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Janus 2005



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Motivações, stressores e compatibilidade nas missões na Ex-Jugoslávia

Carolina Cordeiro *

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A participação dos militares portugueses nas missões de paz na ex-Jugoslávia tem sido objecto de estudo, embora poucos se tenham dedicado à problemática psicológica que rodeia este tipo de missões e à experiência particular dos militares nacionais neste cenário. A experiência de conflito é sempre perturbadora em termos emocionais. A participação numa missão de paz associa a essa perturbação a possível falta de identificação dos militares com os objectivos e características da missão. De facto, “as missões genericamente designadas por peacekeeping desenvolvem-se num ambiente estruturalmente diferenciado relativamente àquele em que se desenrolavam, tradicionalmente, as missões militares” (1). Esta diferenciação resulta de vários factores, nomeadamente, a inexistência da figura do inimigo, um novo quadro conceptual e valorativo, a associação de componentes civis ao mandato militar, novas regras de uso da força e até dúvidas sobre a legitimidade da actuação. Os estudos internacionais sobre a capacidade de adaptação dos militares a estas missões têm tido resultados contraditórios.

Neste sentido, iremos procurar encontrar indicadores da adaptação dos militares portugueses a este tipo de missão – ao nível conceptual e operativo – numa análise dos resultados aos inquéritos feitos aos militares participantes nas missões na Bósnia pelo Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAE) e pelo Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI). Iremos ainda identificar os principais problemas enfrentados pelos militares portugueses nas operações de paz na ex-Jugoslávia, antes, durante e depois do deslocamento, como forma de melhor ilustrar a realidade de uma missão de paz ao nível individual e verificar se alguns dos problemas resultam da incapacidade dos militares em se compatibilizarem com este tipo de actuação. A compreensão exacta da natureza destes problemas contribui ainda para um aperfeiçoamento de futuras missões, além de permitir uma avaliação mais correcta do sucesso ou insucesso da missão em causa.

Os inquéritos supracitados englobam alguns aspectos comuns e que são alvo do nosso interesse, nomeadamente, os factores de motivação para a missão e os stressores mais significativos antes e durante o deslocamento. O inquérito do IEEI, mais completo nos aspectos de avaliação da satisfação com a missão, permite ainda identificar aspectos relevantes da adaptação dos militares portugueses a este tipo de missões, em particular quanto ao relacionamento com a população local e com outros contingentes internacionais.

 

Os factores de motivação

Ambos os inquéritos são unânimes nos resultados sobre o que motivou os militares a integrarem a missão em causa: o cumprimento do dever; a contribuição para a paz no mundo e o fim deste conflito; e a possibilidade de ganhar mais dinheiro (a ordem relativa destes factores é quase igual entre os inquéritos). Encontramos assim três ordens de motivos: de natureza humanitária, consubstanciados no desejo de contribuir para a paz no mundo e na ex-Jugoslávia; de ordem pecuniária; e motivos de orgulho institucional e brio profissional. A relevância dos aspectos pecuniários e de orgulho institucional é reforçada pela análise das respostas dadas nos inquéritos do IEEI à pergunta sobre a existência de motivos de insatisfação na actividade militar. Responderam afirmativamente a esta questão 80% dos militares, e as razões apresentadas foram o vencimento insuficiente quando comparado com o sacrifício (32,5%) e a progressiva perda dos valores tradicionais (34,4%). Relativamente ao aspecto pecuniário, é compreensível a atracção que as missões de paz exercem neste domínio, uma vez que a remuneração de um soldado quando integrado numa missão de paz aumenta consideravelmente. Afinal, “ [...] muitos dos praças participantes (nas missões de paz) encontraram uma forma para iniciar um caminho de vida com futuro, onde antes tão só havia uma encruzilhada e, por vezes, alternativas dramáticas” (2).

A insatisfação com a perda de valores tradicionais, estreitamente relacionada com a motivação para cumprir o dever, merece um olhar mais atento. O Livro Brancoda Defesa Nacional (2001) dá-nos uma ideia clara do significado dos valores na instituição militar, ao afirmar que “[v]alores como honra, dever, lealdade, autoridade, disciplina, hierarquia, dignidade e reconhecimento do primado do interesse nacional, mantêm-se imutáveis na caracterização da condição militar [...]. Esses homens e mulheres, ao aceitarem a condição militar, sujeitam-se a princípios e regras institucionais, de organização e de comando, de formação e de disciplina, e também a códigos de ética intrinsecamente ligados à sua disponibilidade para enfrentarem situações de risco até ao extremo sacrifício da própria vida e à capacitação para o recurso à força armada [...]” É por estes valores e estilo de vida que muitos dos militares escolheram a vida militar, dado que 76,2% dos inquiridos consideram que o desejo de servir o País foi um factor importante ou muito importante na escolha da vida militar, e 72% indicam o desejo de fazer parte de uma comunidade muito unida. O último factor de motivação, relacionado com as causas humanitárias, conduz-nos a uma interpretação da adaptação dos militares às missões de paz.

 

Compatibilidade conceptual dos militares com as missões de paz

Compreender esta compatibilidade exige a análise não só dos princípios e motivos de actuação dos militares mas, também, da capacidade para agirem no terreno de acordo com a lógica própria das missões de paz. O factor de as motivações humanitárias estarem no topo da escala de motivações para a participação em missões de paz indica, desde logo, uma óbvia compatibilidade entre o quadro valorativo dos militares e este tipo de missões. Além do mais, 83% dos que responderam ao inquérito do IEEI consideram que os militares são as forças mais aptas para as missões de manutenção da paz. Existem ainda outras razões que fazem com que a participação em missões de paz seja vista como algo positivo e adequado em termos profissionais e pessoais.

O desejo de ter uma experiência de “tropa real”, de “se pôr à prova” enfrentando situações de risco e o desejo de aventura, que são segundo os inquéritos do CPAE motivos importantes para a entrada na militar e a participação em missões, pode favorecer esta predisposição para participar em missões onde não se joga, por definição, o interesse nacional e onde os princípios de actuação são distintos, mas que apesar de tudo representam para os militares algumas das raras possibilidades que realmente têm para exercerem a sua profissão. Por outro lado, cerca de 50% dos militares que estiveram nas missões de paz responderam, no inquérito do IEEI, que uma das motivações mais importantes para ingressarem na vida militar foi o desejo de conhecer novos lugares. A participação em missões de paz internacionais permite a satisfação desse desejo cosmopolita, que contribui, por sua vez, para o bom desempenho das tropas nacionais ao favorecer um bom relacionamento com a população local em contexto estrangeiro. Por fim, também a vontade patriótica de melhorar a imagem de Portugal no plano internacional, presente como uma das principais motivações e ingresso na vida militar, é passível de ser satisfeita na participação em missões de paz pela representação do país num corpo internacional em território estrangeiro.

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Ainda no quadro conceptual, um outro aspecto merece análise. Uma distinção fulcral entre as missões de paz e as operações militares tradicionais consiste na legitimidade do uso da força em ambas as situações. Apesar da crença de muitos em que o uso da força não deve fazer parte do cenário das missões de manutenção de paz, a realidade tem vindo a demonstrar que muitas vezes a ameaça ou uso da força são de facto cruciais na manutenção do clima de paz num dado cenário pós-conflito. O contraste entre a actuação da UNPROFOR e da IFOR foi um exemplo claro desta situação. Os resultados do inquérito do IEEI aos militares portugueses vão no mesmo sentido da defesa da legitimidade do recurso à força para alcançar a paz em situações de conflito ou pós-conflito. Quando inquiridos sobre quais as forças – civis ou militares – mais adequadas para o cumprimento das missões de manutenção da paz, uma larga maioria (83%) responde que são os militares por terem sido treinados para o combate.

Mais ainda, cerca de 68,9% dos militares inquiridos concorda com a afirmação “[...] Todas as missões de manutenção da paz deveriam prever a utilização da força”. Onde se funda esta crença na legitimidade do uso da força? Os resultados à questão sobre quais os motivos que justificariam a utilização da força reforçam a ideia de que existem certos valores que legitimam o uso da força, sobretudo em situações de manutenção da paz. A maioria dos inquiridos (83,6%) defende como principal fundamento da utilização da força a garantia pelo respeito dos direitos humanos, seguida de perto pela necessidade de repor a paz em conflitos estrangeiros (78,7%) e defender a legalidade internacional (77,6%). Estes dados reforçam a crença de que existe, de facto, uma cultura humanitária no seio da instituição militar portuguesa que não é senão um espelho da compatibilidade conceptual entre militares e operações de paz.

 

Compatibilidade operacional dos militares às missões de paz

“Nas missões internacionais uma outra qualificação psicológica básica é, porém, muito importante: operar com estrangeiros nos locais para onde forem destacadas duma forma culturalmente adequada bem como colaborar eficazmente com pessoal militar de outras Nações” (3). Neste ponto, o comportamento do contingente português foi muito positivo. A avaliação feita pelos militares da sua relação com a população local foi bastante favorável. Não só consideraram que o contingente português foi, em média, melhor tratado pela população local do que os outros contingentes, como também, que o contingente português tratou a população local melhor que os outros contingentes (4). Esta saudável relação de confiança, se bem que não isenta de riscos, trouxe vantagens ao nível operacional, contribuindo para o sucesso de diversas operações de recolha de informações e cooperação. No que diz respeito ao relacionamento com os restantes contingentes, não existiu qualquer tipo de problemas e a avaliação feita pelos militares portugueses da actuação e relacionamento com outros contingentes foi positiva. O mérito dos nossos militares neste ponto foi, aliás, confirmado nacional e internacionalmente. Ao nível interno, foi atestado que “[e]m serviço ou fora dele, o soldado português teve de facto um comportamento exemplar, para com os militares dos outros países da força multinacional e para com as populações com as quais diariamente contactava” (5). Já a nível internacional, este mérito foi reconhecido num artigo da revista francesa Terre Magazine, que intitula o batalhão português como o “batalhão da proximidade”, acrescentado, em jeito de explicação, que “à Rogatica, Gorazde, Visegrad ou Canjice, les hommes du bataillon portugais ont de très bonnes relations avec les autorités civiles et militaires, tout comme avec la population locale [...] ”.(6)

Não restam assim dúvidas sobre a capacidade de integração dos militares nacionais nas forças de manutenção da paz, quer ao nível conceptual quer no próprio enquadramento operacional das missões.

 

Informação Complementar

PROBLEMAS E STRESSORES NAS MISSÕES DE PAZ

Uma outra importante função dos inquéritos reside nas pistas que fornecem sobre a forma como a missão decorreu, identificando os principais problemas e stressores antes, durante e após o deslocamento, permitindo assim melhorar a actuação nacional no futuro. As estatísticas do CPAE revelam que os principais receios dos militares na fase prévia à partida se prendiam com o risco à integridade física (65%) e psicológica (23%) durante a missão, receios relativos à capacidade logística da missão (52%) e uma certa desconfiança face a camaradas pouco disciplinados ou com pouca preparação. Os primeiro e último factores de stress são relativamente normais numa fase de pré-deslocamento caracterizada pela ansiedade e expectativa face à missão, acabando por se dissipar no terreno. No entanto, o problema da capacidade logística manteve-se durante a missão e merece atenção cuidada. Este problema é aliás premente nas missões de paz conduzidas pela OTAN, uma vez que nestas é da responsabilidade das forças nacionais destacadas assegurar todo o apoio logístico ao contingente.

De facto, ambos os inquéritos revelam que um dos principais problemas com que o contingente nacional se deparou foi o das condições de vida e do apoio logístico. Mais de metade dos militares consideraram que as condições sanitárias eram deficientes e queixaram-se de falta de privacidade, a que se somam 41,3% de insatisfeitos com o alojamento. Durante a missão foi feito um esforço de melhoria que se revela no inquérito do IEEI: apenas 24,5% dos militares da IFOR consideraram o alojamento bom ou muito bom, e 21,3% fizeram a mesma avaliação relativamente às condições sanitárias adequadas; em contrapartida, no contingente que integrou a SFOR II esses números subiram para 64,2% e 34,6%, respectivamente. Não deve ser esquecida a dificuldade de encontrar alojamento condigno num cenário pós-guerra; contudo, o descontentamento com as condições sanitárias e de alojamento foi bastante significativo e deve levar a uma maior atenção a este aspecto na preparação das missões.

Outro stressor importante durante a fase de deslocamento foi a distância da família e dos amigos e um sentimento de isolamento e solidão dos militares. A problemática do afastamento do militar da família durante estas missões tem sido estudada aprofundadamente no estrangeiro e começa agora a receber a atenção também das autoridades portuguesas. A segurança e estabilidade familiar do militar são essenciais ao bom cumprimento da missão. É reconhecida a existência de problemas de compreensão e adaptação da família à decisão individual de partida do militar, com consequências naturais no bem-estar psicológico do militar durante a missão, e que se mantêm mesmo depois do seu regresso no seu processo de reintegração na vida familiar. É importante que a instituição militar preste o necessário apoio psicológico à família e ao militar enviado em missão, para que esta fase da sua vida profissional não tenha consequências negativas na sua vida familiar e no seu desempenho profissional. Apesar dos problemas encontrados, a satisfação dos militares com a missão foi enorme (acima dos 80%) e explica o facto de muitos deles mais cedo ou mais tarde na sua vida profissional voltarem a integrar as missões de paz.

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1 Carreiras, H. – “O que pensam os militares portugueses do peacekeeping?”, Estratégia – Revista de Estudos Internacionais. Nº 14, 2º semestre 1999, p. 66.
2 Silva, A. – “Avaliação psicológica aos militares em acções de paz”, Jornal do Exército, Nº 459, 1998, p.16.
3 Layes G., Hibers, S. – “Desenvolvimento das capacidades interculturais do pessoal militar alemão”, Revista de Psicologia Militar, n.º 10, 1997, p. 91.
4 Com excepção da população croata, com a qual o relacionamento foi mais distante e indiferente, fruto do menor contacto tido pela zona onde esteve situado o contingente nacional.
5 Exército Português – “Bósnia 96”, Lisboa: 1997, p. 33.
6 Augendre, M. – “Le bataillon portugais – un bataillon de proximité”, Terre Magazine, N.º 86/87, Set./Out. 1997, p. 35.

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* Carolina Cordeiro

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pós-Graduada em Direitos Humanos e Democratização pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica Portuguesa.

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