Médio Oriente, poderia induzir um enorme passo em frente. Em pano de fundo: o ressentimento do Islão face à Europa é hoje maior do que no tempo da utopia laica do “lago de paz”, porque a Europa não intervém para contrabalançar a política dos EUA (entendida como “djihad americana”) e porque o Islão continua a esperar da Europa que reintegre o espaço mediterrânico no universo de sentidos e de valores que estão na origem dela própria — problemática que a Europa “cada vez menos humanista” tende a rejeitar como “medieval”.

 

Informação Complementar

A OLIVEIRA DELIMITA O CHARCO DAS RÃS

Água “entre terras”, bordejando Europa, Ásia e África, o “mare nostrum” da Roma imperial — que dominou toda a sua extensão, ao contrário do Islão e do Império Otomano — apenas comunica com o Atlântico através do estreito de Gibraltar, de 300 metros de profundidade, que liga Marrocos e Espanha (e que se vai lentamente reduzindo com a “subida” contínua da placa tectónica africana). Assim fechado às grandes correntes atlânticas, o Mediterrâneo tem marés de fraca amplitude e a evaporação e salinidade são, nele, elevadas. Espaço de contacto de muito diversas comunidades humanas desde a antiguidade e primeiro lugar de expansão das três religiões monoteístas, é justamente celebrado como berço de civilização e de culturas. No seu clássico “Mediterrâneo: ambiente e tradição”, de 1962, Orlando Ribeiro escreveu que os homens se juntaram em seu redor como “rãs em torno de um charco”. Homens que fizeram as civilizações suméria, assíria, egípcia, hebraica, grega, romana, cristã, islâmica... e alimentam ainda hoje fantasmas imorredouros: “milagre grego”, “pax romana”, “Andaluzia islâmica”.

A maioria dos litorais aráveis, geralmente pobres, são parcelas pouco espessas em vertentes montanhosas, sobre rocha calcária, o que condicionou sempre as agriculturas de toda a região. A par do carácter montanhoso e recortado das suas costas, são sobretudo o clima e a flora que lhe dão unidade. Se, politicamente, o espaço mediterrânico é formado pelos 20 Estados que partilham as suas costas, do ponto de vista natural ele é sobretudo o “mundo da oliveira”, muito mais limitado: em todo o Norte de África o deserto comprime o litoral; na Europa, o Norte de Itália, rico e industrializado, diz nada ter a ver com o “Mezzogiorno”; a meseta central e o Norte de Espanha, a Bretanha, a Normandia e o interior franceses, a Sérvia (que só através do Montenegro aflora o mar), a Bósnia-Herzegovina, a Anatólia turca, a maior parte da Síria, só por sub critérios satisfazem, e umas mais que outras, a definição de mediterrânicas. Mas, se o espaço da oliveira e seu clima é um continuum que define o mundo mediterrânico, ele atinge a fachada atlântica da Península Ibérica, o Portugal latino, que sempre reivindicou (e por boas razões históricas: colonizações romana e islâmica, recente identificação com a pobreza relativa da Europa do Sul) a sua dupla identidade atlântica e mediterrânica.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na UAL. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Responsável pelo projecto Janus Online.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Países do espaço mediterrânico comparados com a Noruega

Link em nova janela Distribuição da oliveira nas margens do Mediterrâneo

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