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O novo padrão de despesa militar na transição do milénio

Ana Elisa Cascão e Manuel Braga *

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Os acontecimentos de 11 de Setembro marcaram de um modo indelével todo um discurso e uma prática sobre Segurança, Defesa e Cooperação Internacional. Todavia, as actuais fobias securitárias são o resultado de várias décadas de promoção de uma autêntica cultura bélica, sob a qual, países, regiões e o próprio mundo se encontraram prisioneiros e em que o receio do “outro” e, simultaneamente, a necessidade de se controlarem tensões internas, detonaram uma idiossincrasia iconoclasta dos equilíbrios precários existentes e de um dividendo de paz que, na realidade, nunca se conseguiu verdadeiramente capitalizar.

 

Peso das despesas militares nas despesas públicas (1984-1999)

Não é por isso de estranhar que o fim da Guerra Fria, a queda do “Bloco de Leste” e a implosão desagregadora da URSS tenham apenas permitido que se expurgasse do padrão de despesas militares as dinâmicas (e os fluxos financeiros) directamente relacionadas com o conflito latente e ubíquo, preconizado desde os anos 50 pelos dois pólos ideológicos. A atestá-lo basta que se atente na manutenção, ao longo de toda a década de 90, de elevados orçamentos consagrados à militarização política das relações internacionais (em termos globais de despesa pública, nunca abaixo dos 10%, mais do que se afectou no mesmo período, por exemplo, à Saúde ou à Educação).

O Médio Oriente, depositário preferencial, desde o início da década de 80, da produção de armas convencionais (tanto ligeiras como de “grande porte”), assume-se, no início do novo milénio, como o epicentro geográfico de muitas perturbações no delicado equilíbrio mundial (conflito israelo-palestiniano, crises iraquianas, reformas e instabilidade interna iranianas, reivindicações nacionalistas curdas) e como o “berço” de potenciais terrorismos, fundamentalismos e instrumentalização do Islão. Destaque-se ainda que a Arábia Saudita (hoje aliada dos Estados Unidos, amanhã não sabemos) bate todos os recordes desta região, constituindo-se, aliás, como o maior importador de armas do mundo.

 

O peso da importação de armamento enquanto prioridade orçamental

A elevada dependência de determinados países face à sua indústria de armamento (como no caso da URSS, em que mais de 20% das exportações dependiam deste “bem económico”, mas também, embora em menor grau, da Rússia pós-Ieltsin), ou a profunda imbricação de que usufruem os fortíssimos lobbies desta indústria com os interesses de diversos executivos (como ficou patente pela posição minimalista dos EUA, na Conferência das Nações Unidas sobre o controlo do comércio de armas ligeiras e de pequeno porte, realizada em 2001) constituem, por si só, uma das vertentes económicas mais relevantes e determinantes para que o dividendo da paz (quantificado de forma contrafactualista, pelo Banco Mundial, em cerca de 2,2% do PIB) seja antecipado, de forma sucedânea, por uma sua prossecução de base militar e/ou militarista cujos fins imediatos se reportam a interesses outros que não os sociais e/ou humanitários.

 

O peso da exportação de armas em termos de exportações totais

Se se atentar no facto de que são os países desenvolvidos que se afirmam como os principais exportadores de armas (com especial ênfase nos EUA, na França e na antiga URSS, agora “reabilitada”, pelo menos em termos militares, desde a ascensão de Vladimir Putin ao Kremlin) e assumindo que estes não usufruem de um qualquer tipo de incapacidade em termos de raciocínio prospectivo sequencial, dificilmente se compreende então como é que os mesmos actores internacionais que condicionam a ajuda ao desenvolvimento à satisfação de determinadas considerações políticas, sociais e humanas, contribuem eles mesmos para que a instabilidade em Estados, cuja fragilidade das formações sociais territoriais é evidente, seja agravada por uma selecção adversa das prioridades governativas, influenciada de forma implícita, mas “palpável”, por esses mesmos países desenvolvidos.

 

Os principais fornecedores de armas

Verificando-se, desde 2000, uma retracção da potência hegemónica, em termos do seu peso enquanto exportador de armamento, tal é susceptível de ser explicado, não com base numa qualquer reestruturação do tecido industrial americano, no sentido de uma sua reorientação para actividades exclusivamente civis (antes pelo contrário, como o corroboram as recentes fusões, dinamizadas ainda pela administração Clinton, verificadas entre uma série de empresas do sector), mas antes por outras ordens de razões.

Em primeiro lugar, pela reabilitação (reforma e modernização) da indústria pesada russa e consequente reconquista de quotas de mercado, que durante toda a década de 90 haviam sido ocupadas pelos Estados Unidos e pela própria Europa continental e, em segundo lugar, pela adopção de critérios mais selectivos dos destinos das armas de fabrico americano, pois as experiências do Kosovo, do Afeganistão e do próprio Iraque deixaram um legado, que não era possível constituir em epifenómeno. Em última instância, é legítimo advogar que se está a assistir a uma situação equiparável ao que se passou no final dos anos 70, com os Estados Unidos a investirem fortemente na qualidade do equipamento militar e em tecnologia de ponta (um aumento rápido e competitivo na qualidade é um dos componentes essenciais da corrida ao armamento) e não na exportação exponencial de armamento, sendo que o contexto já não é o da rivalidade bipolar, mas antes um em que os “rivais” são todos os que desafiam a sua hegemonia solitária de uma década.

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Despesas militares por habitante (1984-2002)

Afirmar de um modo linear e holista que os orçamentos militares sofreram um processo expansionista desde as ocorrências de 2001 não só é simplista e falacioso como não corresponde de todo à realidade que empiricamente lhe serve de base. É certo que, entre 1999 e 2002, o orçamento de defesa americano cresceu, em termos per capita, cerca de 15,9% (tendo como grande justificativo a luta contra a ameaça terrorista “global”), que o peso das despesas militares sobre cada indivíduo russo aumentou, no mesmo período, mais de 170% e que a República Popular da China (uma grande potência, cujas capacidades se mantêm, de facto, incógnitas e cujo investimento declarado, desde o início dos anos 90, apenas pode levar a supor que, num futuro próximo, o seu papel enquanto interlocutor internacional será cada vez mais incontornável) onerou, em termos relativos, em mais 44,2% as contribuições individuais para a orçamentação militar. Todavia, ao contrastar estes valores e o facto de que, em termos globais, o crescimento por habitante deste tipo de despesa se ter cifrado “apenas” em 7,3% e que a “Velha Senhora” Europa promoveu mesmo um recuo deste indicador, na ordem dos 22,1%, então é possível inferir que “a” corrida ao armamento não existe senão para os que com ela têm algo (ou mesmo muito) a ganhar. De qualquer forma, o recrudescer do investimento em despesas militares a nível mundial era já visível desde 1998, o que pode ser encarado como um ponto de inflexão no padrão verificado no período pós-Guerra Fria, mas não como o início de uma corrida desenfreada ao armamento.

 

Os orçamentos da defesa na Europa e nos EUA (2001-2002)

Relativamente à Europa, é possível inferir, com base nos diversos parâmetros em análise, que existe uma estabilidade comportamental nas suas opções de despesa militar apenas alterada num único ponto de ruptura (o ano de 1990, com o fim da Guerra Fria), a partir do qual se nota um declínio, quer no peso deste tipo de despesa nas contas públicas, quer na relevância das exportações de armamento, em termos de exportações totais, não obstante o lugar de destaque destas, em termos de exportações mundiais. Neste sentido, os acontecimentos de 11 de Setembro não parecem, pelo menos no imediato, constituir-se como um segundo ponto de ruptura potencial (desta feita, de orientação inversa ao de 1990) no comportamento militar europeu, ainda que alguns Estados ( em particular Reino Unido e França) apresentem previsões de crescimento para as suas despesas militares nacionais até 2006.

De qualquer forma, estes Estados encontram-se inevitavelmente cingidos por contingências internas da União Europeia, nomeadamente o cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento. A título conclusivo, é possível afirmar que neste início de milénio se acentua de forma acrescida o hiato transatlântico, com os EUA a reforçarem a sua hegemonia em termos de despesa militar, como resposta aos (novos) desafios de segurança que se lhe colocam e com a Europa a exibir apenas ligeiros e pontuais aumentos nas verbas afectas a esta categoria orçamental (o que não pode ser designado de “corrida”), evidenciando, mais uma vez, a divergência histórica sobre perspectivas de segurança mundial.

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* Ana Elisa Cascão

Licenciada em Económicas e Políticas pela Universidade do Minho. Mestre em Estudos Africanos pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Doutoranda em Geografia no King’s College – University of London. Investigadora no Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP).

* Manuel Braga

Licenciado em Economia pelo ISEG. Mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE. Doutorando em Sociologia no ISCTE.

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Dados adicionais
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Link em nova janela Despesas militares por habitante - 1984-2002

Link em nova janela Peso das despesas militares nas despesas públicas - 1984-1999

Link em nova janela Peso das exportações de armas em termos de exportações totais - 1984-1999

Link em nova janela O peso da importação de armamento enquanto orçamento - 1984-1999

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