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- JANUS 2006 -



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A construção europeia e os dilemas da macrorregião

Luís Lobo Fernandes *

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No Conselho Europeu de Nice de 07 a 10 de Dezembro de 2000 – o mais longo da história da UE – a Europa assistiu a uma luta exacerbada entre “grandes” Estados por um lado, e “médios” e “pequenos” por outro, que fez recear pelo futuro do projecto europeu. Apesar de ter removido no curto prazo os principais obstáculos institucionais ao alargamento, o Tratado de Nice, longe de contribuir para clarificar o estado da União, veio acrescentar-lhe novas ambiguidades. As alterações introduzidas foram mais propícias a dificultar do que a facilitar a acção comunitária, e a nova balança de poder aponta para uma hierarquização mais acentuada, que contraria o princípio virtuoso da igualdade jurídica entre os Estados.

 

O contexto pós Nice

Conscientes da necessidade de superar o resultado de Nice, os líderes europeus agendaram para 2004 nova conferência intergovernamental (esta CIG seria antecipada ulteriormente para Outubro de 2003) – uma fase decisiva que marcaria o arranque para um novo estádio da integração europeia.

Podemos talvez destacar nesta fase quatro grandes momentos: a Declaração respeitante ao futuro da União (anexa ao Tratado de Nice); a Declaração de Laeken (de Dezembro de 2001); a Convenção sobre o Futuro da Europa ; e a Conferência Intergovernamental de 2003/2004 que culminou com a aprovação do projecto de Tratado Constitucional.

O primeiro – a Declaração respeitante ao futuro da União – abriu a porta a um impulso qualitativo da maior importância, ao reconhecer no seu ponto 3 a necessidade de um debate amplo e alargado « que associe todas as partes interessadas » incluindo a sociedade civil. Dava-se, deste modo, um passo fundamental para evitar alguns erros do passado, nomeadamente a notória falta de eficácia das CIG anteriores e a, ainda mais assinalável, ausência de envolvimento dos cidadãos nas reformas comunitárias. Por sua vez, a Declaração de Laeken veio dar seguimento ao processo de reflexão, colocando um leque alargado de questões e dando o mote para uma reforma do sistema comunitário preparada através de um método inovador – a Convenção – que tinha já dado provas de eficácia aquando da redacção da Carta dos Direitos Fundamentais . Tendo como objectivo « assegurar uma preparação tão ampla e transparente quanto possível da (…) conferência intergovernamental », coube a esta Convenção a tarefa de – decorrida a fase de estudo e discussão – elaborar um projecto de tratado que juntamente com o que resultou dos debates nacionais sobre o futuro da União, servisse de base de trabalho aos chefes de Estado e de governo reunidos na CIG. Os artigos apresentados foram objecto de inúmeras propostas de emenda, reveladoras da dificuldade em redigir um texto capaz de contentar simultaneamente defensores e opositores de uma Europa de cariz “neofederal”. Esta dificuldade ficaria, aliás, bem espelhada no impasse que num primeiro momento caracterizou as negociações sobre o Tratado Constitucional. Retomada sob a égide da presidência irlandesa da UE no primeiro semestre de 2004, a Conferência Intergovernamental continuou a ser palco de reivindicações nacionais por parte de alguns Estados, mais preocupados com a defesa dos interesses próprios do que com o interesse comunitário. Como consequência, o compromisso que saiu da CIG 2003/2004 foi a resultante das cedências que foi possível obter por parte dos Estados-membros mais “eurocépticos”, ficando em alguns pontos aquém do projecto apresentado pela Convenção. O texto do Tratado Constitucional assinado pelos chefes de Estado e de governo, em Roma, a 29 de Outubro de 2004, representa um avanço considerável relativamente ao Tratado de Nice, abrindo deste modo a porta para uma nova fase do processo de integração. É claro que a União confrontou-se no período posterior a Nice com a necessidade de uma escolha, como é sugerido pela imagem de “encruzilhada” usada frequentemente em vários documentos oficiais: tinha chegado a hora de repensar os objectivos da União Europeia e de racionalizar os seus métodos. A dificuldade de tal desígnio era evidente, sobretudo se pensarmos que tal implicaria um rearranjo da repartição de poderes, não apenas entre Estados-membros e a União, mas também no interior desta.

Não partilho, todavia, o pessimismo excessivo daqueles que vêem o projecto europeu como estando mergulhado numa crise irremediável, estando mesmo convicto que os problemas da UE são, na verdade, o resultado do seu sucesso, senão mesmo, a prova dele. É aparente que alguns dos dilemas que visualizamos hoje na Europa decorrem do próprio êxito do processo de integração já materializado na moeda única, numa maior partilha de prosperidade e numa cidadania comum. É imprescindível reconhecer que os sucessivos alargamentos são a principal medida do seu êxito em política externa.A União Europeia evidencia pois um poder de atracção notável. Este é um projecto de solidariedade à escala continental. Mesmo o chamado défice democrático da União (ou a crescente consciência dele) poderá encontrar justificação no progresso do empreendimento europeu. No mesmo sentido, James A. Caporaso (2000, 42) sublinha que quanto mais a UE se afasta da classificação de mera organização internacional (se é que alguma vez o foi simplesmente) mais central se torna a questão da democracia; trata-se, julgamos, de uma natural transposição das exigências de legitimidade do nível nacional para o supranacional. O progressivo assumir pela União Europeia de algumas das funções anteriormente da competência geral dos Estados, não tendo sido secundado por um proporcional aumento da participação política dos cidadãos na vida comunitária, leva estes últimos a esperar das instituições um nível similar de responsabilização e de controlo democrático exigido aos governos nacionais. É neste sentido que interpreto a defesa de um governo europeu , que não deverá ser confundido com o de um Estado. Partilho, nesta matéria, da opinião de Jean-Louis Quermonne (2002, 33) quando defende que a noção de governação europeia não é dependente da noção de Estado soberano, depreendendo-se, portanto, que pode ser entendida para além deste conceito; como sublinha o mesmo autor « (i)l convient donc de légitimer épistémologiquement à son endroit l'usage du terme ‘gouvernement', et surtout si l'on retient l'acceptation de ‘gouvernement mixte' », dito de outro modo, um governo alicerçado numa estrutura institucional capaz de ir ao encontro da natureza dualista da União – união de Estados e comunidade de cidadãos – seguramente um dos mais importantes elementos do excepcionalismo comunitário. Persuado-me que qualquer reforma do modo de actuação comunitário deverá ter como objectivo principal o reforço da legitimidade democrática, só conseguida com um aumento da participação (esclarecida) dos cidadãos no processo de integração.

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Entre a crise e a integração continental

À medida que decorria o debate, permaneciam, no entanto, as dúvidas quanto ao patamar de integração que a União pretendia atingir. Sabemos que não constitui ainda uma comunidade política tal como definida por Amitai Etzioni (1990: 358-362) (1) , caracterizada no plano teórico por três tipos de dinâmicas: ser o foco principal de lealdade política da grande maioria dos cidadãos; ter um centro de decisão capaz de influenciar de forma significativa a repartição de valores em toda a comunidade; e, por último, possuir um poder coercivo suficiente para contrariar o poder de qualquer um dos seus membros ou de uma coligação destes. Os sinais perceptíveis apontam para a emergência de uma nova entidade – a macrorregião política , em lato sensu – que suplanta parcialmente as clássicas soberanias vestefalianas como fórmula hiperterritorial nas relações internacionais. O carácter regional das dinâmicas de integração impõe, assim, ao observador, uma intelecção do regionalismo externo enquanto noção relevante para a análise.

Ora, a macrorregião pode ser definida como uma formação intermédia de comunidade política entre o Estado-nação e o sistema internacional considerado como um todo, consistindo em unidades múltiplas de decisão – um sistema multinível – que eventualmente se poderão sobrepor; o regionalismo externo desperta por isso a sua natureza transnacional. A macrorregião, considerada num continuum ou escala de integração, poderá constituir-se em comunidade política propriamente dita se, para além de uma comunidade de valores, se verificar a existência de uma comunidade de poder com regras formais e instituições próprias. Segundo Van R. Whiting, Jr. (1993, 20-21), esta unidade analítica relevante para as dinâmicas internacionais contemporâneas pode ainda ser apreciada segundo três significados distintos: como unidade geopolítica centrada à volta de uma entidade geográfica que serve de base à acção; como cooperação política organizada dentro de um dado agrupamento de Estados; e, como comunidade regional , isto é, um actor político consolidado no sistema internacional, o que, neste caso, implica o preenchimento de algumas pré-condições, nomeadamente valores partilhados, propósitos comuns e identidade suficiente, de modo a “ceder” à entidade macrorregional a expansão do conceito de cidadania, requerendo uma moeda única e um sistema de defesa integrado.

Esta comunidade trans-estadual emergente – a União Europeia – constitui já uma verdadeira comunidade pluralística de segurança (2) , conceito premonitoriamente introduzido por Karl W. Deutsch (1957), a saber, um esquema de integração plena onde existe uma garantia real de não-recurso à guerra entre os seus membros.
A macrorregião, como expressão significativa de interesses adquiridos , implica obrigatoriamente o preenchimento de determinados requisitos, como sejam, uma identidade mais acentuada da cidadania europeia, a moeda única (o euro, já consagrado), e um sistema de defesa integrado (ainda incompleto). Por isso, para caber dentro da noção de macrorregião proposta (3) , a UE tem de melhorar decisivamente a sua coordenação, accionar a implementação de políticas comuns e racionalizar as áreas contempladas no processo de integração. Por sua vez, o objectivo de uma União forte, solidária e com maior legitimidade democrática tem de ser estruturado no princípio do interesse comunitário; só assim poderá, com crescente eficácia, aumentar o grau de acomodação. A complexidade de uma macrorregião política sugere, porém, que a estabilização deste novel actor de dimensão continental pode ser longa e complicada. Esta é porventura a única certeza disponível no horizonte.

 

A dupla natureza da EU e a constitucionalização

Do Tratado Constitucional esperava-se, portanto, que explicitasse com maior clareza os princípios basilares e as competências da UE, em suma, que permitisse aos cidadãos apreender mais claramente os objectivos fundamentais da União. Considero que este tratado representa uma melhoria assinalável na transparência e eficiência da União Europeia, muito embora o edifício político permaneça incompleto (4) . Ao deixar cair a expressão «uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa», que substitui pela afirmação expressa de uma União alicerçada na «vontade dos cidadãos e dos Estados da Europa de construírem o seu futuro comum», a UE reafirma o carácter único da construção comunitária – assente na dupla participação dos Estados e dos cidadãos – ao mesmo tempo que consagra o “lema” que deve guiar o relacionamento entre as instituições.

Já em 1993, Elfriede Regelsberger (5) apontava modelos possíveis de evolução da UE: um cenário “pragmático evolutivo” que pressupunha alargamentos selectivos (portanto, limitados), secundados por uma estratégia de aprofundamento mais incrementalista (neste cenário a configuração institucional mudaria de acordo com as necessidades de cada novo alargamento), e um cenário “federal/constitutional” que implicava uma profunda transformação do sistema comunitário; neste último, com o aumento do número de membros aumentaria também a necessidade de eficácia; por outro lado, a expansão das áreas de intervenção da União ditaria a necessidade de maior accountability . A autora previa mesmo, entre outras alterações, um reforço efectivo da co-decisão, a metamorfose da Comissão num governo europeu (eleito pelo PE) e a transformação do Conselho de Ministros numa câmara alta do Parlamento em representação dos Estados. Ora, se até Nice assistimos sobretudo a uma variação do primeiro cenário, a fase actual da União parece apontar mais para o segundo cenário – o federal/constitucional.

O êxito do processo de constitucionalização (6) dependerá sobretudo da capacidade dos líderes europeus mobilizar o apoio dos seus eleitores e garantir a concordância dos respectivos parlamentos. Esse será talvez o momento mais difícil. Alguns Estados-membros optaram por convocar referendos sobre o novo tratado; cabe agora aos líderes europeus explicá-lo aos seus cidadãos e assegurar o apoio destes para a nova fase da União (7) . Sem um esforço sério de informação, o resultado de tais consultas poderá traduzir-se na rejeição do Tratado Constitucional, o que, a acontecer, representaria um retrocesso grave desta etapa da construção europeia (8) . Pelo contrário, se o conseguirem, poderá estar garantida a viabilização do projecto europeu que hoje – tal como há mais de meio século – continua a configurar-se como a melhor forma de os Estados da Europa alcançarem crescentes patamares de segurança, democracia, paz e prosperidade. Importa, de facto, não perder de vista o valor fundamental do processo de integração, a saber, a consolidação de um modelo de paz para a Europa numa fase de maior incerteza nas relações internacionais e relembrar, porventura, que não existe fora da UE uma alternativa credível de prosperidade, nem para Portugal, nem para as restantes nações europeias. Os custos da não-
-integração seriam incomensuráveis.

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1 Cf. Amitai Etzioni. 1990. “As Três Dimensões da Integração Política”. In Teorias das Relações Internacionais, ed. Philippe Braillard. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 358-362. Neste trabalho ver, em especial, a “Escala de integração”.
2 Deutsch, Karl W., et al. 1957. Political Community and the North Atlantic Area. Princeton, N.J.: Princeton University Press.
3 Ver Camisão, Isabel e Luís Lobo-Fernandes. 2005. Construir a Europa: O Processo de Integração entre a Teoria e a História. Cascais: Principia.
4 Como refere Jorge Sampaio (2005) o Tratado Constitucional «oferece uma visão política do projecto europeu, reforça os fundamentos da democracia europeia e reafirma a via para uma Europa social. (…) perante os riscos de entropia acrescida, derivada da crescente complexidade funcional da UE com a correspondente perda de eficácia, de inteligibilidade e de transparência, o Tratado contrapõe uma considerável simplificação – a nível dos textos, dos procedimentos e das regras de decisão». Cf. “Jorge Sampaio Apoia Constituição Europeia”. Semanário, 18 de Março de 2005, 48. Ver também John Palmer. 2004. “A Dispute that is Healthy for EU Democracy”. International Herald Tribune, 27 de Outubro, 8.
5 Cf. Elfriede Regelsberger. 1993. “Whither Europe”. In The Challenge of Integration: Europe and the Americas, ed. Peter H. Smith. New Brunswick: Transaction, 87-90.
6 «Constitutionalization refers to the process by which the European treaties were transformed from interstate compacts ‘into a vertically integrated legal regime conferring judicially enforceable rights and obligations on all legal persons and entities, public and private within EC territory'» [ênfase acrescentado]. Cf. Stone Sweet, Alec and James A. Caporaso (1998, 102), “From Free Trade to Supranational Polity: The European Court and Integration”. In Supranational Governance: The Institutionalization of the European Union, edited by Wayne Sandholtz and Alec Stone Sweet. Oxford: Oxford University Press, citado em James A. Caporaso. 2000. The European Union: Dilemmas of Regional Integration. Boulder, Colorado: Westview Press, p. 29. O cenário desta constitucionalização tem uma marca iniludivelmente “federal”, apesar de o termo ter desaparecido da versão final do Tratado Constitucional (por pressão do primeiro-ministro britânico).
7 Cumpre assinalar que o Tratado Constitucional foi ratificado por treze Estados-membros. Assim, foi já ratificado pelos parlamentos da Lituânia (11 de Novembro de 2004), da Hungria (20 de Novembro de 2004), da Eslovénia (01 de Fevereiro de 2005), da Itália (06 de Abril de 2005), da Grécia (19 de Abril de 2005), da Eslováquia (11 de Maio de 2005), da Áustria (25 de Maio de 2005), da Alemanha (27 de Maio de 2005), da Letónia (02 de Junho de 2005), de Chipre (30 de Junho de 2005), e de Malta (06 de Julho de 2005). Mereceu igualmente a aprovação de 76,73% dos cidadãos em Espanha, que, a 20 de Fevereiro de 2005, se tornou o primeiro país a referendar este Tratado (o processo de ratificação parlamentar em Espanha ficou concluído a 18 de Maio de 2005). Do mesmo modo, o TC foi aprovado em referendo por 56,52% dos eleitores luxemburgueses. O Tratado Constitucional foi igualmente votado favoravelmente pelo PE, no dia 12 de janeiro de 2005, por uma maioria de 500 votos a favor, 137 contra e 40 abstenções. Embora neste último caso se tratasse de um voto não vinculativo, foi, contudo, um sinal político muito significativo, susceptível de conferir um impulso ao processo de ratificação em curso. Assim não o entenderam os eleitores franceses e os eleitores holandeses que – chamados a referendar o TC – o rejeitaram pelas expressivas votações de 54,87% e 61,6%, respectivamente. Estão ainda previstos referendos em mais seis Estados-membros: Dinamarca (27 de Setembro de 2005), Irlanda, Polónia, Portugal, Reino Unido e República Checa.
8 Como alerta Jorge Sampaio (2005) «(…) na Europa alargada, a adopção e aplicação deste Tratado Constitucional é indispensável para enfrentar os riscos de diluição da construção europeia». Cf. “Jorge Sampaio Apoia a Constituição Europeia”. Semanário, 18 de Março de 2005, 48.


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* Luís Lobo Fernandes

Professor Associado de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade do Minho.

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