Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2005 > Índice de artigos > Dinâmicas culturais na Europa > [Europeus errantes]  
- JANUS 2005 -

Janus 2005



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


Europeus errantes

Alexandra Lucas Coelho *

separador

Este texto pretende constituir-se como um breve percurso pela obra de quatro escritores europeus de diferentes países e gerações que têm em comum a vocação da errância, no tempo e no espaço. Um francês (Olivier Rolin), um português (Pedro Rosa Mendes), um polaco (Ryszard Kapúscinski) e um húngaro (Péter Esterházy), frente-a-frente com os estilhaços da História.

 

Olivier Rolin: A inquietação do guerrilheiro

No Maio de 68, o francês Olivier Rolin tinha 21 anos e militava na Esquerda Proletária. “A nossa estratégia era preparar, por meiode uma espécie de guerrilha simbólicageneralizada, a passagem a ‘uma guerracivil prolongada’, através da qual se forjariaum partido revolucionário e um poderpopular”, recordou trinta anos depois, numa entrevista à revista Scherzo. O seu primeiro texto publicado, “Da luta violentade partisans”, era “muito estritamentemaoísta” e “completamente demente”,

avalia hoje Rolin. Afastado da luta política na primeira metade dos anos 70, Rolin veio a editar o seu romance de estreia em 1983, PhénomèneFutur (Seuil, não traduzido), que ecoa os anos da experiência esquerdista. Em graus mais ou menos subtis, essa herança aparece referida em outros romances posteriores e torna-se o tema central no recente Tigre dePapel (Asa). “Não juraria que não há uma relaçãoentre a ‘inquietude política’, que nos distinguiade outros ‘esquerdistas’ seguros noseu ser, e a ideia que tenho actualmente da‘intranquilidade’ da insatisfação, da não--adesão como fonte de energia literária”, disse na referida entrevista. “A literatura éfundamentalmente antiburguesa: porque,nascida da inquietude, é ela própria umalição de insaciabilidade. E isto de formacompletamente independente do seu ‘conteúdopolítico’ ”

Segundo Rolin, o escritor não é aquele que busca um refúgio, pelo contrário, o que lhe é natural é o não-refúgio: “Há uma espéciede necessidade de ser sem lugar, deslocado,em situação de exílio”. E toda a obra de Rolin — romances e crónicas de viagem — anda em torno deste não-lugar errante, no tempo e no espaço. Em O Cerco de Cartum (Asa), uma ficção fantasmagórica passada essencialmente no Sudão, o narrador diz: “A literatura, pensoeu, está voltada para o que desapareceu,ou então para o que poderia ter acontecidoe não aconteceu, por isso os temposmodernos, que tanto prezam um futurosem memória, lhe são tão hostis. Porisso também agora se diz que ela nãoserve para nada. E realmente: não temmais utilidade do que uma derrota, umaruína, um cemitério, uma recordação deinfância. É uma grande ressonância dopassado” (p. 70).

Naquele que é o mais colossal dos seus livros, A Descoberta do Mundo (Asa), construído a partir de histórias de 500 jornais em trinta e uma línguas publicados a 21 de Março de 1989, dia do equinócio da Primavera, Rolin propõe-se contar nada menos do que um dia na história do mundo. E esse dia tem um lastro, roda no fi m de uma espiral que vem do início dos tempos. “Vejo virem para mim através do ar, etrespassam-me, turbilhões de letras quebrilham suavemente. Chegam de todasas direcções da vastidão e da História, etrazem-nas até aos meus olhos. Brotam daboca enorme dos deuses e dos heróis. […]Nada, nem todos os Invernos do mundo,nem todos os funcionários do Invernopoderão impedir que os seus rebentoslevantem o solo onde estão os mortos: ei-laque chega, a verdadeira Primavera.Os sinais do pensamento cobrem o barro,entre o Tigre e o Eufrates, de voos de fl echas,de pegadas inumeráveis de pássaros.Colmeias fervilhantes de palavras deargila! E outras descem o Nilo, e em breveas primeiras letras formigam como cristaisna sombra das minas de turquesa sinaítas.Saem dos flancos da pedra e estabelecem-se nas cidades comerciais. Lembram-seainda das entranhas da terra, dos grandescorpos ornamentados que lá se decompõem, mas a partir de agora conhecem os remos e as velas dos barcos, o brilho dos metais, o aroma dos cereais e do vinho, aprendem a aspereza das paixões que os navegadores do além já não têm. Ei-las que viajam com os mercadores e os guerreiros, e com os poetas que as seguem”. (p. 514-515)

Se em termos de deriva física os romances de Rolin passam por Paris, África, Centro da Europa ou Portugal, as suas narrativas de viagem contemplam a Rússia (En Russie) e portos europeus, americanos e africanos. Em O Meu Chapéu Cinzento (Asa), Rolin deambula por Havana, Alexandria, Atenas, Açores, Goa, além de Lisboa, França e Porto-Sudão. Na introdução, rejeita a categoria (“bem-cheirante, a sândalo e orangotango”) de travel-writer. “Seja como for, gostamosde partir”, remata. “Aliás, entre o factode escrever e o de viajar há realmentealgumas relações secretas. A primeira quenos vem ao espírito é a de que ambas asactividades atestam uma espécie de instabilidadeessencial” (p.10).

 

Pedro Rosa Mendes: Escrever para viajar

É a viagem que leva ao livro ou o livro que leva à viagem? A propósito de Baíados Tigres (Dom Quixote), o seu romance de estreia em 1999, Pedro Rosa Mendes tem dito que o livro foi um pretexto para fazer a viagem. Ou seja, não viajou para escrever, escreveu para poder viajar. Haverá provavelmente um ponto em que ambos os impulsos coincidem, ou alternam. Nascido em 1968, e jornalista do Público desde a fundação do jornal até 1999, Pedro Rosa Mendes cobriu como repórter situações de conflito em Angola, Guiné, Ruanda, Sérvia, ou regiões de acesso difícil como o Afeganistão dos taliban. Depois de Baía dos Tigres , publicou Ilhas de Fogo, com histórias de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, e Atlântico, em colaboração com o fotógrafo João Francisco Vilhena.

É cronista da revista Visão, para a qual fez mais recentemente grandes reportagens na Libéria, Guiné e Serra Leoa. A ideia da viagem que originou Baía dos Tigres era fazer África, de Angola à Contracosta, o trajecto de Capello e Ivens, por terra. Uma proposta extraordinária a vários níveis: a solidão (no tempo do turismo de massas), a lentidão (na era dos aviões), o risco (num continente convulso e imprevisível). A viagem fez-se em 1997, ao longo de três meses, até Rosa Mendes chegar a Quelimane. Na literatura portuguesa contemporânea, o livro que daí resultou não é menos extraordinário do que o percurso. O embaraço da sua classificação (romance?, reportagem?, viagem?) levou a que na primeira edição aparecesse “romance”, por baixo do título, e nas seguintes a referência fosse retirada. Mas romance é o que, à falta de melhor, chamamos a uma narrativa que a partir de uma voz própria cria um universo — neste caso, usando elementos reais e ficcionados.

Topo Seta de topo

Pedro Rosa Mendes não limita os recursos: cartas, poemas, guiões, listas, notas, canções, diálogos, crónicas, diários... Uma riqueza de registos que fortalece e intensifica a arquitectura do livro, não-linear, não-cronológica, que é o romance de uma experiência caleidoscópica num território estilhaçado pela História. E os estilhaços rodopiam por entre a cabeça dos vivos, dos ainda vivos. “— Os cães na Baía dos Tigres eram apanhadosda seguinte maneira: os colonosarranjavam uma gaiola muito grande epunham um angolano lá dentro, ou umgajo que aparecesse a querer ganhar dinheiro.Metiam o gajo numa jaula dentroda outra, depois de o fazerem correr um bocado para ele ficar a pingar suor. E ele ficava ali. Os cães vinham de noite. Sentiam o cheiro do tipo. Mas ele já tinha um atilho na porta e quando os cães entravam, ele puxava e os cães ficavam enjaulados. O homem passava lá a noite, com o cão a babar-se de ladrar. Não era arriscado, tinha o lugar dele bem fixo. Os colonos vendiam os cães. Cães bravos. Atacavam tudo o que viam. José Madeirense é um dos madeirenses mais antigos do Lobito Velho. Vive junto à água interior — a baía. — Ainda vai um tempo e perguntaram-me o que é que eu estou aqui a fazer, se os outros já foram embora” (p. 343).

Baía dos Tigres é o livro de um território em claustrofobia, de onde o regresso não é certo. “Lá não há interior nem espaço,tudo é limite e cerco. O passo por dar éindiferente, o passo dado foi em falso.Poderias ver, se visses, a rota de luas queos calcanhares perdiam atrás de mim, aareia em quarto minguante. De um lugarassim volta-se vazio. A alma também emagrece.Um dia o esqueleto da besta perfuraa pele por dentro” (p. 370). A densidade desta escrita exigente ao longo de 400 páginas não impediu que o livro esgotasse sucessivas edições em Portugal e fosse quase imediatamente traduzido, com sucesso de vendas e de crítica, para várias línguas. Um caso absolutamente singular para uma primeira obra portuguesa.

 

Ryszard Kapúscinski: A reportagem como literatura

O mítico grande repórter polaco (“simplesmente o maior repórter de guerra vivo”, escreveu o Guardian) foi um dos leitores estrangeiros que prestou homenagem pública a Baía dos Tigres. Nascido em 1932 em Pinsk, uma zona da Polónia que depois foi tomada pela União Soviética, Kapúscinski estudou História na Universidade de Varsóvia e tornou-se jornalista. Para a Agência de Notícias Polaca cobriu conflitos, revoluções e crises ao longo de décadas na América Latina, em África, no Médio Oriente ou na Europa de Leste. A termos que classificar os vários livros que Kapúscinsky tem vindo a publicar nos últimos 20 anos, a reportagem seria a categoria mais aproximada. Se Rolin é em absoluto um ficcionista que também experimenta a crónica de viagem, se Rosa Mendes, em “Baía dos Tigres”, usa técnicas e material de reportagem como base para um romance— há capítulos de pura ficção —, os livros de Kapúscinski são essencialmente reportagens narradas com recursos literários (quer na arquitectura, quer na linguagem).

Natural de uma parte do mundo em que a censura relativa à região (não apenas a Polónia, mas os países vizinhos) condicionava o trabalho dos jornalistas, Kapúscinski foi um viajante infatigável. Escreveu livros sobre Angola em 1975 (Mais um Dia de Vida, Campo das Letras), Hailé Selassié da Etiópia (O Imperador, Campo das Letras), vinte e sete revoluções e golpes em vários países do dito terceiro mundo (The SoccerWar) ou a queda de Reza Pahlevi (Shah ofthe Shahs), antes de se aproximar de casa. Imperium (Granta, 1993, sem tradução portuguesa) é o seu frente-a-frente com o império soviético.

Com o laconismo que lhe é próprio quando se trata de explicar o que faz, Kapúscinski pede na introdução que não leiam Imperium como “uma história da Rússia, da antiga URSS, nem do nascimento e queda do comunismo”, mas sim como “um relato pessoal baseado em viagens que fiz ao longo das grandes extensões deste país (ou, antes, desta parte do mundo), tentando chegar aos lugares que o tempo, a energia e a oportunidade permitiram”. Começa por nos levar a Pinsk em 1939, tinha ele sete anos, para assistirmos à entrada das tropas soviéticas na região da Polónia que hoje é a Bielorrússia. Nesta primeira parte (até 1967), há ainda uma viagem através da Sibéria e uma expedição às repúblicas da Ásia Central. A segunda parte (1989-91), centrada nos anos que precedem o fim de Gorbatchov, assenta em viagens solitárias ao longo de 60 mil quilómetros, da fronteira com a Polónia à fronteira com o Afeganistão, passando pelo Círculo Polar Árctico. A terceira parte (1992-93) recolhe reflexões, notas de leituras e conversas ao longo das viagens.

“Este livro é escrito de forma polifónica, querendo isto dizer que as personagens, lugares e temas que fazem o seu caminho através destas páginas podem reaparecer várias vezes, em anos e contextos diferentes. No entanto, contrastando com os princípios da polifonia, o todo não termina numa síntese elevada e definitiva, mas, pelo contrário, desintegra-se e cai por terra, e a razão por que isto acontece é que, no decurso da escrita do livro, o seu assunto principal caiu por terra — concretamente, o grande superpoder soviético”.

O olhar de falcão, a argúcia de quem não foi derrotado por uma ditadura e o talento de um poliglota culto que sabe perguntar e ouvir favoreceram o repórter. A escrita leva-o para a literatura.

 

Informação Complementar

A SAGA DE PÉTER ESTERHÁZY

Largamente traduzido no estrangeiro, aclamado como um infatigável apurador da linguagem, o romancista Péter Esterházy (Budapeste, 1950) é um dos autores mais importantes da literatura húngara actual. Não o mais internacionalmente notório, depois do seu compatriota Imre Kertész ter ganho o Nobel em 2002. Mas talvez o mais virtuoso. (Em Portugal, apenas tem publicado “Os Verbos Auxiliares do Coração”, uma edição de 1993 da Caminho.)

Na Hungria, Esterházy é uma espécie de património vivo. Um nome que atravessa séculos, através de governos, castelos, museus, colecções de arte, partituras de música, num esplendor que se confunde com o fazer e desfazer de impérios. Príncipes, diplomatas, generais, bispos, artistas, mecenas (Haydn foi um dos protegidos), senhores de uma fortuna maior que os próprios Habsburgos, os Esterházy são parte determinante da História do Centro da Europa. E o século XX foi para eles o que foi para parte do Centro da Europa — a devastação das guerras seguida do domínio soviético. O tempo da sombra apanhou Mátias Esterházy, pai de Péter. Nascido em 1919, num fausto palaciano, Mátias enfrentou a ruína da família trabalhando como assentador de soalhos e tradutor mal pago. Foi este passado que Péter Esterházy tomou em mãos ao escrever HarmoniaCeleste, publicado em 2000 na Hungria.

Obra desmesurada (entre 600 e 900 páginas, dependendo das edições), Harmonia Celeste divide-se em duas partes. Na primeira, o autor percorre episódios até ao século XX, chamando a todos os seus antecedentes “o meu pai”, como se todos os “pais” anteriores confl uíssem no pai — e em si próprio. Na segunda parte, a corrida dos séculos desacelera-se e a figura de Mátias, pai amado, expande-se. Tributo ao sangue do seu sangue, num labirinto de referências de todos os tempos (de Édipo a Aristóteles, de Cristo à Princesa Diana, de Estaline a Hegel, do Cardeal Ratzinger à série O Sexo e a Cidade, passando por Beckett, Nabokov ou Frank McCourt), Harmonia Celeste tem a ambição babélica do “romance total”, aquele que irá mais fundo num só homem, fazendo convergir nele toda a humanidade. Do ponto de vista histórico, será também o frente-a-frente com a Europa e com o século XX de um dos seus filhos.

Mas um outro frente-a-frente, mais terrível, não literário, esperava o autor no momento em que Harmonia Celeste ficou pronto. Em Janeiro de 2000, ao ter acesso aos arquivos da polícia secreta húngara, Péter Esterházy descobre que entre 1957 e 1980 o seu pai fora informador do regime pró-soviético, sob o nome de código Csanadi. Decide então escrever o livro Edição Corrigida, com excertos de arquivos e diários, expondo a dimensão da tragédia do pai — e a sua própria, perante a construção de toda uma vida. Publicado em 2002 na Hungria, Edição Corrigida veio assim a ser o duplo de Harmonia Celeste, o livro negro imposto à literatura pelo virar da História, na dobra entre os séculos XX e XXI.

separador

* Alexandra Lucas Coelho

Jornalista do PÚBLICO.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2004)
_____________

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
 

Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores