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Onde estou: | Janus 2005 > Índice de artigos > Dinâmicas culturais na Europa > [A invenção da Europa como continente (II)] | |||
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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! O confronto directo com a ocupação árabe-muçulmana, factor primordial da identidade Europa-cristianismo durante a Idade Média, terminou com a reconquista dos territórios ibéricos. Mas a leste persistem, e acentuam-se, duas frentes de conflito religioso e cultural. A nordeste, a Rússia, ocupada pelos Mongóis desde o século XIII, apenas se libertará no final do século XV, dando lugar a uma cultura onde a influência da igreja ortodoxa se combina com heranças culturais, sobretudo eslavas, muito distintas das dos restantes povos da Europa. A sudeste, os turcos tomam Constantinopla em 1453 e destroem o velho Império Romano do Oriente, desencadeando uma nova onda de espírito de cruzada, desta vez opondo cristãos e Europa a otomanos e Ásia. A proximidade e, sobretudo, o avanço de forças externas hostis – neste caso, os impérios russo e otomano – continuam, portanto, a funcionar como factores de unidade, suscitando sentimentos de identidade baseados na assimilação Europa-cristianismo. Para os austríacos, por exemplo, a vitória sobre os turcos, em Viena, no ano de 1683, é vista como um momento-chave de confirmação do papel de guardiães da unidade europeia cristã que tradicionalmente sempre desempenharam. Mas a verdade é que aquelas duas frentes estão demasiado afastadas para serem encaradas como um perigo real pelos países agora envolvidos numa outra grande empresa: a descoberta e o controlo do Novo Mundo. Ora serão, justamente, o confronto com estas novas realidades e, mais tarde, o conjunto de profundas transformações culturais, políticas e técnicas ocorridas naqueles países que irão cimentar uma nova identidade para a Europa, baseada agora nas ideias de modernidade, de progresso e de superioridade civilizacional, e não nos valores do cristianismo. A consciência europeia constrói-se e reforça-se, como anteriormente, por oposição aos outros. Mas a natureza dessa oposição altera-se radicalmente. O termo Europa adquire, assim, uma conotação mais neutra face à religião, associando-se, de forma crescente, à visão de modernidade, democracia e prosperidade dos filósofos iluministas, não raro acompanhada por uma concepção de superioridade genética dos europeus. O naturalista sueco Carlos de Lineu (1707-1778), por exemplo, descreve o Homo Europeus como “subtil” e “criativo”, opondo-o aos asiáticos (HomoAsiaticus), melancólicos e miseráveis, e aos africanos negros (Homo Asser), fingidos e preguiçosos. No final do século XIX, porém, o antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge restringirá a classificação “científica” de Homo Europeus aos povos louros do Norte, colocando-o numa posição superior à do Homo Alpinus e, sobretudo, à do HomoMediterraneus…
Enfim, temos continente! É a ideia de modernidade que irá levar à delimitação formal da Europa como continente. Por razões simultaneamente geográficas e culturais, a definição de uma fronteira a leste sempre foi problemática. Os russos, considerados como semi bárbaros e com uma cultura bastante particular, dificilmente eram aceites como europeus. Será apenas com o czar Pedro I, o Grande, que o Império Russo se aproximará da Europa. Um forte ímpeto reformista modernizador, de que a construção de raiz de uma nova capital, São Petersburgo, constitui, talvez, o exemplo mais espectacular, suscitou a ideia de duas Rússias, uma europeia, a outra asiática. Será esta partição que permitirá à Rússia integrar-se na Europa e transformar-se, reconhecidamente, na potência mais forte da Europa Oriental. Esta partição ganha especial força e visibilidade a partir do momento em que é traduzida em mapas. Montesquieu, por exemplo, ordenou que o cartógrafo Robert de Vaugondy identificasse nos seus mapas (1756) uma Rússia europeia, delimitada a leste pelo rio Volga. Mas Pedro I, o Grande, tinha ido mais longe, pedindo ao geógrafo Tiatichtchev que inscrevesse, nos mapas, os Urais como fronteira entre a Europa e a Ásia. É particularmente significativo verificar que os Urais, uma longa cadeia de montanhas com mais de 2.500 km de extensão mas muito erodida e raramente ultrapassando os 1.500 metros (o pico mais elevado,Jaman-Tau, tem cerca de 1.800 metros), nãosó nunca constituíram uma barreira à expansão,para oeste, dos povos asiáticos comonão coincidem com qualquer demarcaçãode tipo paisagístico ou cultural, já que asgrandes diferenciações se fazem no sentidoNorte-Sul, acompanhando as variações emlatitude. É certo que qualquer delimitaçãodeste tipo tem sempre algum grau dearbitrariedade. Mas a artificialidade destafronteira, não coincidente com qualquerdelimitação de natureza político-administrativa,é particularmente simbólica. Ao destacar a Rússia que se pretende moderna e europeia da Rússia que permanecerá tradicional e asiática, e ao elevar essa demarcação a fronteira entre a Europa (o Oeste) e a Ásia (o Oriente), Pedro, o Grande, aceita, e reforça, o projecto político de Europa como território de modernidade. Temos, pois, o continente europeu geograficamente delimitado. Assim o confirmam os mapas, mas também os manuais escolares que acompanharão a expansão do ensino formal ocorrida nos vários países europeus a partir do século XIX. A Europa como comunidade imaginada deu um passo decisivo. A Europa do Atlântico aos Urais, como referirá De Gaulle mais tarde – não, ainda, como projecto de integração política, cultural ou económica, mas como espaço de modernização e, por isso, de poder – é, agora, um facto.
E se a Europa se redescobre de novo? A ideia de Europa como território geograficamente delimitado, isto é, como continente, generaliza-se durante o século XIX. O debate centrar-se-á, a partir daí, em torno da sua unidade e diversidade. Projectos de integração tão distintos como os de Saint-Simon, Hitler, Lenine ou Jean Monet e Robert Schumann, uns recorrendo à conquista, outros propondo utopias mais ou menos realizáveis, têm, em geral, o conjunto do território europeu como espaço de referência. Contudo, e paralelamente, a diversidade cultural que caracteriza a Europa tem sido analisada, por vezes de forma algo acintosa, como correspondendo a distintos graus de europeísmo: todos europeus, mas uns mais que outros? O processo de fragmentação política da antiga República da Jugoslávia ilustra, de um modo bem nítido, como as velhas clivagens de tipo religioso, étnico e cultural permanecem, afinal, bem vivas no seio do território europeu, alimentando uma conflituosidade para muitos inesperada. A própria delimitação geográfica da Europa, embora convencionalmente aceite, confronta-se com contradições de diverso tipo. Num extremo, o espaço Schengen sublinha as fronteiras físicas da “fortaleza Europa”, bastante mais restritas do que as do continente europeu. Mas, ao mesmo tempo, a inevitável integração da Turquia na União Europeia não deixará de pressionar esta última no sentido do seu alargamento. A ideia de continente europeu, embora com longas raízes históricas, é filha do projecto moderno. É certo que a Europa se descobriu a si própria como território cristão. Mas redescobriu-se posteriormente como território moderno, e foi como tal que se delimitou em termos geográficos. Um dia, quem sabe, a Europa redescobrir-se-á de novo, em torno de um projecto hoje ainda dificilmente perscrutável. Reimaginando-se como comunidade, os europeus redefinirão, por certo, os seus territórios de referência. E nada impede que essas novas espacialidades assumam configurações distintas das que reconhecemos hoje no continente Europa. DUROSELLE, Jean-Baptiste (1968) – “Europe (Histoire). Histoire de l´idée européenne”. In EncyclopaediaUniversalis, Vol. 6, Encyclopaedia Universalis France, Paris, pp. 755-761. EAST, W. Gordon (1983) – “Europe”. In The New Enciclopaedia Britannica, Macropaedia, Vol. 6, EnciclopaediaBritannica Inc., Chicago, 15 th edition, pp. 1033-1059. LÉVY, Jacques (1997), Europe. Une Géographie, Hachette, Paris. MALMBORG, Mikael af e STRATH, Bo (eds.) (2002) – The Meaning of Europe, Berg, Oxford e Nova Iorque. GIORDANO, C. (2001) – “Europe: Sociocultural Aspects”. In Neil J. Smelser e Paul B. Baltes (eds.), InternationalEncyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, Vol. 7, Elsevier, Oxford, pp. 4917-4923.Dados adicionais Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas (clique nos links disponíveis) A fronteira leste do continente europeu
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