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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! Comecemos pela evidência mais banal: a Europa não possui uma identidade fixa que a pudesse caracterizar positivamente. Tanto do ponto de vista étnico como cultural, ela está marcada por uma diversidade que lhe é constitutiva. Não há um “povo” europeu ou uma “cultura” europeia. Há, outrossim, povos e culturas irredutíveis a um qualquer padrão de identidade. Os próprios limites geográficos do que foi reconhecido como “a Europa” não pararam de variar ao longo da história. Falar da Europa não poderá, portanto, cifrar-se numa tentativa de dissolver toda a sua diversidade numa ficcionada identidade de fundo ou, coisa que seria bem mais arriscada (mas que não deixou de ser tentada), querer reconduzir a sua diversidade à figura modelar de um “povo” ou de uma “cultura” que supostamente a exprimiriam exemplar e autenticamente. Mas esta evidência, toda ela negativa, que fala de uma invisibilidade da Europa, deve ser matizada por uma outra, mais profunda, que vai em sentido contrário: apesar dessa diversidade que lhe é constitutiva, adentro dessa mesma diversidade e não obstando a ela, a Europa forma, contudo, uma efectiva unidade. Apreender tal unidade não significa apagar as diferenças, declará-las inessenciais. Não significa, também, regredir até um plano de generalidade vazia, como se a unidade que sentimos estar presente na Europa se resumisse a um conjunto de traços abstractos, supostamente comuns à diversidade concreta e rica que a constitui. A unidade que vemos – sem contudo o sabermos muitas vezes exprimir adequadamente – na Europa diz antes respeito a certos universais que subtendem um certo modo de vida humana que desponta com a civilização europeia, um certo modo de vida que é, portanto, o rosto espiritual da própria Europa e o horizonte onde as suas diferenças irredutíveis podem ser finalmente projectadas sobre um horizonte de unidade. Esses universais – que não são generalidades vazias, mas as forças estuantes que deram uma forma e um rosto à própria Europa – podem ser circunscritos em três ideias ou exigências nucleares que promanam do mais fundo da vida e dão uma figura determinada à humanidade europeia. Primeiro, a ideia do saber; segundo, a ideia do direito; terceiro, a ideia de uma vida boa. Estas três ideias-força que caracterizam a Europa enquanto fenómeno espiritual estão, por sua vez, ordenadas a três ideais em que se define o próprio sentido último da vida humana – o ideal da Verdade, o ideal da Justiça, o ideal da Felicidade. Mas isto não é ainda tudo ou sequer o mais importante. Na verdade, que civilização humana não teve uma relação determinada com estes três ideais? Que civilização não produziu a sua própria representação da Verdade, da Justiça e da Felicidade? O que é próprio, o que é marca essencial da civilização europeia reside antes no facto de esses três ideais não serem vividos sob a forma de uma certeza e de um adquirido de base, mas serem antes ideias-infinitas, ideias que despoletam um labor permanente, uma sempre renovada refundação num processo de aproximação sem fim. A Europa não se alimenta de uma relação com uma origem, fundadora e prestigiosa, onde tudo estivesse já dito e para sempre decidido; pelo contrário, a Europa está marcada pela necessidade constante de recomeçar. O campo de deveniência destas três ideias infinitas da Verdade, da Justiça e da Felicidade são precisamente a “Ciência”, a “Política” e a “Ética”. Elas constituem o legado espiritual da Europa à humanidade. Efectivamente, colhida no horizonte da prática científica, a Verdade não é já compreensível por uma relação a uma revelação original, ela não está aprisionada num mito fundador e numa casta que imutavelmente a transmitisse de geração em geração. A Verdade é, toda ela, o próprio processo sem fim de conhecimento racional da realidade a que os gregos chamaram “episteme” e os latinos “scientia”. Essa é a primeira linha de força ou o primeiro “universal” da Europa. A exigência de Justiça plasma-se, pelo seu lado, no projecto, sempre em aberto e sempre renovado, de constituição de uma comunidade política que a realize perfeitamente. Tal é o segundo “universal” da Europa. Finalmente, o ideal de uma vida boa ou da Felicidade não é apenas a questão das “commodities of life” – se bem que também isso possa ser uma resposta parcial a essa exigência –, mas, mais decisivamente, uma permanente discussão sobre a figura essencial do humano e as formas da sua auto-realização – aí radica a permanente exigência de uma “Ética”. Ela é o terceiro “universal” da civilização europeia. Tais são as marcas caracterizadoras do rosto espiritual da Europa. Se bem que não haja uma identidade comum aos povos europeus, há neles, por razões essenciais, uma efectiva unidade. Essa unidade está presente na sua relação a estes três ideais, que são outras tantas ideias infinitas abrindo um trajecto sem fim, um trajecto sempre em aberto, sempre inseguro dos seus fundamentos e que jamais poderá repousar na certeza definitiva dos seus resultados. Mas – última palavra, que não pode ser pusilanimemente silenciada – a Europa, neste sentido, é em si mesma um projecto e um modo de vida “universalizáveis” e susceptíveis de serem assumidos por toda a humanidade. Se a Europa é o advento destes universais, todos os povos, todas as culturas, apesar da sua identidade própria – e também, por vezes, dramaticamente “contra” ela – são “europeizáveis” num sentido radicalmente diverso do da dominação política, económica ou, mais cruamente, da aventura funesta da colonização. Aí onde as sociedades se organizam no respeito pelos direitos cívicos e individuais, onde se privilegia a descoberta e a inovação contra as forças arcaicas da repetição, aí onde se reconhece cada indivíduo simultaneamente como um “homem”, livre para procurar a felicidade, como um “cidadão”, livre para intervir na esfera pública, e como um potencial “sujeito” de conhecimento e participante no progresso global do saber, aí onde o indivíduo está, na sua vida, aberto sobre estas três possibilidades, aí há Europa num sentido essencial. Não porque tudo isso seja privativamente dos europeus como propriedade sua – e a história europeia ensina-nos os custos e os dramas do triunfo, nunca definitivo, dessas ideias –, mas porque foi nos europeus que tal forma de vida por vez primeira tomou voz. Uma tentativa de levantar o mapa intelectual da Europa no século XX deverá percorrer cada uma destas três dimensões, o que faremos nas páginas seguintes. A Europa do espírito, árvore e arquipélago: uma progressão em recomeços
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