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O modelo padrão de reconstrução pós-bélica das Nações Unidas Este novo mecanismo, que caracterizou a actuação das Nações Unidas em vários países ao longo da década de 90, foi aplicado pela primeira vez em 1989, na Namíbia (com a UNTAG), e serviu de modelo às subsequentes operações da ONU. Utilizando os conceitos desenvolvidos nas décadas anteriores por investigadores como Johan Galtung, o novo conceito de (re)construção ou consolidação da paz pós-conflito – proposto por Boutros Boutros-Ghali, no seu relatório Uma Agenda para a Paz, de 1992 – passou, na opinião de Oliver Ramsbotham, a englobar uma função negativa de prevenção do retorno à violência (paz negativa, de curto prazo) e uma função positiva, de ajuda à recuperação nacional, à eventual remoção das causas que estão na raiz do conflito violento e à criação de condições que conduzam à reconciliação (paz positiva, de longo prazo). Esta fase positiva de reconstrução ou reconciliação pós-bélica, ou de consolidação da paz, não é, em si mesma, uma fase pacífica. É um período frequentemente marcado por um continuum da violência, seja directa ou estrutural, e por tentativas de reconstrução que pressupõem, por vezes, um ‘regresso à normalidade’ existente antes dos conflitos eclodirem, ou seja, o regresso a um passado portador das causas que estiveram na origem dos mesmos conflitos. Na opinião de Oliver Ramsbotham, as quatro dimensões do modelo padronizado das Nações Unidas (sintetizadas no Quadro Conceptual anexo) surgiram como uma tentativa de superação de quatro défices característicos das sociedades que atravessaram um longo período de guerra interna: o problema militar e da segurança, a incapacidade político-constitucional, a debilitação económico-social e o trauma psicossocial. A dimensão militar e de segurança constitui o desafio mais imediato de todo o processo, na medida em que tenta dar resposta à função negativa de reescalada do conflito violento. Envolve a reforma do sector de segurança e a desmilitarização da sociedade, com a consolidação de um novo exército nacional sob o controle civil e a criação de novas forças armadas que integrem parcialmente elementos de ambas as facções do conflito, bem como a reintegração na vida civil das forças desmobilizadas e desarmadas. A reabilitação política e constitucional, ou a tentativa de criar uma autoridade política legítima, tem como principal objectivo a expressão não violenta de ideias e exigências que até então tinham sido demonstradas através do recurso à violência. Corresponde à tentativa de reedificação do aparelho do Estado e reconstrução de um novo sistema político representativo, com a reforma dos sectores administrativo, civil e judicial. Neste contexto, as Nações Unidas têm, na última década, promovido, conduzido, apoiado e monitorizado eleições, enquanto parte de uma transição para a democracia, processo longo e difícil, na medida em que a capacidade institucional e técnica de condução de eleições democráticas se encontra bastante debilitada nestes países. A dimensão económico-social constitui um enorme desafio para países devastados por conflitos, dado que, na maioria dos casos, praticamente todas as infra-estruturas físicas e sociais se encontram destruídas. O modelo aplicado pela ONU para colmatar este défice tem sido o de uma economia de mercado liberal, sustentado por condicionalidades determinadas pelas instituições financeiras internacionais. Na realidade, a adopção rápida de políticas e reformas macroeconómicas costuma ser uma pré-condição para que os países saídos de conflitos violentos possam receber assistência internacional para o seu desenvolvimento, o que conduz, frequentemente, ao agravamento das dificuldades sentidas por estes Estados. Atendendo a que os conflitos armados actuais têm tido como alvo as instituições sociais e a população e como objectivo a desintegração social, a dimensão psicossocial da consolidação da paz constitui (ou deveria constituir) uma preocupação fundamental. Esta quarta fase do modelo padronizado das Nações Unidas pressupõe, para além da distribuição de recursos para reabilitar infra-estruturas sociais e instituições que garantam à população cuidados de saúde, educação e outros serviços básicos, lidar com experiências de perda e traumas provocados pelos conflitos. E, por isso mesmo, a chamada reconstrução do tecido social é algo que não é visível, na medida em que é composta por afectos, laços de convivência e de construção de relações sociais complexas, após conflitos violentos que se baseiam essencialmente na desumanização do inimigo. A fase de reabilitação do tecido social tem como objectivo lidar com difíceis compromissos entre a paz, o reconhecimento da verdade, a justiça e a reconciliação, função que, de um modo geral, tem sido atribuída a Comissões de Verdade e a tribunais de crimes de guerra. As primeiras têm a sua origem nos anos 70, mas apenas receberam uma maior atenção e apoio internacional na década de 90. Estas Comissões de Verdade têm a tarefa de investigar violações do passado e de ouvir os testemunhos das vítimas sem voz das sociedades fragmentadas e constituem um mecanismo oficial geralmente utilizado para permitir a partilha da verdade, sem envolver necessariamente o uso de acções judiciais. Têm como objectivo dignificar e reconhecer as vítimas, propor formas de reparação ou compensação das vítimas e de prevenção das atrocidades no futuro. Os tribunais de crimes de guerra têm como objectivo individualizar as responsabilidades, tentando minimizar a culpa colectiva. Mas as expectativas de justiça através de medidas legais de punição podem sair frustradas, na medida em que por vezes as provas são reduzidas, e os verdadeiros responsáveis podem não ser punidos. No entanto, para além do direito à verdade e da sanção penal, existem outras formas de justiça que passam pelas sanções sociais: separação de cargos, inibição do exercício de cargos públicos, entre outros. O principal objectivo é o de eliminar ou reduzir o poder de quem teve responsabilidade na perpetração da violência, evitando deste modo falsos processos de reconciliação (Martín Beristain, 1999: 271-272).
Críticas ao modelo de consolidação da paz das Nações Unidas São várias as críticas apontadas a este modelo que, apesar de ser de certa forma um êxito, apresenta ainda muitas falhas. Vários autores, como Ramsbotham, Grasa Hernández, Eguren, entre outros, apontam como uma das principais falhas deste modelo a limitação temporal das operações e o facto de a maioria delas continuar a traduzir características de resolução imediata (quick fixes), não sendo concebidas nem aplicadas como programas sustentáveis, e deixando poucas possibilidades em aberto para um desenvolvimento e uma paz duradouros. Neste sentido, há uma necessidade de desconstrução da suposta sequência temporal do processo. A reabilitação constitui um conceito híbrido e multifacetado, já que se trata de uma etapa que liga a acção de socorro de curto prazo com estratégias de desenvolvimento de longo alcance. De facto, a ênfase nas necessidades mais urgentes e imediatas subsequentes ao conflito leva, por vezes, a que seja atribuída uma importância excessiva às medidas de emergência em detrimento daquelas que são necessárias para facilitar uma transição suave para o desenvolvimento. A fase de reabilitação tem de ser encarada como uma ponte adequada entre as contribuições que a ajuda de emergência pode dar para o futuro desenvolvimento de um país e o modo como um desenvolvimento sustentável pode reduzir o risco de potencial eclosão de novas emergências. Uma crítica apontada pelos autores acima mencionados é a de que as Nações Unidas não têm distinguido suficientemente os diferentes níveis de aplicação e actuação na construção da paz, negligenciando constantemente a sociedade civil em geral e, portanto, perpetuando uma estratégia de consolidação da paz essencialmente estatocêntrica e impositiva, em detrimento do desenvolvimento das capacidades nacionais e da promoção de mecanismos, instituições e capacidades locais. Inerente a esta falha destaca-se, também, a pouca atenção e importância que tem sido prestada à dimensão psicossocial e, em particular, a tudo o que envolve o trabalho da população local, a tudo o que é relacional e intersubjectivo, reduzindo e minimizando a participação destes grupos. As dimensões do modelo padronizado de consolidação da paz das Nações Unidas têm, de facto, lugares e estatutos distintos, fruto da importância que lhes é atribuída. A dimensão militar e de segurança, a dimensão político-constitucional e a dimensão económica têm um maior apoio e intervenção, a um nível formal, do que a dimensão social e psicossocial, associada à esfera privada, ao domínio do subjectivo, ainda que a reconstrução ou a reabilitação pós-conflito tenha como objectivo último a reconciliação das sociedades. Outra das críticas diz respeito à natureza da intervenção de terceiras partes, que deve ser questionada em termos de relações de poder desproporcionais dos Estados intervenientes. Por outro lado, não tem sido questionado o problema do uso da força ou mesmo da razão de ser e eficácia de operações predominantemente militares aplicadas a dimensões que são maioritariamente não militares na consolidação da paz. Finalmente, a aplicação do modelo estandardizado de reconstrução pós-bélica da ONU não reflecte, na maioria dos casos, a realidade multidimensional das sociedades pós-guerra e tende a ignorar um conjunto de problemas estruturais, fruto em grande medida do desconhecimento sobre a realidade local que frequentemente se verifica neste tipo de missões. Isto traduz-se na falta de atenção prestada às necessidades, interesses e particularidades de cada situação de conflito(s) e, o que é ainda mais grave, na assunção de que cada instrumento ou actividade é igualmente apropriado em cada país a sair de uma situação de conflito.
Informação Complementar QUADRO CONCEPTUAL PARA A CONSOLIDAÇÃO DA PAZ PÓS-ACORDO DA ONU Medidas de curto prazo (após as primeiras eleições) • Medidas de médio prazo (até às segundas eleições ou que conduzam à eleição onde se dê uma mudança pacífica de governo); A dimensão militar e de segurança • Desarmamento, desmobilização das facções, separação entre exército/polícia. A dimensão político-constitucional • Lidar com problemas de transição do governo e reforma constitucional. A dimensão económico-social • Ajuda humanitária, restauração de serviços e comunicações essenciais. A dimensão psicossocial • Ultrapassar a falta de confiança inicial. A dimensão internacional • Sensibilidade cultural, que apoie o processo de paz. GRASA HERNÁNDEZ, R. (2000) – “Democratización y reconstrucción post-conflicto”. In Romero de Loresecha (org.), 22-29. MARTÍN BERISTAIN, C. (1999) – Reconstruir el tejido social. Barcelona: Icaria editorial. RAMSBOTHAM, Oliver (2000), “Reflections on UN Post-Settlement Peacebuilding”. In Woodhouse e Ramsbotham (orgs.), Peacekeeping and Conflict. Londres: Frank Cass, 169-189. ROMERO DE LORESECHA, Gonzalo (org.) (2000) – Guerra y Desarrollo: la reconstrucción post-conflicto. Bilbao: Unesco Etxea. SIMÕES, M. R. (2002) – A Agenda Perdida da Reconstrução Pós-bélica: o caso de Timor-leste. Coimbra: Quarteto Editora.
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