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Esta regressão é a expressão da amplitude e da intensidade conferidas à resposta norte americana aos atentados de 2001. Amplitude, em primeiro lugar: a Administração Bush definiu uma extensa multiplicidade de inimigos a serem alvo desta guerra e incluiu-os a todos num tratamento uniforme. Intensidade, em segundo lugar: os objectivos definidos e os meios adoptados têm como resultado absolutamente necessário uma totalização do espaço internacional pela guerra. Enfim, uma tão evidente pujança desta nova agenda internacional há-de ter impacto sobre os próprios quadros teóricos de estudo das Relações Internacionais. Analisemos cada um destes quatro aspectos separadamente.
Muitos e iguais Um ano depois dos atentados de Nova Iorque e Washington, o fundamental documento National Security Strategy ofthe United States of America proclamava que “... our responsibility to history isalready clear: to answer these attacks andrid the world of evil.” E prosseguia: “Theenemy is not a single political regime orperson or religion or ideology. The enemyis terrorism (…)”. A amplitude dos alvos da resposta é, pois, potencialmente infinita. Ela inclui todo o tipo de organizações terroristas, seja qual for a escala em que operem; os Estados-pária já membros do Eixo do Mal e outros que venham a merecer, por insondáveis razões, essa qualificação; todo o tipo de entidades que facilitam armas de destruição em massa a grupos terroristas ou a Estados-pária; e o terrorismo em si mesmo (“o mal”). A par desta amplitude dos alvos – inevitável numa guerra que é desenhada “contra o mal” – a estratégia adoptada no âmbito da guerra contra o terrorismo foi a sua indiferenciação. Quer dizer, “como ameaças, os terroristas, as organizações terroristas e os Estados terroristas são considerados como uma só”, como observou Jeffrey Record (2003: 16). Ora, a indiferenciação de alvos determina, as mais das vezes, uma correspondente indiferenciação de tratamentos. Neste sentido, a parte publicamente conhecida da condução da guerra contra o terrorismo tem evidenciado uma valorização do que é comum a estes Estados, grupos e redes (o uso da violência contra a ordem estabelecida), em detrimento da sua singularidade. E, por consequência, pouco relevo é conferido nessa condução pública e na respectiva retórica, à eficácia específica que meios “aquém” da guerra, como a contenção ou a pressão negocial, podem assumir. Esta vantagem de um tratamento diferenciado pôde ser aferida, já depois de iniciada a guerra contra o Iraque, no modo (diplomático e negocial) como foi abordada, pelos mesmos Estados Unidos, a retoma do programa nuclear pela Coreia do Norte.
A nebulosa dos objectivos Os fins apontados à guerra contra o terrorismo são igualmente de uma enorme amplitude. Jeffrey Record (Idem: 23) contabiliza seis objectivos já enunciados:
A amplitude de alvos gera uma nebulosa de objectivos. De algum modo, a convicção de que há um vínculo entre o terrorismo internacional e a resistência da região do Médio Oriente à modernidade – nos domínios económico, político ou cultural – inspira esta construção em cascata. As raízes ideológicas desta fundamentação do catálogo de objectivos da guerra contra o terrorismo são indisfarçáveis. Elas remontam aos princípios proselitistas de um colonialismo alegadamente benigno e de uma missão sagrada de civilização que têm vindo a ser desenvolvidas por alguma da entourage da actual Administração americana ou do Governo Blair. Nesses termos, o combate ao terrorismo é concebido como um desígnio de tipo estrutural (e não meramente operacional e pontual), formulado como uma luta sem tréguas contra as supostas raízes do fenómeno. Trata-se, deste ponto de vista, de uma grand strategy concebida com base na identificação (ideologicamente formatada, repete-se) de motivos profundos que conduzem à adopção do terrorismo como expressão política. A guerra, e designadamente a guerra preventiva, é um instrumento irrecusável dessa estratégia, ou não fosse ela entendida como a alternativa adequada ao binómio satânico “Estados-pária – armas de destruição em massa).
A guerra é a guerra Lembra Daniel Byman que “a Al-Qaeda não é um grupo terrorista individual mas um insurgente global” (2003: 79-80). Junte-se a esta advertência a de Audrey Kurth Cronin, (2002: 38) para quem o que distingue a actual fase do terrorismo internacional – a “quarta vaga”, que vem suceder ao terrorismo anti-imperial da viragem do séc. XIX para o séc. XX, e aos mais recentes terrorismo anti-colonial e terrorismo urbano anticapitalista – é afinal o repto que ela lança a soluções que sejam capazes de dar resposta ao fanatismo religioso dos terroristas e às motivações políticas de Estados, grupos e povos disponíveis para os apoiar em virtude da sua marginalização e exclusão social no sistema internacional contemporâneo. Contra um inimigo assim, a guerra só poderia ser uma metáfora. Como a guerra contra o alcoolismo, ou a guerra contra a evasão fiscal. Mais ainda: a guerra como metáfora do combate aturado e sem transigências inclui certamente operações militares, as militaryoperations other than war. Mas sempre e só como componente, certamente menor e pontual, de uma panóplia diversificada de meios, organizados em diferentes etapas desse combate (do confronto imediato à prevenção estrutural), e que inclui à cabeça a espionagem e a troca de informações, o policiamento (incluindo os mecanismos de financiamento transnacional) e a criação de condições políticas, culturais e sociais para uma erradicação, a prazo, do recurso ao terrorismo. Ora, na prática, registou-se uma inversão quase radical deste entendimento. Com a guerra contra o Iraque, a guerra contra o terrorismo deixou de ser uma metáfora de combate radical para se reduzir a uma guerra concreta. Há porventura dois aspectos que assumem mais realce nessa redução. Por um lado, a guerra contra o Iraque retirou intensidade à natureza nova que se adivinhava numa guerra contra o terrorismo – a já referida amplitude de objectivos e multiplicidade de alvos ficou significativamente reduzida no quadro de um conflito clássico, entre Estados com os respectivos exércitos nacionais e em que o argumento tradicional da soberania tem um valor simbólico primordial. Por outro lado, a modalidade técnico-jurídica dessa redução não é certamente indiferente. O desencadeamento, para mais nos termos em que foi feito, de uma guerra preventiva – isto é, iniciada na convicção de que a ameaça, não sendo iminente, aconselha o uso da força antes de o poder vir a ser (o que distingue esta versão da guerra preemptiva, em que a natureza iminente da ameaça é incontroversa) – não só lançou uma mensagem contraditória aos alegados Estados-pária relativamente ao imperativo da não proliferação de armas de destruição em massa, como contribuiu significativamente para uma eternização da guerra, atolada num clima de guerrilha que desvia meios, esforços e atenções para o que seria, quando muito, apenas um episódio lateral da guerra contra o terrorismo. Na síntese de Jeffrey Record (Idem: 34), “o que começou como uma breve guerra convencional por escolha veio a tornar-se numa guerra não convencional por necessidade e sem fim.” Assim a considera uma parte importante das análises disponíveis: um desvio e não uma parte integrante da guerra contra o terrorismo.
Guerras teóricas A guerra é também de palavras e ideias. De facto, o debate teórico em Relações Internacionais é um outro campo desta batalha. A centralidade obsessiva que a guerra passou a ter na agenda das relações internacionais em detrimento de políticas diversificadas e multilaterais de promoção do desenvolvimento económico e humano teve evidentes impactos no terreno teórico. Esses impactos situam-se em dois planos. Em primeiro lugar, uma renovada força das teses realistas, para as quais, num sistema internacional anárquico, é a acumulação de poder e a sua afirmação simbólica e material (a power politics) que constitui a referência fundamental. No actual cenário internacional, os realistas sentem-se reconfortados e entendem a perda de importância de focagens cooperativas e institucionalistas como a prova de que esse não era senão um olhar distorcido sobre a realidade, na qual a vertigem hobbesiana do poder e da guerra sempre terá estado latente. Por outro lado, todavia, descortina-se em algumas elaborações teóricas uma preocupação de sentido oposto: a de apontar caminhos para uma superação desta hiper-centragem da agenda internacional sobre a guerra. Entre muitos outros, é o caso de Mary Kaldor (2003: 27), para quem a resposta adequada à ofensiva de “globalizadores regressivos” como a Al-Qaeda – que se organizam como as redes globais de empresas ou de ONG’s mas para afirmarem o seu ódio fanático à modernidade – não pode ser outra senão a de “globalizadores progressistas”, isto é, que pretendem desenvolver uma estratégia de governação global baseada na lei e na articulação entre as sociedades civis e as instituições internacionais. Para esta outra visão das coisas, o uso de medidas militares não é de descartar mas ele só pode ter lugar como expressão de decisões institucionalmente legitimadas; em segundo lugar, a promoção dos direitos humanos, seja a título preventivo seja por intervenção dos mecanismos judiciais apropriados, deve ter primazia; enfim, em terceiro lugar, o desenvolvimento humano e a segurança humana devem ser, mais que nunca, objectivos prioritários a ser alcançados com uma combinação do uso dos sistemas educativos, dos media, dos aparelhos de protecção social e dos sistemas de emprego. Alguma literatura sugere a expressão “quarta guerra mundial” para caracterizar o actual momento do sistema internacional. A falta de formalidade (declaração de guerra, ocupação territorial, armistício, …) não é senão um álibi frouxo para negar razão a essa sugestão. Afinal de contas, a Guerra-fria – para não invocar a realidade dominante das small wars ou das newwars – também não se pautou por esse cerimonial clássico. A amplitude de objectivos, a multiplicidade de alvos e a intensidade das estratégias da guerra contra o terrorismo impõem-na como guerra total. E eterna?
Informação Complementar A MODERNIDADE COMO INIMIGO De acordo com Mary Kaldor, o novo terrorismo global partilha com o terrorismo tradicional os objectivos de tomada do poder estatal mas tem como traço inovador a sua auto-identificação como anti-moderno e reaccionário. Kaldor elenca quatro facetas principais a este respeito: • Luta pelo poder político, geralmente mediante o controle do Estado – enaltecimento de uma concepção clássica do Estado, com hipertrofia da sua soberania; • Oposição à modernidade – Rejeição da dúvida, da interrogação e do relativismo. Homofobia. Tradicionalismo familiar e consideração da igualdade entre homens e mulheres como uma perversão; • Afirmação da urgência de regeneração de uma sociedade corrupta – centralidade da noção de decadência, em articulação com a nostalgia de um passado “puro” em que a comunidade estava “limpa” de misturas e de contágios deturpadores da tradição; • Inserção na luta “final” contra o outro – imaginário de guerra (santa ou civil), impregnado de xenofobia. CRONIN, A. K. (2002) – “Behind the curve. Globalization and international terrorism”. In International Security, 27(3). KALDOR, M. (2003) – “Terrorismo global”. In Papeles de Cuestiones Internacionales, 84. RECORD, J. (2003) – “Bounding the global war on terrorism”. In Carlisle, Strategic Studies Institute.
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