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Janus 2005



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As percepções da música

Augusto M. Seabra *

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Em 30 de Abril de 2004, véspera da entrada na União Europeia de 10 novos Estados, ocorreu em Paris uma maratona da “Nouvelle Europe Musicale”, tendo como “padrinho” um dos singulares compositores franceses actuais, Pascal Dusapin. E que disse ele? “Pensamos poder reconheceralgo, identificá-lo, mas afinal escapa-nos.Esta música não é composta segundoas nossas regras, vem de facto de longe.Quando nos formámos com ‘Erwartung’ deSchönberg, não se suporta ouvir a Sinfonianº10 de Chostakovich. E, no entanto, pelasua gestão original do tempo e uma orquestraque nalguns momentos evoca Ligeti ouXénakis, esta sinfonia parece-me bem maisimportante que certas obras da vanguardacontemporânea nascida em Darmstadt” (“Libération” de 30-04-04).

Terá o recuo no tempo sido afinal assim tão longo? Com que categorias procedemos aos reconhecimentos e identificações de “música europeia”? Que discursos e quadros históricos determinaram essas categorias? Pode o esclarecimento desses ser frutífero para um entendimento múltiplo de perspectivas presentes de situações musicais europeias? “As categorias da arte autonomamenteorientada já não se aplicam à recepçãocontemporânea da música; nem sequerda música séria, que foi domesticada como nome bárbaro de música clássica, deforma a permitir às pessoas afastarem-sedela sem problemas”, escrevia Adorno, num dos seus mais importantes textos, “Sobre ocarácter fetichista da música e a regressãoda audição” (Adorno – “Sobre a Indústria da Cultura”, Angelus Novus, 2003). Afinal, de que falamos quando falamos de “música clássica”?

É frequente nas historiografias de arte a construção de grandes narrativas entrópicas e auto-legitimadoras, segunda as quais essa arte só existe autonomamente na sucessão de formas e autores, uns gerando outros, uns negando outros, em evoluções e rupturas. Assim, uma grande narrativa musical supõe o que Wagner pôde deduzir de Beethoven, o que Schönberg pôde deduzir de Wagner – e que, necessariamente, Schönberg compunha para o futuro, para a continuidade desta narrativa do “progresso”. A invocação do profetismo schönberguiano – “Fiz uma descoberta que assegurará asupremacia da música alemã nos próximoscem anos” (era o método dodecafónico) – não deixa de ser, na sua lapidar inscrição de propósitos e referências, um encolho aos propósitos gerais e auto-suficientes desta grande narrativa. Pelo claro intento de nacionalismo cultural, é mesmo uma citação incómoda. E, não obstante, não deixa de também definir um mais circunscrito território musical internamente ao qual Schönberg tinha a perfeita noção de operar. Como também Debussy.

Em 1911, Max Weber publicava “Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música”. Foi porventura a primeira obra a claramente definir certas regras de uma arte, dessa música dita “séria”, agora mais usualmente referida como “música clássica”. Na sequência de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Weber observou na música ocidental um processo de “racionalização”, dos sistemas de alturas das notas, das tecnologias instrumentais, do desenvolvimento de sistemas notacionais complexos e das possibilidades polifónicas que suscitaram, da expansão das orquestras e do alargamento das formas instrumentais. Em variadas culturas existem diferentes tradições musicais, umas mais elaboradas e “eruditas”, outras mais populares. O processo de notação próprio da música europeia originou no entanto uma possibilidade diferente de quaisquer outras tradições: a elaboração musical, a “obra”, pode ser transmitida apenas na sua virtualidade impressa, a partitura, sem a implicação necessária e indispensável de transmissão directa de intérprete a intérprete. A arte “domesticada com o nome bárbaro de música clássica” são pois as elaborações “eruditas” da “tradição europeia” e, do mesmo modo, no atlas planetário das culturas, a “música europeia” é em rigor aquela que correntemente designamos como “música clássica”, mesmo quando “contemporânea”, em primeira audição até.

 

O modernismo, no centro

Uma grande narrativa da modernidade, particularmente influente, foi a que Adorno apresentou em “A Filosofia da Nova Música”, numa antítese lapidar – “ Schönberg e o progresso; Stravinsky e a restauração”. Depois das grandes rupturas modernistas anteriores à I Grande Guerra, o pós-guerra, nos anos 20 e 30, foi assinalado por sistematizações (ou novos tipos de “ordem” após o espectáculo do caos), fundamentalmente duas, o neo-classicismo stravinskiano e o dodecafonismo schönberguiano. Escrito durante a II Guerra e imediatamente após, o ensaio de Adorno – nalgumas deduções até muito para além do que o autor desejaria – foi tremendamente influente na brutal aceleração da história da música europeia que se seguiu ao novo e inaudito cataclismo. A narrativa do “progresso” ganhou expressão num conceito de “vanguarda” e tomou corpo numa “geração de Darmstadt”, que se reunia nos cursos de Verão daquela cidade alemã.

Extremando os pressupostos de Schönberg – já nem desse, aliás, mas do seu discípulo Webern – da organização dos doze sons da escala cromática em séries, o também chamado “serialismo integral” postulou uma geral ordem igualitária dos elementos musicais, não só alturas, mas também timbres, intensidades, ataques, etc. Essa geração, a de Stockhausen, Boulez, Maderna, Nono e Berio, quis fazer “tábua rasa” do passado. De facto, a pujança do “serialismo integral” rapidamente se esgotou. Não obsta a que a sua herança mais directa, difusamente reconhecível no qualifi cativo “pós-serial” (um de vários “pós”), seja ainda hoje não só extremamente presente, como mesmo que esse “pós-serialismo” represente antes do mais o pensamento musical-institucional europeu, com os seus aparatos de apoio e reprodução ao nível de programação e ensino – ocupa o lugar do centro no campo da música europeia.

Boulez é francês, Stockhausen alemão, Maderna, Nono e Berio eram italianos – com a “vanguarda” continuou o “centro” hegemónico da música europeia, aspecto que as historiografias da legitimação considerarão como irrelevante ou espúrio à arte em si e aos seus critérios de percepção; note-se ainda assim que, como com o correr dos anos, se foi tornando musicalmente reconhecível, havia ou há em cada um deles elementos de reenvio para quadros conceptuais e tradições mais particularizadas, afinal correspondendo a essas três componentes historicamente dominantes do “centro”, com o relevo de Maderna, Nono e Berio terem vindo reinscrever destaques italianos também na prática de música de concerto, após dois séculos de estrita remissão à ópera. Mesmo as historiografias entrópicas assinalam com destaque o impacto de dissenção ao serialismo suscitado emblematicamente por “Metastatasis” do grego Xenakis (1954), “Apparitions” do húngaro Ligeti (1960) e “Trenodia às Vítimas de Hiroshima” do polaco Penderecki (1960). Para além do facto do primeiro, que sempre se afirmou “um grego clássico do século XX”, ser um refugiado em França após a guerra civil no seu país, e do segundo ser um expatriado do comunismo refugiado na Alemanha, para além do facto substantivo do relevo dessas três obras se fundar no facto de todas elas proporem massas e agregados de acontecimentos sonoros que estavam muito para além do quadro estrito do serialismo, é também inegável que as concepções particulares que vinham introduzir eram periféricas aos saberes e conceitos hegemónicos na música europeia. Já não se tratava de se um reavivar ou reactualização dos anteriores pressupostos de “nacionalismos musicais” (que como tal designavam tão só as expressões da periferia) mas de uma exterioridade à linha unívoca da narrativa do “progresso” e da “vanguarda”, tal como ela se vinha desenvolvendo e autolegitimando no centro hegemónico. Assim se introduziam também, a vários títulos, critérios de diversidade.

 

Os outros espaços

O mais forte desafio à ultra-organização serialista foi contudo o do informalismo de John Cage; um impacto considerável a partir de 1958, “quando Cage chegou à cidadela do serialismo em Darmstadt” (Paul Griffiths – “Modern Music – The avant garde since 1945”, Dent, 1981). Para além da oposição serialismo/indeterminação, ou com ela, importa assinalar um facto histórico do maior relevo: pela primeira vez na história da música europeia esta sofreu o impacto de elaborações originadas noutros espaços, as quais, originalmente prosseguindo as características estruturais dessa mesma música europeia de tradição erudita, tinham no entanto tomado características baseadas também numa experiência cultural própria. Pela primeira vez a música europeia lidava também com uma sua “outra música”, americana. A elaboração especificamente americana remontava a Charles Ives, e fora prosseguida por um francês expatriado, Edgar Varèse – referências doravante cruciais para atender também a uma nova noção de “espaço musical”.

Mas foi a abertura ao acaso, a “música aleatória” de Cage, a constituir um mais profundo choque no pensamento musical europeu – para além do facto de qualquer perspectiva da música no século XX não poder omitir a mais original e influente consequência dos cruzamentos culturais americanos, o jazz. Igualmente, se terá de se considerar as interpenetrações Ocidente-Oriente afinal remontando já à descoberta fascinada dos gamelões de Bali por Debussy quando da Exposição Universal de Paris em 1889. Como noutras artes, também na música se verificou que as exibições coloniais, ao trazerem ao conhecimento “artes primitivas”, tiveram afinal um profundo impacto em modernismos europeus, que se veio a assinalar sobretudo na obra de Olivier Messiaen.

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Os novos espaços da Europa

A partir dos anos 50/60, compositores orientais, como o japonês Toru Takemitsu e o coreano Ysang Yun, começando por seguir a senda da “vanguarda” europeia, não deixaram de manifestar concepções particulares, particularmente de percepção do tempo. A voga actual de um compositor como o chinês Tan Dun (1959), é o mais superficial exemplo (ainda assim sintomático) de um fascínio, que com outros níveis de elaboração não deixa de se manifestar em relevantes autores europeus, como um Jonathan Harvey (n.1939). A Europa não pode ser mais pensada só estritamente como Europa, sem esses outros espaços que são a América e o Oriente – mas também, como se vem a esclarecer em anos recentes, sem essa “outra Europa”, do ex-bloco de leste. Em 1968, Luciano Berio compunha “Sinfonia” para a Filarmónica de Nova Iorque – que a instituição da encomenda fosse americana não será negligenciável, a data, o quadro histórico e político, é certamente do maior relevo. Ainda que o título deva ser entendido num sentido etimológico, “soando em conjunto”, não deixa de ser fortemente irónico, retomando uma terminologia proscrita. Sobretudo Berio realizou um gigantesco “patchwork” incluindo elementos da 2ª Sinfonia de Mahler, autor cuja “redescoberta” consagratória se iniciara nesses anos 60. Rompendo com a lógica da “vanguarda”, uma obra como “Sinfonia” inscrevia-se também numa nova relação criativa com o passado. Um anúncio de pós-modernidade?

O conceito começou a ganhar expressão particular com Wolfgang Rihm (1952). “Souapologista de uma música opaca, clara,desordenada e apaixonada, precisa eestupefacta – como a existência humana”, escrevia em 1977, no prefácio de “Musique für Streicher”. No momento em que alguns postulavam uma “nova complexidade”, ainda maior, caso do britânico Bryan Ferneyough (1943), e que com a constituição do grupo L’Itineraire, em 1973, ganhava expressão a “música espectral”, considerando o facto musical na decorrência da análise e exploração (diferencial e temporal) do espectro harmónico de um som, Rihm era arvorado em chefe de fila de uma designada “Neue Einfachheit”, que não sem equívocos (e com os protestos do compositor) poderá ser entendida como “nova simplicidade”. Fundamentalmente importa reter que desde meados dos anos 70 se tornou evidente o esgotamento da narrativa da “vanguarda”, em qualquer das suas variantes, ultra-racionalizadas ou informalistas, conduzindo a um eclipse de centro dominante.

 

Entropismo e contemporaneidade

O nosso presente é assim o de uma situação pluralista, que como tal terá o seu mais emblemático autor em György Ligeti, talvez “um novo labirinto”, mas também um conflito agudizado entre a percepção de uma situação entrópica na produção e recepção musical e novas considerações “expressivas” ou comunicacionais. As noção de percepção e de memória, enquanto categorias a atender na própria poética da obra, não podem mais deixar de ser consideradas depois de uma obra como “Répons” de Boulez (1981-84), com a trajectória electronicamente transformada em tempo real dos sons no espaço. Mas as tecnologias da “live electronic”, desenvolvidas sobretudo no IRCAM, o instituto criado por Boulez em Paris, combinadas com explorações “espectrais”, constituem também uma “doxa” institucional na qual se mantém o lastro do pensamento pós-serial. Um dos vários equívocos do termo “Neue Einfachheit” é o de ser confundível com uma “new simplicity” de origem americana, termo também esse equívoco, redutora do alcance do “minimalismo repetitivo”, na senda de Terry Reilly, Steve Reich e Philip Glass.

Como duas décadas antes com o “informalismo” de Cage, o impacto dos “repetitivos” americanos na Europa foi enorme. O compositor holandês Louis Andriessen (1939) é o mais claramente prossecutor, mas ainda no sistema de produção e recepção sociologicamente reconhecível como vinculado à “tradição erudita”. Mas já em 1974, um compositor e musicólogo inglês, Michael Nyman (1944), havia publicado um estudo, “Experimental Music – Cage and Beyond”. O caso não deixa de ser suficientemente revelador para ser considerado: como outros, Nyman viu no “experimentalismo” americano, e concretamente nas possibilidades “minimais repetitivas” que se começavam a formular, uma alternativa a uma estagnação da música europeia; como musicólogo que também era, veio a utilizar nas suas composições, como para o filme “The Daughtman’s Contract” de Peter Greenway, típicas estéticas pós-modernas de paródia e “pastiche”, que tiveram um tanto maior apelo público quanto ao mesmo tempo se consagrava a vaga re-interpretativa da “nova música antiga”, do barroco em particular, originando hábitos de escuta e de procura inéditos na história da música europeia – passou-se a procurar o “novo” num remoto passado ignorado; enfim, também a sua evolução, quase em exclusivo acantonando-se nas mais correntes práticas de “músicas de consumo”, é suficientemente indicativo de equívocos possíveis.

Também como uma possível “nova simplicidade”, e não menos equivocamente, foi entendida a música do estoniano Arvo Pärt (1935), sobretudo depois do enorme sucesso de “Passio” (1982). Simples nos materiais, e rarefeita, embora de facto complexa nas heterofonias, a música de Pärt tem uma matriz claramente religiosa, transcendental, antiquíssima e todavia contemporânea. Se outro inesperado sucesso, aliás anos depois da estreia, o da Sinfonia n.º 3 do polaco Henryk Góreki (1933), em paralelo aliás com a “involução” do ex-vanguardista Penderecki, são claramente fenómenos reactivos e insuflados, consequência estéticado catolicismo woytiliano, os compositores ainda então soviéticos, que foram sendo progressivamente conhecidos na sequência do expatriado Pärt (que não deixa de ser um caso à parte), decorriam fundamentalmente da herança de Chostakovich, autor particularmente hostilizada pela “vanguarda”.

Todos eles marcadamente “espiritualistas”, intensamente divulgados pela etiqueta alemã ECM, raras vezes se emancipam de uma retórica sinfónica pomposa, à excepção de uma autora maior, a russa Sofia Gubaidulina (1931). A percepção musical da Europa é hoje profundamente diferente da que ocorria há 15 ou 20 anos. E não pode então ainda deixar de se mencionar a marcante presença daqueles que em 1977 se encontraram no Conservatório de Helsínquia e viriam a formar o grupo “Korvart Auki/Ouvidos Abertos”, como Kaaja Saariaho (1952) e Magnus Lindberg (1958). Como se poderia imaginar, ainda há apenas duas décadas, uma tal “irrupção das periferias”, um tão diversificado mapa musical da Europa? Nesta encruzilhada, ainda mais importa atender a uma reformulação dos quadros e categorias de percepção no mais lato espaço europeu – e nunca, em tempo algum, a Europa musical foi tão lata.

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* Augusto M. Seabra

Sociólogo. Crítico. Colunista do jornal PÚBLICO.

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