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Guerras de baixa intensidade: o caso do Uganda

Marisa Abreu Safaneta *

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As mudanças ocorridas na paisagem geoestratégica mundial, desde o final da Guerra Fria em 1989, colocaram-nos perante uma nova realidade que ainda hoje, mais de uma década depois, nos esforçamos por compreender. Uma realidade feita de novos e/ou renovados conflitos cada vez mais mortíferos e de duração cada vez maior. A verdade é que a explicação oferecida pela Guerra Fria para os todos os conflitos traduzia se numa análise bastante confortável que passava por uma grelha de leitura onde a confrontação ideológica entre as duas super potências assumia o papel de destaque. Neste quadro, todos os conflitos eram, redutoramente, entendidos à luz da bipolaridade vigente. Neste contexto, a intensidade e importância estratégica dos conflitos eram determinadas apenas pelo grau de envolvimento das duas super potências, estando estas impedidas de confrontação directa pela própria lógica da Guerra Fria que se travava (1).

A proliferação de guerras no então designado “terceiro mundo” era entendida como o resultado da interferência das duas super potências e inserida na conquista de “zonas de influência” que marcou todo este período. Tratava-se de conflitos sem relevância internacional, uma vez que nenhum destes poderia transformar-se numa ameaça ao domínio bipolar. Pelo contrário, estes conflitos faziam parte “do jogo” bipolar. Uma vez que todos os conflitos eram entendidos à luz da Guerra Fria, quando esta terminou muitos advogaram o início de uma “nova ordem mundial” marcada pela progressiva pacificação destes conflitos ditos de baixa intensidade. A paz do Sul era encarada como uma consequência da paz no Norte.

 

Geopolítica da instabilidade

A perenidade dos conflitos a sul determinou, no entanto, uma nova leitura da realidade pós-guerra fria. Na verdade, não se tratou apenas de explicar a sua continuação mas também de justificar a sua existência fora do contexto bipolar. Hoje, os conflitos em África podem servir como exemplos acabados desta nova realidade, onde a ausência da confrontação ideológica não determinou a pacificação da maioria dos cenários de guerra. Por outro lado, são também exemplos típicos de conflitos de longa duração que teimam em manter-se activos no quadro desta nova realidade.

 

O exemplo do Uganda

Este país do centro do continente africano vive desde meados da década de 80 um conflito violento que se faz sentir com maior intensidade a norte do seu território, com particular destaque para a região de Acholi ou Acholiland. Trata-se de um conflito alimentado pela contínua acção de alguns grupos insurrectos, mais ou menos organizados, que lutam contra o governo liderado por Yoweri Museveni. Aparenta ser essencialmente um conflito político com contornos étnicos, religiosos e regionalistas, provocado por um mal sucedido processo de nation-building pós-independência e ainda pela dificuldade dos novos governantes, liderados por Y. Museveni, de adquirirem o controlo efectivo de todo o território ugandês. Este deriva, em grande parte, do exacerbar da divisão Norte-Sul que marcou a vida política deste país desde a sua independência. Os quase vinte anos de domínio de dirigentes provenientes do norte do país – Milton Obote, Idi Amin e Tito Okello – terminam formalmente em Janeiro de 1986 com o triunfo das elites do Sul lideradas por Yoweri Museveni e agrupadas no Movimento/Exército de Resistência Nacional (NRM/A – National Resistance Movement/Army). Nessa altura, um golpe de Estado depõe o general Tito Okello Lutwa, um Acholi, que não pôde evitar a guerra civil que se seguiu e que terminou com a vitória de Museveni. A liderança de Museveni fica irremediavelmente associada a acusações de discriminação e perseguição das populações do Norte do território em benefício das elites do Sul. Formam-se assim dois grupos distintos de resistentes:

• Movimento/ Exército Popular Democrático do Uganda (UPDM/A – Uganda People’sDemocratic Movement/Army) liderado por antigos políticos e militares do regime de Okello Lutwa com o objectivo de repor a anterior situação.

• Movimento do Espírito Santo (HSM – Holy Spirit Movement) liderado por Alice Auma “Lakwena” que tinha como objectivo a purificação espiritual do Uganda. O carácter espiritual e religioso deste movimento proporcionou uma enorme adesão popular em torno da sua líder. Esta afirmava possuir poderes sobrenaturais e estar instruída por diversos espíritos (entre os quais se destaca o de um militar italiano afogado no Nilo durante a II Guerra Mundial, denominado “Lakwena” que significa “o enviado” em Acholi). Este movimento dispunha de um braço armado intitulado Forças Móveis do Espírito Santo (HSMF – Holy Spirit Mobile Force).

A luta do NRM/A contra estes dois grupos dura pouco tempo, uma vez que logo em 1987 as HSMF sofrem importantes derrotas e a sua líder segue para o exílio no Quénia onde ainda se encontra. Alguns meses depois o UPDM/A chega a um polémico acordo de paz com Museveni. A partir de 1988 a resistência reorganiza-se em torno de Joseph Kony, sobrinho de Alice Auma. Este cria o Movimento de Resistência de Deus (LRM – Lord’s ResistanteMovement) também ele com um importante braço armado: o Exército de Resistência de Deus (LRA – Lord’s Resistance Army) que concentra no seu seio antigos apoiantes do UPDM/A, descontentes com a paz feita com Museveni, e ainda a desorganizada força de Alice Auma. J. Kony reforça então o misticismo em torno dos seus homens e dele próprio, tal como Alice Auma havia procurado fazer.

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Desde 1994, Kony conta ainda com o importante apoio da Frente da Margem Ocidental do Nilo (West Nile Bank Front – WNBF) que embora actue prosseguindo objectivos próprios se associa muitas vezes ao LRA contra Museveni. Esta frente procura o estabelecimento de um Estado islâmico independente a oeste no Nilo. Mais recentemente, um outro grupo parece associar-se a J. Kony – Aliança das Forças Democráticas (Allied Democratic Forces – ADF) – constituído essencialmente por estrangeiros interessados em derrubar Museveni. Entre estes encontramos ex-Interhamwe, as milícias hutu consideradas responsáveis pelo massacre de tutsis no Ruanda em 1994, e ainda ex-militares das Forças Armadas Zairenses fiéis a Mobutu durante os últimos anos de governação do “velho leopardo”. A razão do envolvimento destes homens reside no facto de Museveni ter patrocinado a sua derrota em face dos apoios fornecidos à Frente Patriótica Ruandesa e à Aliança das Forças Democráticas de Libertação no Ruanda e Zaire respectivamente. O LRM/A tem sido o principal agente da oposição a Y. Museveni desde então, beneficiando para tal de importantes apoios logísticos e financeiros que lhe chegam de alguns países vizinhos entre os quais se destacou o Sudão. Este país agia em retaliação ao apoio ugandês aos rebeldes do sul liderados por John Garang e reunidos no seio do Exército de Libertação do Povo do Sudão. Esta evolução permite identificar algumas fases neste conflito: uma primeira de 1986 a 1988 – marcada pela dispersão da resistência; a segunda de 1988 a 1994 – marcada pela reorganização em torno de J. Kony; a terceira de 1994 a 1999 de intensa actividade por parte dos opositores de Museveni, com consequente reacção governamental; e uma última, ainda em curso, que teve inicio em 1999, no momento da assinatura do Acordo de Paz de Nairobi.

Embora com algumas crises importantes, este acordo tem obtido resultados interessantes, apesar de incipientes, na normalização das relações entre o Uganda e o Sudão. Esta détente entre o Sudão e o Uganda levou a uma redução significativa do apoio sudanês ao LRM/A. Sem abastecimento de alimentos, armas e munições e sem poder utilizar o território sudanês para fugas cirúrgicas como no passado, este movimento tem enfrentado pesadas derrotas bem como importantes deserções. O facto de se tratar de um conflito essencialmente intra-estatal tem determinado uma enorme apatia por parte da comunidade internacional, apesar dos muitos milhares de vítimas e deslocados já contabilizados ao longo de quase duas décadas. Entretanto a guerra tem contribuído decisivamente para a crise económica e social que o Uganda atravessa, em larga medida devido à destruição sistemática de infra-estruturas e ao alargar das diferenças entre as diferentes comunidades que constituem o país.

A sobreposição de conflitos nesta região do continente africano é um factor inquietante e resulta em larga medida da participação do Uganda nos conflitos do Ruanda, República Democrática do Congo e Sudão durante a última década. Esta presença do Uganda fora das suas fronteiras será, muito provavelmente, o resultado do seu conflito interno, tomando o contorno de tentativa de resolução do mesmo através do esgotamento dos apoios exteriores recebidos pelo LRM/A. O isolamento de Joseph Kony poderá ser uma das principais estratégias de Museveni neste momento. Para Museveni a resolução do conflito ugandês resultaria na consolidação definitiva do poder do NRM/A e no alívio das pressões internacionais em prol da paz.

A paz contribuiria decisivamente para um aumento dos apoios financeiros internacionais ao seu regime, bem como para uma melhoria da sua imagem internacional desgastada pela guerra e pela lenta transição democrática. Os anos iniciais de paladino da “renascença africana” já lá vão e Museveni necessita urgentemente de resolver os problemas internos se pretende realmente transformar o Uganda numa verdadeira potência regional sem a mancha de relatos cada vez mais dramáticos da situação da população civil nas regiões mais afectadas e pelo conhecimento das notícias de raptos de crianças e jovens para o serviço nas fileiras de J. Kony. Alertada para a situação que se vive neste país, a comunidade internacional tem procurado, recentemente, mediar o conflito. Mas, apesar dos esforços de paz do CárterCenter, do Equatoria Civic Fund ou da Comunidade de Santo Egídio, entre outras, o conflito tarda em cessar. O envolvimento da sociedade civil Acholi tem sido, no entanto, um factor importante a salientar, dada a importância e alcance da Iniciativa de Paz dos Líderes Religiosos Acholi (ARLPI – Acholi Religious LeadersPeace Initiative) com o apoio do ACCORD (African Centre for the Constructive Resolutionof Disputes) na promoção da paz e do respeito pelos direitos humanos neste país. Apesar disto o caminho a percorrer é ainda longo e sinuoso.

 

Informação Complementar

INDICADORES

População: 20.5 milhões
Esperança de vida:
43.2 anos
Analfabetismo adultos:
43.9%
Desnutrição (menores 5 anos):
26%
Mortes relacionadas com o conflito:
300.000 na última década
Deslocados internos:
420.000
Refugiados:
218.200
Retornados: 1.200

Fonte: AGUIRRE, M. e BRUHN C. – Guerra e Olvido, Intermón Oxfam, Barcelona, 2002.

 

BREVE CRONOLOGIA DO CONFLITO E DAS PRINCIPAIS INICIATIVAS DE PAZ

1986
Jan – O National Resistance Mouvement/ Army depõe o governo vigente no Uganda. Yoweri Museveni torna-se Presidente
Set –
Alice Auma “Lakwena” cria o Holy Spirit Movement (HSM) para fazer oposição ao governo de Museveni, reunindo seguidores essencialmente do Norte do Uganda. Este movimento é esmagado pelas forças governamentais no final do ano seguinte.  

1988
Antigos membros da HSM, liderados por Joseph Kony (sobrinho de Alice Auma) revitalizam a Holy Spirit Mobile Force, outrora ala militar do HSM.

1991
O grupo liderado por J. Kony passa a designar-se United Democratic Christian Mouvement/Army (UDCM/A).  

1992
J. Kony muda novamente o nome do seu grupo para Lord’s Resistance Mouvement/Army (LRM/A).

1993
Primeiras iniciativas de paz. O governo de Museveni, através da sua ministra para o Norte, Betty Bigombe, procura iniciar conversações de paz com o LRM/A Esta aproximação a J. Kony por parte das autoridades governamentais toma o nome de “Iniciativa Bigombe”. João Paulo II apela à resolução do conflito numa visita oficial ao Uganda.

1996
O LRA rapta 137 raparigas de um colégio na região de Lango. Mais tarde liberta apenas 100. A campanha internacional iniciada pelos pais das crianças raptadas alerta a comunidade internacional para o conflito sudanês e mobiliza esforços para a resolução do mesmo.

1997
Realização do primeira grande “Kacoke Madit” (grande reunião Acholi) que decorre em Londres. Início da tentativa de mediação do conflito por parte da Comunidade de Santo Egídio.

1998
Iniciativa de paz da Acholi Religious Leaders Peace Initiative, um movimento inter-religioso formado com objectivo de procurar um caminho para a paz. Realiza-se, novamente em Londres, a segunda Kacoke Madit.  

1999
Com mediação do Carter Center, iniciam-se conversações de paz entre o Sudão e o Uganda. Em Dezembro é assinado o Acordo de Paz de Nairobi. Novos ataques do LRA dificultam a implementação deste novo acordo

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1 BIGO, Didier; HERMANT, Daniel – “De l’espoir a la crainte? Les lectures de la conflitualité”. In Cultures et Conflits, Outono, 2001.

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* Marisa Abreu Safaneta

Licenciada em Relações Internacionais pela UAL. Mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional pelo ISEG. Docente na UAL. Investigadora e membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Coordenadora do “Observatório de Conflitos” da UAL.

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Dados adicionais
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