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Intervenção humanitária e guerra preventiva: As novas guerras justas

Patrícia Galvão Teles *

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Duas guerras nos últimos cinco anos vieram pôr em causa a ordem jurídica internacional actual, havendo mesmo quem refira numa “desordem” jurídica internacional. Falamos da intervenção militar da NATO durante a crise do Kosovo em 1999 e da guerra do Iraque em 2003. A intervenção militar da NATO em 1999 foi justificada com base nos seus fins humanitários. O objectivo primordial dos aliados era o de parar a catástrofe humanitária a que se estava assistir na província jugoslava. Na guerra no Iraque, em 2003, foram apresentadas diversas justificações, entre elas a existência de um direito de legítima defesa preventiva para impedir o uso de armas de destruição maciça por parte do regime iraquiano ou por grupos terroristas. Ambos os casos ficaram marcados pela ausência de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas a autorizar expressamente o uso da força, no primeiro caso, por uma organização regional, no segundo, por uma coligação de Estados liderada pelos EUA. Ambas as guerras ficaram marcadas igualmente pela controvérsia que geraram, tanto nos meios políticos como nos meios jurídicos, precisamente dada a ausência de uma autorização do Conselho de Segurança e pelas justificações invocadas.

 

A ordem jurídica internacional vigente

Não cabe nesta publicação fazer uma análise jurídica, nem comparada, destas duas situações e da sua legalidade ou ilegalidade. Cabe apenas constatar que estamos perante dois momentos marcantes que podem pôr em causa, ou mesmo vir a alterar, as excepções actualmente consagradas ao princípio da proibição do uso da força, pela eventual consagração de novas causas justas ou legítimas para a guerra. O direito internacional contemporâneo, cuja pedra basilar é a Carta das Nações Unidas, concluída em São Francisco em 26 de Junho de 1945, proíbe o uso ou a ameaça do uso da força nos seguintes termos: os membros da Organização deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas. Apenas no caso de uma autorização colectiva por parte do Conselho de Segurança – este órgão das Nações Unidas detém o monopólio do uso da força na ordem jurídica internacional vigente – ao abrigo do Capítulo VII da Carta da Organização, podem ser tomadas medidas coercivas que envolvam o uso da força armada.

Trata-se de um uso da força autorizado pela comunidade internacional, em seu nome e para o exercício da segurança colectiva. A única outra e verdadeira excepção à proibição do recurso à força a título individual (ou também colectivo) pelos Estados é hoje o direito de legítima defesa, também ele consagrado na Carta das Nações Unidas e reafirmado recentemente pela Comissão do Direito Internacional nos seguintes termos: um acto praticado por um Estado deixa de ser ilícito se esse acto constituir uma medida lícita de legítima defesa em conformidade com a Carta das Nações Unidas. O direito de legítima defesa é tradicionalmente entendido como um direito que surge no caso de um ataque armado de um Estado contra outro Estado, enquanto o Conselho de Segurança não reage, ou no caso de ausência de reacção por parte deste órgão. Para além disso, o recurso à força em legítima defesa deve ser exercido dentro de condições restritivas: impossibilidade de reagir por outros meios, uso proporcional da força, no respeito pelo direito humanitário e apenas para afastar o ataque armado e enquanto durar a agressão, ou até o Conselho de Segurança tomar as medidas necessárias.

 

Os novos dilemas

Tanto a intervenção humanitária como a legítima defesa preventiva não parecem caber nos casos autorizados pela Carta das Nações Unidas de uso da força, na ausência de uma resolução do Conselho de Segurança. Mas a questão crucial que se coloca é precisamente essa: o que fazer no caso do Conselho de Segurança não agir quando, de acordo com a própria Carta, tem uma obrigação de reacção? Estaremos a caminhar, na ausência de actuação do Conselho de Segurança, para a legitimação de novas causas justas para fazer a guerra no caso da “intervenção humanitária” e da “legítima defesa preventiva”?

A prática dos Estados e as reacções da comunidade internacional, factores determinantes para a eventual consagração de novas excepções ao princípio da proibição do uso da força, indiciam diferenças entre estas duas justificações para o uso da força. A actuação da NATO na crise do Kosovo, apesar de criticada, foi considerada como muito próxima da legalidade, mesmo por aqueles que a catalogaram de ilegal. E, apesar da a Jugoslávia ter tentado contestar a legalidade deste uso da força perante o Tribunal Internacional de Justiça, muito provavelmente o Tribunal irá declarar-se incompetente para decidir sobre o mérito da causa, embora por razões de carácter processual.

 

Um novo paradigma: a responsabilidade de proteger

A protecção dos direitos humanos tem-se desenvolvido no sentido de ser hoje também um dos princípios fundamentais do direito internacional contemporâneo, a par da proibição do uso da força, da igualdade soberana, da não interferência nos assuntos internos ou do direito à autodeterminação, gerando, potencialmente, situações de conflito de princípios, todos eles com um estatuto de normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens). Um interessante estudo elaborado em 2001 por iniciativa do governo do Canadá vem inverter o ónus, a propósito da intervenção humanitária, substituindo a ideia de um direito de intervenção pela responsabilidade de proteger, e fornecendo indicações importantes sobre quando e como deverá ceder o princípio da igualdade soberana dos Estados, bem como sobre a legitimidade de uma intervenção humanitária.

Por seu turno, a ideia da guerra preventiva, parecer ter menor acolhimento na prática dos Estados, como demonstraram as reacções de uma parte significativa da comunidade internacional a esta justificação para a intervenção militar no Iraque em 2003. No entanto, a Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América (de 2002) consagra-a claramente, assumindo a prevenção contra ataques terroristas ou com armas de destruição maciça como ponto fundamental dessa estratégia. Só o tempo e as reacções da comunidade internacional e das suas instituições permitirão concluir com segurança se estamos, ou não, perante novas causas justas para fazer a guerra.

 

Informação Complementar

UMA RESPONSABILIDADE DE PROTEGER?

Na Assembleia Geral do Milénio em 2000, o primeiro-ministro do Canadá anunciou a criação de uma comissão internacional independente sobre a questão da intervenção e da soberania dos Estados, para responder ao desafio lançado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi Annan à comunidade internacional para tentar construir um novo consenso que permita responder às violações maciças de direitos humanos e do direito internacional humanitário. Esta Comissão tinha por mandato promover um debate aprofundado sobre estas questões e propor um consenso global que permitisse lidar com a polémica ou, muitas vezes, apatia da comunidade internacional, designadamente das Nações Unidas, e que permitisse conciliar as noções aparentemente irreconciliáveis de soberania do Estado e intervenção. Composta por doze peritos independentes oriundos dos vários cantos do globo (Canadá, Alemanha, Austrália, Índia, Filipinas, Suíça, Argélia, Estados Unidos, Rússia, África do Sul e Guatemala), esta Comissão apresentou em 2001 o seu relatório, cujas principais propostas se encontram no quadro em anexo e apontam critérios objectivos que poderão servir de base a futuras intervenções humanitárias.

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A ESTRATÉGIA NACIONAL DE SEGURANÇA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Cap. V – Impedir que os nossos inimigos nos ameacem ou ameacem os nossos aliados e amigos, com armas de destruição maciça

“Os Estados Unidos sempre defenderam a opção de acções preemptivas para combater uma ameaça séria à nossa segurança nacional. Quanto maior for a ameaça, maior é o risco de inacção – e mais fortes as razões para adoptar medidas de antecipação para nos defendermos, mesmo se existir incerteza relativamente ao momento e local do ataque inimigo. Para impedir ou evitar tais actos hostis dos nossos adversários, os Estados Unidos agirão, se necessário, preemptivamente.” (...) “O objectivo das nossas acções será sempre o de eliminar uma ameaça específica contra os Estados Unidos, os nossos aliados ou amigos. As razões para a nossa actuação serão claras, a força bem medida e a causa justa.”

Fonte: EUA, The White House – The National Security Strategy of the United States of America, 2002. www.withehouse.gov/nsc/nss.

 

A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER: SINOPSE DO RELATÓRIO DA COMISSÃO INTERNACIONAL

A responsabilidade de proteger: princípios fundamentais

1 – Princípios básicos

A. A soberania acarreta responsabilidade e a responsabilidade primária de proteger a população compete ao próprio Estado.
B.
Quando uma população sofre dramaticamente em virtude de uma guerra civil, de uma insurreição ou da inoperância das instituições estatais e o Estado em questão não quer ou não pode evitar ou terminar esse sofrimento, então o princípio da não interferência nos assuntos internos cede à responsabilidade internacional de proteger.

2 – Fundamentos

Os fundamentos da responsabilidade de proteger, com um princípio orientador para a comunidade internacional dos Estados, baseiam-se:
A.
Nas obrigações inerentes ao conceito de soberania;
B.
Na responsabilidade do Conselho de Segurança, ao abrigo do artigo 24º da Carta das Nações Unidas, pela manutenção da paz e segurança internacional;
C.
Nas obrigações jurídicas específicas que derivam dos instrumentos de protecção dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, estejam elas contidas em declarações, pactos, tratados ou no direito interno;
D.
No desenvolvimento da prática dos Estados, Organizações Regionais e do próprio Conselho de Segurança.

3 – Elementos

A responsabilidade de proteger abarca três responsabilidades específicas:

A. A responsabilidade de prevenir: lidar tanto com as causas remotas como directas dos conflitos internos e de outras crises causadas pelo homem que ponham as populações em risco.
B. A responsabilidade de reagir: responder às situações de grande necessidade humana com medidas apropriadas, que podem incluir medidas coercivas, tais como as sanções e a submissão à justiça internacional e, em casos extremos, até a intervenção militar.
C.
A responsabilidade de reconstruir: prestar assistência total, especialmente após uma intervenção militar, no que diz respeito à recuperação, reconstrução e reconciliação, tendo em conta as causas do sofrimento que motivaram a intervenção.

4 – Prioridades

A. A prevenção é a dimensão mais importante da responsabilidade de proteger. As possibilidades de prevenção devem ser sempre esgotadas antes de se contemplar recorrer a uma intervenção, devendo devotar-se a ela mais empenho e recursos.
B.
No exercício da responsabilidade de prevenir e de reagir deve sempre recorrer-se às medidas causadoras de menor perturbação possível.

 

A responsabilidade de proteger: Princípios a que deve estar sujeita uma intervenção militar

1 – Uma causa justa

A intervenção militar destinada a proteger a pessoa humana é uma medida excepcional e extraordinária. Para se justificar, é necessário que se esteja a verificar ou que seja iminente um sofrimento sério e irreparável por parte de uma população, do seguinte tipo:
A.
Perda de vidas humanas em larga escala, efectiva ou previsível, com ou sem intenção de cometer genocídio, que seja o resultado de uma acção deliberada do Estado ou da sua negligência ou incapacidade de agir ou ainda de uma situação de Estado falhado; ou
B.
‘limpeza étnica’ em larga escala, efectiva ou previsível, levada a cabo por assassinatos, expulsões forçadas, actos de terror ou de violação.

2 – Os princípios de precaução

A. Motivação adequada: o principal objectivo da intervenção, independentemente de quaisquer outros motivos que possam mover os Estados participantes, deve ser o de parar ou evitar o sofrimento humano. As operações multilaterais, claramente apoiadas pela opinião pública regional e pelas vítimas em causa, asseguram melhor esta motivação.
B.
Último recurso: a intervenção militar só se justifica quando todas as opções não-militares de prevenção ou resolução pacífica da crise tiverem sido exploradas e existirem razões fundamentadas para acreditar que outro tipo de medidas não teria sucesso.
C.
Meios proporcionais: A escala, duração e intenção da intervenção militar planeada devem ser o mínimo necessário para assegurar o objectivo de protecção da população definido.
D.
Perspectivas razoáveis: Deve existir uma expectativa razoável de sucesso em parar ou evitar o sofrimento que justificou a intervenção, não devendo as suas consequências ser piores do que a inacção.

3 – A autoridade adequada

A. Não existe nenhum órgão melhor ou mais apropriado do que o Conselho de Segurança das Nações Unidas para autorizar uma intervenção militar com fins humanitários. Não se devem tentar encontrar alternativas ao Conselho de Segurança como fonte de autoridade, mas sim fazer com que este funcione melhor.
B.
Antes de levar a cabo qualquer intervenção militar deve procurar-se obter a autorização do Conselho de Segurança. Quem reclamar tal intervenção deve solicitar formalmente tal autorização, fazer com que o Conselho de Segurança discuta o assunto por sua própria iniciativa ou por iniciativa do Secretário-Geral, ao abrigo do artigo 99º da Carta das Nações Unidas.
C. O Conselho de Segurança deve lidar prontamente com qualquer pedido de autorização para intervir quando existam alegações de perdas de vidas humanas em larga escala ou de limpeza étnica. Neste contexto, deverá procurar verificar adequadamente os factos ou as condições no terreno que possam fundamentar uma intervenção militar.
D.
Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança deveriam acordar não recorrer ao seu direito de veto em relação a assuntos em que não estejam envolvidos os seus interesses vitais, de modo a impedir a aprovação de resoluções a autorizarem uma intervenção militar com fins humanitários para as quais de verifique apoio da maioria dos membros.
E.
Se o Conselho de Segurança rejeitar uma proposta ou não lidar com ela num período razoável, as opções alternativas são as seguintes:

I. Apreciação do assunto pela Assembleia Geral numa Sessão Especial de Emergência ao abrigo do processo previsto na Resolução “Unidos para a Paz”; e
II. Actuação, no seu âmbito de jurisdição, por parte de organizações regionais ou sub-regionais ao abrigo do Capítulo VIII da Carta, desde que seja posteriormente solicitada a sua autorização ao Conselho de Segurança.

F. O Conselho de Segurança deveria ter em linha de conta em todas as suas deliberações que, se não cumprir a sua responsabilidade de proteger em situações que choquem a consciência da humanidade e que necessitam de uma actuação, os Estados em questão podem não se abster de encontrar outros meios para fazer face à gravidade e urgência dessa situação e que consequentemente a posição e credibilidade das Nações Unidas serão afectadas.

4 – Princípios operacionais

A. Objectivos claros; mandato objectivo e não ambíguo; e recursos necessários.
B. Abordagem militar comum de todos os parceiros envolvidos; unidade de comando; comunicações claras e inequívocas e cadeia de comando.
C.
Aceitação de limitações, aplicação incremental e gradual da força, sendo o seu objectivo a protecção da população e não a derrota do Estado.
D.
Regras de empenhamento adequadas ao conceito operacional e que sejam precisas, reflictam o princípio da proporcionalidade e um total respeito pelo direito internacional humanitário.
E.
Aceitação de que a protecção da força não se pode tornar o objectivo principal.
F.
Máxima coordenação possível com as organizações humanitárias.

Fonte: International Commission on Intervention and State Sovereignty – The Responsibility to Protect, 2001. www.dfait-maeci.gc.ga/iciss-ciise/report.asp

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* Patrícia Galvão Teles

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutorada em Direito Internacional Público pelo Institut Universitaire des Hautes Études Internationales de Genebra (Suíça). Docente na UAL. Consultora do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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