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Onde estou: | Janus 2005 > Índice de artigos > Dinâmicas culturais na Europa > [Turquia, um país europeu?] | |||
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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! Numa edição recente do The Economist colocava-se a questão sobre se a Turquia seria uma “ponte entre o Oriente e o Ocidente ou uma ilha no meio de águas revoltas?” A República da Turquia foi fundada em 1923 quando Mustafá Kemal Ataturk chegou ao poder. Ataturk, que significa “pai dos turcos”, na verdade salvou o país da desintegração, criando uma nova opção política para o mundo islâmico, mais tarde seguida pelos líderes de outros países – Habib Bourguiba na Tunísia e Reza Phalavi no Irão. O kemalismo, anunciando pela primeira vez a separação entre política e religião num país islâmico, tornou-se uma doutrina política, fazendo-se acompanhar do nacionalismo turco, que Kemal soube manipular e cuja ideologia continuou a orientar a actividade política dos partidos mais importantes até à actualidade. A primeira aproximação da Turquia à Europa comunitária, então CEE, fez-se em 1963, sendo-lhe outorgado o estatuto de membro associado. Posteriormente acorda-se no início das negociações para a concretização de uma união aduaneira, que só viria a estar concluída em 1995. Em Dezembro de 1999 a UE aceita a candidatura da Turquia, mas só na Cimeira de Copenhaga de 2002 a questão volta a ser discutida, sendo adiado para Dezembro de 2004 o possível início das negociações. Um dos argumentos utilizados pelos opositores da adesão da Turquia é a sua total diferenciação social e cultural face à restante Europa, nomeadamente no aspecto religioso. Outros argumentam que para a UE provar que não é um “Clube de Cristãos” deve integrar um país maioritariamente muçulmano e que constitui um exemplo de coexistência entre democracia e islamismo.
A cultura turca Ataturk considerou a cultura como a “base da república turca”. Neste contexto apoiou o estudo das civilizações mais antigas da Anatólia com o objectivo de esclarecer o passado pré-islâmico do povo turco: o objectivo de Ataturk parecia ser sobretudo o estabelecimento de uma identidade cultural turca anterior à identidade islâmica. Neste contexto substituiu o alfabeto árabe pelo latino, conseguindo mesmo modificar temporariamente a língua utilizada nas mesquitas – o árabe – pelo turco. Empreendeu também um estudo profundo da língua turca, tentando libertá-la de todos os estrangeirismos adquiridos durante o período otomano, pela mistura com elementos persas e árabes, numa perspectiva de manter uma língua genuinamente nacional. A pintura, a escultura e as artes decorativas receberam um novo impulso sob os auspícios da República, considerando que durante o período otomano se verificaram vários entraves ao desenvolvimento das artes plásticas, uma vez que a representação da forma humana era considerada uma blasfémia. Também a música clássica ocidental, a ópera e o ballet foram incentivados. No que respeita ao teatro, houve uma grande abertura ao teatro ocidental, negligenciando-se em parte o teatro tradicional turco, que consistia em peças com marionetas, teatro de sombras, contadores de histórias (Meddah), etc. O cinema turco conheceu nesta época um período de crescimento assinalável.
A sociedade Já no final do período otomano o papel da mulher na sociedade sofreu alterações, prosseguidas com o advento da era republicana. Homens e mulheres tornaram-se iguais ao abrigo do Código Civil de 1926. Os casamentos poligâmicos foram abolidos e as mulheres adquiriram o direito de voto. No entanto, apesar de civilmente serem outorgados às mulheres os mesmos direitos que aos homens, na prática várias restrições e condicionamentos orientam o dia-a-dia das mulheres turcas. No Sudeste turco, zona habitada sobretudo pela comunidade curda, prevalecem práticas patriarcais, que se materializam nos casamentos arranjados, normalmente em idades muito jovens; na impossibilidade de a mulher casada ter direitos reprodutivos; nas “mortes por honra” em caso de sexo pré ou extra-marital. Nestas comunidades continua a pagar-se o “preço” ou “prémio” da noiva, concedendo a família do noivo uma determinada quantia à família da noiva, permitindo que se faça uma espécie de transferência de propriedade, passando a jovem esposa a “pertencer” ao marido e à sua família. Em meio urbano e nas classes mais favorecidas, lida-se com alguma tolerância com os encontros entre indivíduos de sexos opostos, não sendo no entanto incentivados se não tiverem por fim o casamento. A amizade entre indivíduos de sexos opostos não é vista como uma possibilidade, incentivando-se a segregação social notória entre sexos. Apesar de a força laboral feminina constituir 18% da mão-de-obra total nas cidades, as mulheres são desencorajadas de trabalhar a partir do momento em que se casam. Só as mulheres de classes favorecidas conseguem ter acesso a profissões consideradas “dignas” para uma mulher: docência universitária, medicina e o exercício do direito. Também o uso do véu pelas mulheres tem sido objecto de discussões acesas no seio da sociedade, constituindo um aspecto simbólico da discussão em torno do papel da mulher na sociedade e no que respeita à sua relação com a religião. Apesar da polémica sobre a proibição do uso do véu em cargos e lugares públicos ter surgido muito antes do que em França, a discussão ainda não está terminada. Muitas mulheres que exercem uma actividade laboral fora de casa reclamam o uso do véu, considerando que assim se encontram mais “protegidas” em sociedade, acrescentando algumas que o véu as protege do facto de serem avaliadas pelo seu aspecto físico e não pelo seu desempenho. Outro motivo alegado para o uso do véu por muitas mulheres tem motivações religiosas, ao considerarem que envergando este símbolo demonstram a sua fé. O estatuto da mulher tem sofrido alterações, relacionadas também com a emigração dos respectivos maridos. Tornando-se chefes de família, as decisões habitualmente tomadas pelos maridos passam a estar a seu cargo: a gestão económica, a educação dos filhos, etc. Também a saída de muitas famílias, aproveitando as políticas de reagrupamento familiar de alguns países de acolhimento, contribuiu para alterar o modelo de família tradicional. A questão do uso do véu está também relacionada com o tema da liberdade religiosa: sendo a Turquia uma democracia, qual a razão para o Estado intervir nas convicções religiosas dos seus cidadãos e suas demonstrações? Neste contexto surge uma segunda questão: qual a relação entre política e religião na Turquia actual? Nas áreas cosmopolitas de Istambul e Ancara existe uma classe pró-ocidental, moderna, adepta do laicismo, a par de comunidades migrantes provenientes da planície da Anatólia, que povoam normalmente os arredores destes centros urbanos (gaecekondus) e que mantêm as tradições alimentares, familiares e religiosas. Embora 99% dos turcos se considerem muçulmanos, as confissões religiosas não são homogéneas. Os sunitas são a maioria, pregando a separação entre o político e o religioso e até mesmo a proibição de uso de vestuário religioso, a não ser pelos líderes religiosos. Os “alevitas”, uma facção da corrente shiita, são partidários do autoritarismo religioso e opõem-se significativamente aos sunitas, que consideram demasiado “brandos”. Em 1926 tomaram-se medidas efectivas para a redução do poder dos líderes religiosos, nomeadamente ao nível da sua influência sobre a política e a educação. Os militares tornaram-se os fiéis guardiões do poder laico na Turquia, causando o ressentimento dos ímãs e crentes fervorosos. Após anos de agitação, regressa-se à necessidade de o Estado supervisionar a educação religiosa: em lugar de deixar proliferar movimentos “subversivos” com ímãs e muftis a pregarem contra a “infidelidade” dos políticos, optou-se pelo ministrar de cursos corânicos e mesmo pela criação de importantes faculdades de Teologia Corânica, orientadas pelo Estado, com dirigentes por este apontados. A tensão entre a secularização desejada pela elite política da Turquia e a exigência, manifestada por uma parte significativa da população, de uma maior influência da religião na vida quotidiana, originou um contínuo de cedências e retrocessos dos governantes nesta matéria. Depois da proibição das escolas corânicas passou-se à aceitação da educação religiosa com o consentimento dos pais, para se passar ao modelo actual, em que a educação religiosa é obrigatória, salvo demonstração expressa da vontade contrária dos pais. Por outro lado, a secularização “militante” da sociedade turca, daquela que constituíra durante o Império Otomano um modelo de todo o mundo muçulmano, deparou com alguns entraves, nomeadamente no que respeita à formação de comunidades islâmicas radicais como a irmandade Sufi, que pretendia o retorno ao sistema de califados e o afastamento da democracia, que considera incompatível com o Islão. Neste contexto é curioso apontar os argumentos utilizados para a rejeição do pluralismo democrático e do laicismo. Para estes grupos, democracia parlamentar significa divisão, que é incompatível com o sentido de todo e indivisível presente na comunidade islâmica. Na resolução de marcar a cada momento a identidade secularista da república turca, os militares têm funcionado como o entrave real e efectivo ao avanço de partidos políticos com conotações assumidamente religiosas. Em 1980 protagonizaram um golpe militar para impedir a tomada do poder por um partido islamita, colocando a Turquia no centro das críticas da Europa comunitária como país assumidamente antidemocrático. No entanto, nas eleições de Novembro de 2002 venceu o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) por maioria absoluta, conotado com orientações islamitas, cujo líder, Recep Erdogan, defende a adesão à UE como ponto essencial da sua agenda política.
Integrar ou não a UE? A maioria da população turca, quando interrogada sobre a possibilidade de adesão à UE, manifesta-se fervorosa e favorável, definindo-se com assombrosa nitidez como pertencentes à “Europa” quando, geograficamente, se encontram mais próximos do Médio Oriente e de uma realidade política e social totalmente diferente da europeia. No entanto a opção europeia parece ser a única para a Turquia. Pelas suas posições de política externa assumidas desde a II Guerra Mundial, não é um elemento acarinhado pelos seus vizinhos árabes. A sua aproximação aos EUA, materializada na sua adesão à NATO, tem-lhe valido críticas fortes, demonstradas não só na diplomacia pouco amigável com o mundo árabe, mas também nas poucas relações comerciais bilaterais existentes com estes países. Também a aproximação à Europa comunitária, desde 1963, não conotou a Turquia com uma política de aproximação aos seus “parceiros” árabes. De facto, tudo aponta para que esta queira ser “europeia”: no seio do próprio país muitas vozes apontam no sentido de que a UE é a única via. Ou ingressa no espaço comunitário, tornando-se parte integrante de um dos blocos económicos mais bem sucedidos do mundo, ou se mantém isolada, sujeita às tentações autoritaristas dos seus movimentos internos, com possíveis apoios no exterior. Os argumentos utilizados pelos partidários europeus da adesão da Turquia sublinham, para além do argumento de contrariar o “Clube de Cristãos”, o influxo de mão-de-obra jovem na Europa envelhecida.
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