Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2005 > Índice de artigos > Guerra e Paz nos nossos dias > Missões de paz da ONU e participação portuguesa > [Bilateralismo “versus” multilateralismo: as lições de Timor-Leste]  
- JANUS 2005 -

Janus 2005



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


Bilateralismo “versus” multilateralismo: as lições de Timor-Leste

António Sampaio *

separador

Numa polémica entrevista em Junho de 2003, a representante de Portugal no Conselho de Administração do Banco Mundial, Helena Cordeiro, argumentou que Timor-Leste poderia ser um caso-piloto para Portugal testar uma nova forma de cooperação externa. Um formato que não descure os canais bilaterais mas que passe obrigatoriamente pela melhor utilização das instituições multilaterais e que fortaleça a colocação de quadros nacionais em estruturas como o Banco Mundial (BM) e a Organização das Nações Unidas (ONU). Na opinião de Cordeiro, é “lamentável” que Lisboa não utilize os mecanismos bilaterais e multilaterais de cooperação de forma mais coordenada, sendo essencial que Portugal vá além do papel meramente financeiro, levando à mesa dos organismos internacionais a sua experiência, quer no apoio a programas quer na capitalização dos recursos financeiros existentes”. “O uso dos instrumentos bilaterais pode ser maximizado se integrado numa óptica bilateral”, dizia na altura.

De entre as muitas lições passíveis de surgirem do processo de transição de Timor-Leste para a independência, quiçá uma das mais actuais – dado o actual contexto global – é esse debate necessário sobre o balanço entre os canais bilaterais e multilaterais nas políticas portuguesas de assistência ao desenvolvimento externo. Interlocutor privilegiado, Portugal sempre manteve uma posição fortemente activa em Timor-Leste. Porém, e praticamente desde o início das grandes operações da ONU – após o Setembro negro de violência que se sucedeu ao referendo de 1999 em que os timorenses optaram pela independência –, o relacionamento entre Portugal e as grandes organizações internacionais no terreno ficou marcado por regulares polémicas, crises e tensões mais ou menos públicas.

No final de 2002, responsáveis timorenses e governantes portugueses admitiram pública e concretamente, que a selecção de assessores das Nações Unidas – além de ser um processo “moroso, complicado e pautado por regras de difícil compreensão” – tinha demonstrado “má vontade” de Nova Iorque face a Lisboa. Na altura, João Mota de Campos – então secretário de Estado adjunto da ministra da Justiça – considerou que a ONU se mostrou “pouco favorável” à presença de Portugal e à vinda de técnicos portugueses para Timor Leste, demonstrando paralela “má vontade” relativamente à questão do uso da língua portuguesa no país, o sector para onde são canalizadas as maiores fatias do orçamento de apoio de Lisboa. Mota de Campos confirmou que sucessivas escolhas de funcionários feitas por Lisboa eram travadas num “filtro das Nações Unidas que não tem mostrado ser muito favorável à presença portuguesa em Timor Leste, à revelia das escolhas feitas pelos próprios timorense”. O exemplo dado por Mota de Campos centra-se na justiça, um dos sectores prioritários, tanto para a liderança timorense como para o programa de assistência portuguesa ao país. Currículos de vários juízes e procuradores, que deveriam dar colaboração na área da justiça, foram enviados para Dili onde se depararam com problemas “desagradáveis” como é o facto de falarem português e não inglês, um dos critérios, em preterência do conhecimento de português, que sempre foi indicado nas propostas de contratação de funcionários da ONU.

 

Obstáculos de Nova Iorque, falta de intervenção de Lisboa

Talvez um dos exemplos mais claros da falta de penetração portuguesa – evidente também ao nível da ONU – tenha sido o BM, especialmente significativo dado o apoio financeiro de Lisboa ao Fundo Fiduciário para Timor-Leste, que ascendeu a 50 milhões de dólares. Sendo “um esforço financeiro significativo”, especialmente dada a dimensão de Portugal, torna-se especialmente “surpreendente” que não haja funcionários portugueses “a exercerem funções significativas na hierarquia” do BM e das instituições multilaterais que estão no terreno. Do lado português, com maior ou menor clamor público, as críticas sempre foram mais viradas para fora, atacando o sistema das Nações Unidas e de outras estruturas multilaterais que, no caso de Timor-Leste, levantaram obstáculos a uma maior participação efectiva de portugueses nas suas estruturas.

A posição portuguesa face ao território, quiçá mal explicada, foi regularmente mal interpretada e englobada na definição simplista e cliché de pós-colonialismo. No meio das pouco desinteressadas agendas regionais e internacionais que se testaram no cenário de Timor-Leste, era difícil explicar que o interesse de Lisboa fosse tão humanista e desinteressado como os seus governantes e responsáveis pretendiam argumentar em sucessivas intervenções sobre o tema. Na opinião de vários analistas e intervenientes no processo, porém, a pouca penetração no multilateralismo no caso de Timor-Leste traduz um sintoma de uma “má tradição” de pouca coordenação no que toca à agenda de desenvolvimento. Uma situação evidente, quer no relacionamento entre Portugal e estruturas internacionais, quer mesmo entre fontes públicas e privadas de projectos, e até entre o governo nacional e estruturas autárquicas ou regionais. Sucederam-se, ao longo do processo de transição de Timor-Leste, os casos de projectos de autarquias portuguesas para Timor-Leste iniciados, implementados e, posteriormente abandonados, sem qualquer coordenação ou com Lisboa ou com as estruturas no terreno. Alguns dos seus efeitos mais negativos ainda hoje se podem constatar.

Se, por um lado, Lisboa argumenta que os obstáculos são levantados pelas próprias organizações, estas estruturas – e até altos responsáveis e diplomatas portugueses – afirmam que parte do problema se deve à pouca capacidade interventiva de Lisboa nos fóruns multilaterais. Helena Cordeiro afirma, por exemplo, que as suas tentativas de intervenção no que toca à contratação de funcionários portugueses para o BM em Díli, junto da organização, “nem sempre tiveram suficiente respaldo político de Lisboa para conseguir fazer valer essa posição”. Um sinal de alguma incongruência, pois sendo Portugal um dos maiores doadores, tendo um conhecimento efectivo do que é a realidade timorense, e sendo permanentemente solicitado pelos timorenses como um parceiro honesto e disponível, deveria, quase por inerência, marcar forte presença nos quadros permanentes das missões internacionais em Díli.

Em Fevereiro de 2003, dados da própria missão da ONU no terreno confirmavam que a participação, quer de Portugal, quer de outros países de expressão portuguesa no componente civil da ONU, era de pequeno relevo, correspondendo a menos de dez por cento dos 466 funcionários de noventa e cinco países na altura em serviço em Timor-Leste – apenas trinta e cinco funcionários. De Portugal eram apenas vinte e um funcionários. Para responsáveis timorenses, essa pequena participação da lusofonia é especialmente significativa, já que Timor-Leste se depara com a dificuldade de reintrodução do português na administração pública, carecendo para isso de apoio técnico que possa comunicar nessa língua. A situação melhorou ligeiramente na segunda metade do ano, e em finais de 2003, segundo dados da ONU, 20 por cento dos 100 assessores técnicos pagos pela organização internacional eram portugueses, estando a aumentar também o número de especialistas de Portugal no grupo de assessores adicionais, financiados bilateralmente.

 

Falhas sucessivas, o impacto sectorial

Mais do que meros dados estatísticos, eventuais polémicas circunstanciais ou choques de personalidades, este problema teve, em várias situações, materializações importantes e significativas. Vozes mais críticas admitem que a primeira “grande derrota portuguesa” – paralela ao escasso número de funcionários portugueses que Lisboa conseguiu garantir como integrantes da primeira missão (UNTAET) – foi o processo de negociação sobre a moeda oficial de Timor Leste. Responsáveis diplomáticos, líderes timorenses e funcionários da ONU e do FMI afirmaram na altura que a adopção do dólar americano aconteceu por “falhas sérias” do trabalho de fundo de Portugal e que o escudo seria hoje a moeda oficial de Timor Leste se Portugal “tivesse mexido melhor as coisas” na sua estratégia de apoio à postura política timorense. Um trabalho que implicaria não só contactos regulares com o FMI e a UNTAET, mas especialmente contactos com o Banco Central Europeu.

Elementos do FMI consideraram que Portugal “nunca se preocupou” seriamente com os contactos directos com esta instituição, falhando nos elos e nas negociações que manteve com o Banco Central Europeu. É que “enquanto de Lisboa havia apenas garantias verbais de que todas as condições técnicas seriam dadas, do Banco Europeu havia comunicações escritas” a indicarem que caberia a si qualquer decisão sobre o escudo, que era na altura uma divisão do euro. Sem o trabalho de fundo, contudo, os apelos a Lisboa no sentido de se produzirem as garantias necessárias resultaram apenas no envio de um simples texto no qual o governo português reafirmava “garantir as condições técnicas necessárias à circulação do escudo português como moeda em Timor Leste”. A posição de Portugal era de que as negociações com Bruxelas só teriam que ser iniciadas depois de uma decisão ter sido tomada em Díli, mas para o FMI e para a ONU essas negociações e a solidificação de uma posição definida e clara eram um pré-requisito para as tais “necessárias garantias”.

Topo Seta de topo

Um outro exemplo dos retrocessos na capacidade de influência de Portugal junto da ONU ocorreu em Outubro de 2001 quando Lisboa perdeu o único cargo de comando de um dos componentes da UNTAET, o de comando da polícia civil das Nações Unidas, que desde finais de1999 tinha estado sob responsabilidade portuguesa. Desde aí Portugal “ficou sem nenhuma função significativa com carácter decisório no âmbito da UNTAET”. Na altura, responsáveis portugueses afirmaram que as Nações Unidas chumbaram um candidato português com o argumento de ter “uma forte componente militar no seu currículo”. Fontes da ONU aludem à fraca qualidade dos candidatos propostos por Lisboa e ao “pouco trabalho de lobby” mantido por Portugal junto, em particular, ao Department of Peace Keeping Operations (DPKO) em Nova Iorque.

Foi no entanto uma situação de crise – os violentos tumultos de Dezembro de 2002 – que obrigou, segundo vários responsáveis portugueses, a uma das maiores reavaliações dos elos, quer entre Portugal e a ONU, quer dos laços entre Portugal e Díli. A decisão das autoridades portuguesas tomarem conta do contingente português e colocá-lo nas ruas – em defesa dos interesses e cidadãos nacionais, mas ao mesmo tempo, mantendo a tropa visível na capital foi o grande “empurrão” para a análise da crise no relacionamento. Esse quase desafio à ONU – considerada “vagarosa a responder”, pelo governo de Timor-Leste – abriu caminho “para que se dessem os murros na mesa que deviam ter sido dados há mais tempo”, como comentou um diplomata.

Lisboa conseguiu na altura analisar vários outros temas “que andavam a chatear o governo português há algum tempo” – leia-se desde 1999 quando a ONU entrou em Timor-Leste para administrar o território – e que, amplamente debatidos, quer em Díli quer em Lisboa, raramente eram filtrados institucionalmente para as Nações Unidas. A decisão de movimentar as tropas permitiu aos governantes portugueses um muito maior desabafo sobre a actuação da ONU, com a agenda das conversas a passar a incluir pedidos de explicações sobre aspectos “essenciais para o desenvolvimento de Timor-Leste” e para a participação de Portugal no apoio a esse processo. Questões como o bloqueio à vinda de assessores portugueses no quadro da missão da ONU, especialmente na caótica área da justiça – quer tribunais, quer prisões –, no polémico tema da língua portuguesa e nos entraves e obstáculos constantemente montados pelas Nações Unidas.

 

Os problemas no sector educativo

Um dos sectores que deveria merecer especial atenção em qualquer avaliação detalhada do programa de Portugal em Timor Leste é – dada a sua natureza prioritária, quer em termos financeiros, quer a nível da agenda política – o tema da educação e o apoio à reintrodução do português como língua oficial. Especialmente polémica – e usada regularmente como arma de arremesso contra a política portuguesa no território – a agenda educativa tem sido um dos focos de maior tensão. No entanto, só em Outubro de 2003 – volvidos quase quatro anos do arranque dos primeiros programas – é que um alto responsável português (na altura o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, António Lourenço dos Santos) admitiu que a estratégia estava a falhar e a necessitar de uma profunda revolução, com a aposta estratégica a passar da formação de alunos para a de formadores. Lourenço dos Santos admitiu os erros do sistema que esteve a ser aplicado nos anteriores três anos lectivos, considerando que se tinha seguido uma “óptica totalmente errada, ineficaz e estéril”, traduzida até “num desperdício de fundos”. Dados da altura confirmam o problema, com a taxa de participação de docentes a rondar os sessenta e sete por cento e a taxa de aproveitamento a ficar-se pelos sessenta e um por cento. Ainda que grande parte das falhas do sistema anterior se devesse a problemas do lado timorense, especialmente a falta de empenho dos formandos – a taxa de participação de professores timorenses nas aulas de português era especialmente fraca –, agentes do sector no terreno aludem ainda à pouca coordenação evidente. Fontes junto do Banco Mundial em Díli questionam, por exemplo, o facto de Portugal não se fazer representar “regularmente e a alto nível” nas reuniões de coordenação dos programas de assistência, especialmente no sector educativo. As mesmas fontes aludem ao envio de “representantes escolhidos sem qualquer conhecimento” dos programas e apontam até situações em que Portugal esteve representado por “pessoas que nem sequer sabiam o que era o Banco Mundial”.

 

Que lições para o futuro?

Com Timor Leste já praticamente esquecido da agenda de debate nacional, e passados quase três anos da independência do país, o verdadeiro impacto destas crises continua por ser analisado e extrapolado. Praticamente cinco anos depois de ter sido criado, e já entretanto extinto, o CATTL continua, até hoje, sem ser alvo de uma análise detalhada e significativa, ou, pelo menos, sem que essa análise passe dos gabinetes para o público e para a sociedade civil. Pontualmente surgiram notícias de que relatórios estavam a ser feitos, preparados ou concluídos, mas nunca deles se soube qualquer detalhe alargado ou abrangente. E a maioria das poucas referências feitas a esse trabalho parecia centrar-se mais na avaliação orçamental e na aplicação dos fundos do que propriamente na sua dimensão política ou no eventual impacto que poderia ver a ter em termos da agenda de política de desenvolvimento externo que Portugal mantém. Por saber continuam igualmente dados sobre a proposta preparação, ainda durante o mandato de Martins da Cruz, de um “livro branco” sobre Timor Leste que, segundo a diplomacia portuguesa, pretenderia esclarecer todo o processo de negociação da questão timorense e explicar a participação do Ministério dos Negócios Estrangeiros (ver lusa, Ana Gomes).

Um texto que, por razões óbvias, deve obrigar a uma análise do que foram os últimos anos antes e os primeiros depois da independência. Não deixa de ser interessante que, apesar da importância de Timor Leste no quadro da política externa, a sua predominância como tema de análise académica, política, cientifica, económica ou política continue aquém do necessário. Ainda que proliferem os títulos alegadamente dedicados ao tema, na maior parte limitam-se a retratos curtos, momentâneos e circunstanciais, feitos por quem passou no território uma mão, cheia de meses, ou, em alguns casos, de dias. Falta uma análise detalhada e descomprometida, permitindo perceber se o que foi feito, como feito, porque feito e quais os resultados práticos. Evitando a perda de lições que se afiguram importantes para toda a forma como Portugal desenvolve a sua acção em situações do tipo ou sobre como conciliar, no caso deste artigo, as agendas bilaterais e multilaterais.

separador

* António Sampaio

Jornalista desde 1989, trabalhou para os principais órgãos de informação portugueses. Delegado da Agência Lusa em Timor-Leste entre 1999 e 2004. Actualmente é Delegado da Agência Lusa em Genebra, Suíça. A sua experiência académica centrou-se especialmente em Estudos Asiáticos, e em particular no Sudeste Asiático.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2004)
_____________

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
 

Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores