Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2005 > Índice de artigos > Guerra e Paz nos nossos dias > Construção da paz e casos de mediação > [O “Centre for Conflict Resolution”: uma ONG Sul-Africana]  
- JANUS 2005 -

Janus 2005



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


O “Centre for Conflict Resolution”: uma ONG Sul-Africana

João Bernardo Honwana e Andries Odendaal *

separador

O Centre for Conflict Resolution (CCR), uma organização não-governamental sul-africana, constitui uma ilustração convincente do potencial da chamada track-two diplomacy, considerando o seu historial na realização de intervenções de grande eficácia em situações de conflito. Entre 1992 e 2003, o CCR desenvolveu um variado conjunto de programas de grande impacto tais como: a pesquisa sobre segurança, da qual resultaram importantes contribuições para o estabelecimento de relações cívico-militares democráticas na África do Sul, bem como para a configuração da arquitectura de segurança regional na África Austral; serviços de mediação, facilitação e treinamento em resolução de conflitos, especialmente formulados para jovens, forças policiais e serviços prisionais na própria África do Sul, bem como para diplomatas dos países da região; a formação em direitos humanos e gestão de conflitos; a promoção de diálogo político no Burundi; e a capacitação de actores da sociedade civil no Lesoto e em Moçambique. Este artigo examina assim os fundamentos teóricos e empíricos da abordagem do CCR à resolução de conflitos e os princípios que norteiam as suas intervenções noutros países africanos.

 

O “Centre for Conflict Resolution” (CCR)

Em 1968 foi fundado pela University of Cape Town (UCT) o Centre for Intergroup Studies (CIS), com o propósito de submeter a problemática dos conflitos inter-raciais a uma rigorosa pesquisa académica. Cedo o CIS decidiu complementar a pesquisa com a facilitação do diálogo entre representantes da população negra, da elite Afrikaner e da tradição liberal inglesa. Os seminários e conferências organizados pelo CIS com esse fim constituíam raros momentos de interacção pacífica entre grupos, de outro modo antagónicos, no contexto da crescente polarização da vida política sul-africana, nas décadas de 70 e 80 do século passado. A 2 de Fevereiro de 1990, ao anunciar a legalização de todos os partidos políticos e a libertação de Nelson Mandela e de outros dirigentes da luta anti-apartheid, F. W. de Klerk criou na arena política sul-africana um inesperado espaço em que a negociação substituía a violência como estratégia de gestão das relações entre os diversos grupos sociais. Com apreensão, sul-africanos de todas as raças se lançaram à busca de uma cidadania comum, inventando um presente e um futuro finalmente partilhados.

À medida que avançava o desmantelamento negociado do apartheid, crescia a consciência da importância dos instrumentos teóricos e práticos do diálogo construtivo como elementos imprescindíveis à tarefa de harmonizar os interesses, muitas vezes antagónicos, dos distintos grupos sociais no país. Atento às exigências da nova situação, o CIS adicionou a formação em resolução de conflitos aos seus programas de pesquisa académica, passando a dar maior ênfase à aplicação prática de projectos de consolidação da paz. Este reajustamento de perspectiva pesou significativamente na decisão de mudar, em 1994, a designação para Centre for Conflict Resolution (CCR).

 

Uma questão de princípios

Na sequência das eleições de 1994 e da readmissão da África do Sul na comunidade internacional, o CCR recebeu inúmeros pedidos de assistência vindos de outros países africanos. Após alguma relutância inicial, o CCR estabeleceu o Programa de África, em 1996, com a tarefa de coordenar a expansão das suas actividades ao resto do continente, guiada pelos cinco princípios que a seguir se apresentam. Estes princípios foram formulados em resultado da tomada de consciência de que actores externos, ainda que bem intencionados, têm muitas vezes contribuído para exacerbar situações de conflito, em vez de as ajudar a resolver. Isto tem acontecido por várias razões: acções a curto prazo em vez de envolvimento a longo termo; ignorância e falta de sensibilidade pela cultura e dinâmicas políticas locais; desrespeito pelos actores locais; e competição com outras organizações.

A responsabilidade de abordar, gerir eresolver conflitos em países africanos recaiem primeiro lugar sobre os protagonistasdesses conflitos, e outros indivíduos eorganizações nesses países. O CCR procuraapoiar e capacitar esses indivíduos egrupos através de programas de formaçãoe treino, da partilha de recursos, daanálise e da oferta de serviços defacilitação e mediação imparciais. Este postulado reflecte a experiência de transição política sul-africana, no sentido em que este processo foi iniciado e dirigido pelos actores internos. Ainda que actores externos tenham contribuído para o sucesso da transição, a iniciativa e o controle desse processo pertenceram sempre aos actores sul-africanos. Esta experiência reforçou a convicção do CCR de que, quando os protagonistas de um dado conflito se envolvem na busca de soluções através do diálogo e das negociações, discutindo as causas estruturais subjacentes ao conflito, a probabilidade de sucesso aumenta; pelo contrário, quando os protagonistas são passivos e esperam que forças externas venham resolver o seu problema, é muito difícil chegar a soluções efectivas, duráveis e justas.

Por esta razão o CCR procura reforçar a capacidade de negociação das partes em conflito e, se a isso for convidado, oferece uma mediação imparcial, de modo a facilitar discussões conducentes a resultados positivos. O CCR procurará desenvolver parceriasduráveis com organizações locais, em vezde se envolver em acções imediatistas. Este princípio ilustra a aceitação pelo CCR da necessidade de processos sustentáveis e o seu cepticismo em relação a actividades isoladas e de curto prazo. Isto é assim porquanto conflitos sérios normalmente resultam de profundas desconfiancas entre os protagonistas, de percepções de injustiça e de uma história de violência e de desrespeito pela dignidade humana. A resolução de tais conflitos e o advento de uma paz justa e duradoira, por conseguinte, não são fáceis e levam tempo a efectivar.

O CCR só trabalhará noutros países sea isso for convidado por organismoscredíveis nesses países. Este princípio tem a ver com a apreensão com que o CCR vê o papel da República da África do Sul em África, à luz da sua história de desestabilização sul-africana no continente e ao seu potencial para se instituir em potência dominante. Ao ser convidado a intervir por organismos credíveis nos países visados, o CCR protege-se contra possíveis acusações de arrogância e desígnios imperiais. Este princípio também reforça a ideia de privilegiar o papel dos actores internos no processo de resolução de conflitos. O CCR procurará estabelecer laçosestreitos de cooperação com organizaçõescongéneres no desenvolvimento e execuçãodos seus programas. Este será, talvez, o princípio mais difícil de executar, uma vez que os organismos de resolução de conflitos muitas vezes se encontram em intensa competição uns com os outros. Eles competem pelo acesso aos actores-chave nos países em que intervêm, competem pelo acesso a financiamentos dos doadores e, em última análise, competem pelos benefícios que normalmente acompanham as intervenções de sucesso. A ironia desta realidade merece registo: instituições cuja razão de existir é precisamente a promoção da cooperação e colaboração na resolução de conflitos alheios, assumem comportamentos conflituosos e usam tácticas de exclusão nas relações entre si. Obviamente, esta competição resulta na duplicação desnecessária e indefensável de esforços e no esbanjamento de recursos que só prejudicam o objectivo da promoção da paz. Daí a adesão do CCR ao princípio de colaboração com outros organismos de resolução de conflitos.

Topo Seta de topo

O CCR está consciente do potencial daÁfrica do Sul de dominar os seus vizinhos.O CCR não acredita que a África do Sultenha todas as respostas; pelo contrário,há muito que os sul-africanos podemaprender de outros países. Esta manifestação de humildade do CCR é tão séria quanto ambígua. Em África, o CCR pretende desenvolver relações baseadas na igualdade de parceiros e benefícios mútuos. À luz do conceito de conflito discutido anteriormente, a imposição de modelos importados de resolução de conflitos é inaceitável. A insistência na necessidade de empatia por todos os protagonistas de um dado conflito, na importância de identificar e compreender as causas específicas do conflito, e o valor que o CCR atribui à colaboração na formulação e execução de soluções endógenas, tudo isso inviabiliza a imposição de fórmulas preconcebidas. Por outro lado, a ambiguidade contida neste princípio advém da quase obsessão do CCR com o seu próprio conceito e método de resolução de conflitos.

Apesar de todas as boas intenções, a experiência sul-africana acabará por modelar, em maior ou menor grau, as intervenções do CCR noutros países africanos. Por outras palavras, ainda que aberto à ideia de aprender com a experiência dos outros, o CCR está imbuído de uma fé quase missionária na sua própria abordagem à resolução de conflitos. Em resumo, o CCR conduz as suas actividades noutros países africanos com um misto de profunda confiança na legitimidade da sua abordagem à resolução de conflitos e uma aguda consciência do alto potencial devastador que pode advir de intervenções arrogantes e imediatistas. Por essa razão, o CCR procura estabelecer parcerias com actores locais, fundamentalmente para reforçar a sua capacidade. Essa “capacidade”, contudo, seria determinada por aquilo em que o CCR acredita e refere-se primariamente aos conceitos e práticas que possibilitam o diálogo, a negociação e a mediação.

 

Informação Complementar

AS BASES TEÓRICA E EMPÍRICA DA ACÇÃO DO CCR

A acção do CCR fundamenta-se na convicção de que, através de processos de facilitação e mediação eficazes, se pode transformar o modo como indivíduos e grupos resolvem as suas diferenças, inculcando atitudes que promovem abordagens construtivas – e não antagónicas – à resolução de conflitos. Esta convicção radica no pensamento Quaker, nas teorias de John Burton, e na experiência da transição sul-africana. Vejamos cada uma destas fontes de inspiração em mais detalhe. Os Quaker, uma sociedade religiosa criada no Reino Unido no século XVII e posteriormente desenvolvida nos Estados Unidos da América, distinguiram-se na primeira e segunda guerras mundiais pela sua acção humanitária e em prol da paz. Ao longo dos anos, os Quaker desenvolveram uma abordagem à resolução de conflitos baseada na convicção de que cada pessoa tem o potencial de se transformar, independentemente das atrocidades e/ou perversidades que possa ter cometido ou sofrido. Por essa razão, e apesar da sua repulsa por tais injustiças, os Quaker conseguem desenvolver relações de empatia com todos os protagonistas do um dado conflito, conquistar a sua confiança e, nessa base, oferecer uma mediação eficaz e imparcial.

Por sua parte, John Burton, diplomata e académico australiano, defende que os conflitos são provocados e sustentados pela frustração de profundas aspirações sócio-psicológicas, tais como o respeito pela identidade, ou o anseio pela segurança e liberdade. Para resolver tais conflitos, a coerção e o uso da força são respostas desapropriadas e mesmo contraproducentes. O que funciona é a análise da natureza do problema, de modo a transformar as estruturas sociais e políticas que sistematicamente provocam tal frustração. Antes de 1990, o conflito sul-africano era considerado um dos mais complexos do mundo e poucos observadores acreditavam na possibilidade da sua resolução pacífica.

Os diversos cenários que se traçavam diferiam apenas na previsão da duração e do grau de violência da confrontação entre negros e brancos, mas não na sua inevitabilidade. Todavia, a negociação do fim do apartheid trouxe uma realidade totalmente diferente aos vários níveis da sociedade: os sul-africanos foram sendo expostos, primeiro, ao choque emocional de descobrir a humanidade do ‘inimigo’; depois, ao complexo exercício de eliminar as desconfianças acumuladas ao longo dos anos de apartheid e criar as bases de respeito mútuo na busca de soluções exequíveis; e, finalmente, à euforia das eleições que selaram simbolicamente os acordos alcançados.

 

DIÁLOGO POLÍTICO NO BURUNDI

Entre 1995 e 2001, o CCR e a ONG americana Search for Common Ground desenvolveram o Political Dialogue Project [Projecto de Diálogo Político], uma iniciativa conjunta de mediação informal no Burundi, cujo principal protagonista foi Jan Van Eck, consultor sénior do CCR. Enquanto Van Eck passava a maior parte do tempo no Burundi, um pequeno grupo de colegas no CCR, incluindo os co-autores deste artigo, tinham com ele reuniões sistemáticas sempre que vinha à Cidade do Cabo, analisando os desenvolvimentos mais recentes, seleccionando opções e identificando oportunidades para acções complementares, tais como o treino e formação em resolução de conflitos e técnicas de negociação, e a capacitação de órgãos da sociedade civil local. Fortemente influenciado pelo processo sul-africano, Van Eck revelou-se um hábil moderador num exercício de mediação extremamente delicado. Nos seus incontáveis encontros com um amplo número de representantes das diversas sensibilidades políticas no país, Van Eck procurou – e conseguiu em grande medida – compreender o conflito na perspectiva dos seus diferentes protagonistas. Nas palavras dos próprios burundeses: “Nós vimos muitos outros que vinham com as suas ideias, não nos ouviam nem nos procuravam entender. Van Eck ouviu-nos com imensa paciência, mesmo quando nós repetíamos a mesma história várias vezes. Ele não nos impôs as suas ideias. A princípio ele nem oferecia sugestões, só fazia perguntas” (1).

Como resultado da sua capacidade de empatia, Van Eck ganhou a confiança da grande maioria dos actores burundeses que viam nele um mediador fiável e imparcial. Provavelmente o resultado mais significativo do trabalho de Van Eck foi a formação da “Parceria Interna” e do governo de transição em 1998, num acordo que envolveu o governo do Presidente Buyoya, a facção mais importante da União para o Progresso Nacional (UPRONA), o maior partido Tutsi, a alta chefia militar, a Frente Democrática do Burundi (FRODEBU) maioritariamente Hutu, e a AssembleiaNacional dominada pela FRODEBU. Tendo deixado o CCR em 2001, Van Eck continua a trabalhar no Burundi, agora apoiando os esforços de mediação do Vice-presidente sul-africano Jacob Zuma, especialmente, em termos de facilitar os contactos com os movimentos rebeldes e garantir a cessação das hostilidades.

separador

* João Bernardo Honwana

Investigador Sénior e Coordenador de projectos no Centro de Resolução de Conflitos entre 1993 e 2000. Colabora com as Nações Unidas desde Fevereiro de 2000 e é actualmente representante do Secretário Geral das Nações Unidas para a Guiné-Bissau.

* Andries Odendaal

Orientador Sénior e Gestor de Projectos no Centro de Resolução de Conflitos da Cidade do Cabo. Foi Coordenador Regional do Comité de Paz do Cabo Ocidental durante a transição democrática sul-africana em 1993/94. Em nome do Centro tem gerido projectos no Lesoto, Malawi e Zimbabwe, bem como um projecto em Gestão de Conflitos Étnicos e Diversidade.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2004)
_____________

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
 

Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores