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Onde estou: | Janus 2006> Índice de artigos > Conjuntura e tendências internacionais > Actualidade europeia e mundial > [ A reforma das Nações Unidas ] | |||
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São referidas razões externas à organização (alterações nos últimos 60 anos no poder relativo entre Estados e nas ameaças à paz e segurança internacionais) e razões internas (desadequação de alguns dos seus princípios de base, da estrutura institucional e dos procedimentos de administração). Estas razões, já antes presentes, sofreram uma aceleração, ou uma dramatização, com os choques sucessivos do 11 de Setembro e da manutenção de uma ameaça terrorista global; de uma política externa americana que por vezes aparece como pouco entusiasta, quando não mesmo crítica, da organização; e, finalmente, com as clivagens decorrentes do conflito no Iraque. Foi nestas circunstâncias que o Secretário-geral Kofi Annan, em Setembro de 2003, na altura com uma posição de autoridade e prestígio que talvez nenhum outro Secretario geral tenha antes atingido, decidiu lançar um processo de reforma ambicioso, aproveitando o 60º aniversário da organização em 2005. No entanto, por detrás de um aparente consenso na necessidade de reforma das NU, existem na comunidade internacional fortes diferenças no entendimento da organização e das suas limitações. Estas diferenças implicam posições opostas sobre que reforma efectuar, e limitaram fortemente a extensão e profundidade da reforma da organização acordada na Cimeira. Entre os países do Norte existe uma clara diferença entre europeus (acompanhados, entre outros, pelo Canadá e pelo Japão) e os EUA. Para os primeiros, as relações internacionais devem ser contidas num sistema de regras tão estruturado quanto possível, de forma a garantir a paz. Existe também um entendimento de que um conjunto de outros desafios com que o mundo se confronta (tão diversos como o desenvolvimento, o combate a doenças infecciosas ou ao terrorismo) só pode (ou pode melhor) ser tratado por via multilateral. Estão assim dispostos a ceder margem de acção nacional (que aliás têm pouca) para um quadro de acção multilateral. E as Nações Unidas são vistas como o órgão central desta ordem mundial, pela sua universalidade e pelas competências que lhe estão reconhecidas na Carta. Os EUA, tendo uma multiplicidade de interesses directos (e uma muito maior capacidade de acção efectiva própria), pretendem conservar uma mais larga autonomia de acção. Têm assim uma menor tolerância por um sistema de regras que os amarrem. Assim, embora europeus e americanos partilhem num grau único valores fundamentais (nomeadamente nos direitos humanos) e interesses vitais (no combate ao terrorismo e à não proliferação), a verdade é que especificidades de política interna (na primeira questão) e diferenças das capacidades nacionais e nos entendimentos das relações internacionais (nas segundas) limitam hoje a sua capacidade de acção conjunta nas Nações Unidas. A maioria dos países do Sul, pelo seu lado, ficaria feliz com umas Nações Unidas que fossem uma espécie de superorganização de ajuda ao desenvolvimento, com compromissos no desarmamento e reconhecendo, por herança histórica e solidariedades actuais, o direito (ao combate) pela autodeterminação. Os países do Sul mais radicais (como a Síria, Irão, Cuba, Venezuela, Egipto, Paquistão) têm também fortes reservas a uma ordem internacional mais restritiva, e opõem-se fortemente ao reforço dos mecanismos de direitos humanos. Em várias destas questões são acompanhados pela Rússia e China. Assim, foram fundamentalmente os europeus (e o Secretário-geral) que defenderam para a Cimeira um compromisso global e estruturado das relações internacionais, com as NU no seu centro e disposições ambiciosas sobre desenvolvimento, não proliferação e desarmamento, combate ao terrorismo, responsabilidade de proteger, reforço das disposições de direitos humanos e reforma da gestão da organização. Os europeus, com esta visão global, esperavam conseguir “ trade offs ” suficientes entre os interesses contraditórios para alcançar um documento avançado. E confiaram em que o ambicioso pacote de assistência ao desenvolvimento aprovado no Conselho Europeu de Junho permitiria garantir o apoio da generalidade dos países africanos e outros de baixo rendimento. No entanto, outros países do Sul, os EUA, a Rússia e a China, opuseram-se fortemente (nuns casos por razões idênticas, noutros por razões opostas) a vários capítulos do documento. E o apoio (tardio e, em geral, pouco vocal) de países africanos a parte das disposições mais ambiciosas acabou por não ser suficiente, até porque foi acompanhado de um relativo desinteresse dos países de rendimento médio (os quais consideraram ter pouco a ganhar no cômputo global da Cimeira). Foi neste jogo de equilíbrios que se chegou ao compromisso do documento final. Não se conseguiu, como os europeus pretendiam, um novo élan refundador para as Nações Unidas. Mas, afastando por um momento a desilusão das expectativas, conseguiu-se ainda um documento importante e com disposições úteis. Principais resultados (positivos e negativos) do documento da Cimeira Do lado das desilusões, convirá salientar (pela importância política da questão e pela sua influência negativa no desenrolar das negociações) não se ter conseguido reformar o Conselho de Segurança. A questão acabou por ter uma influência negativa nas negociações. Em primeiro lugar porque, pelo menos no início (quando a reforma do CS parecia ao alcance) incentivou uma atitude obstrucionista geral dos países que não estavam interessados na reforma do Conselho. Em segundo lugar, porque inibiu alguns dos candidatos de apoiarem mais activamente propostas com as quais concordavam, mas que sabiam ser impopulares. O falhanço do alargamento do CS (cujo deficit de representatividade quantitativa, geográfica e de poder é reconhecido) traduziu-se numa forte desilusão para o Japão, Alemanha, Índia e Brasil, que fizeram campanha conjunta como G4. E significou fundamentalmente a vitória de uma agenda negativa: um conjunto de países (entre eles, China, Paquistão, Itália, México, Argentina), não tendo embora uma alternativa credível para resolver este défice de representatividade, apostaram em impedir a entrada como membros permanentes de países com os quais têm rivalidades ou cuja entrada desvalorizaria o seu estatuto regional. Os países africanos, cujos votos eram fundamentais para viabilizar esta reforma, acabaram por ficar prisioneiros das ambições cruzadas de vários membros do seu grupo. Apostaram numa posição maximalista que lhes salvaria a face (em termos de direito de veto e de dimensão do alargamento) mas que, por ser inaceitável para os outros grupos regionais, acabou por ser a última causa que inviabilizou o alargamento. Apesar deste insucesso, conseguiram-se no entanto na Cimeira resultados importantes com a criação da Comissão de Consolidação da Paz ( Peace Building Commission , PBC), o reconhecimento do princípio da “responsabilidade de proteger”, disposições significativas na área da reforma do Secretariado e dos procedimentos de administração e ainda com a reafirmação integrada de compromissos importantes na área do desenvolvimento A PBC, correspondendo a uma ideia lançada por Portugal em 2003, resultou da identificação de um “ gap ” institucional entre segurança e desenvolvimento. Com efeito, em situação de conflito agudo, o CS assume geralmente as suas responsabilidades e mandata uma força de manutenção de paz que normaliza a situação no país. No entanto, cerca de metade dos países que emergem de um conflito recaem em conflito nos cinco anos seguintes, precisamente porque a passagem ao desenvolvimento sustentável exige a integração das vertentes de desenvolvimento e segurança, e um prazo mais longo do que o razoável para a permanência de simples operações de paz. O objectivo da PBC é, mantendo a credibilidade de segurança dada pelo continuado envolvimento do CS, garantir um esforço de desenvolvimento integrado das agências das NU, instituições financeiras internacionais e doadores, numa lógica não só de ajuda tradicional mas também de “ institution building ”. Tratou-se de uma negociação difícil, em que se cruzaram interesses institucionais e de afirmação política (os EUA e outros P5 favoreceram uma maior dependência do CS; os países do Sul, uma maior dependência da AG e no ECOSOC, onde têm mais influência); receios de ingerência interna e de criação de um novo “Conselho de Tutela”, etc. Mas a UE, trabalhando bem com os africanos que compreenderam ter um interesse directo na existência e funcionalidade deste novo órgão, e isolaram os radicais do G77 conseguiu um bom resultado. A decisão de criar a PBC foi tomada e o seu mandato definido, foi acordada uma composição parcial e assumido um compromisso de a tornar operacional até ao fim do ano. Restam, no entanto, ainda por resolver matérias importantes (finalizar a composição do seu “ core group ” e aspectos relacionados com a sua inserção institucional). O reconhecimento do princípio da “responsabilidade de proteger” é também extremamente relevante, pelo compromisso político que significa em procurar evitar novas situações como o Ruanda ou o Sudão. Tratou-se de novo de uma negociação conduzida pela UE, com oposição dos radicais do Sul, com pouco entusiasmo da Rússia e da China e também dos EUA (estes últimos apoiando o princípio mas preocupados em evitar criar uma obrigação de intervir). Mas alguns países africanos e latino-americanos permitiram viabilizar um entendimento. Um teste da extensão real do acordo nesta matéria será a facilidade na criação no Secretariado das NU de uma “ early warning capability ”, decidida na Cimeira mas cujas implicações financeiras obrigam ainda a aprovação pela AG. Foi possível também um acordo importante na área da reforma do Secretariado e dos procedimentos de administração: reforçando a independência dos mecanismos de controlo da execução orçamental; procurando eliminar, ou pelo menos reavaliar, programas com mais de 5 anos que se mantêm por simples inércia; e reforçando a capacidade de gestão autónoma do Secretário-geral. São decisões fundamentais para recuperar a credibilidade da organização, fortemente afectada pelas fraquezas reveladas pela investigação do programa “ Oil for food ” e pelos escândalos de exploração sexual em operações de paz. Resta ver se será possível aprovar até ao fim do ano na AG as medidas indispensáveis para dar conteúdo às decisões da Cimeira. Da área do desenvolvimento, que acabou por ser muito substancial, constam disposições importantes como: a reafirmação de forma integrada do conjunto dos compromissos constantes das reuniões das Nações Unidas desde a Cimeira do Milénio, incluindo Monterrey e a Cimeira do Desenvolvimento Sustentado; o reconhecimento do esforço de ajuda ao Desenvolvimento da UE, embora sem a referir explicitamente; amarrar um pouco mais os EUA a um maior esforço de assistência; a importância da redução da dívida para o desenvolvimento; compromissos para apoiar especialmente o desenvolvimento do continente africano; concluir o “ Doha round ”; avançar as discussões sobre alterações climáticas; implementar a declaração de compromisso sobre HIV/SIDA e financiar o Fundo Global de Luta contra a SIDA, Tuberculose e Malária; reconhecimento de mecanismos inovadores de financiamento do desenvolvimento. Foi igualmente reafirmado o importante conceito da responsabilidade primordial de cada país pelo seu próprio desenvolvimento e da importância da boa governação. No que respeita ao Conselho de Direitos Humanos, órgão que se pretende substitua a desacreditada Comissão de Direitos Humanos (CDH), não se conseguiu mais do que acordar o princípio da sua criação. Quase tudo, desde o seu mandato, relacionamento institucional e autonomia, composição e forma de eleição, está por resolver. Com efeito, a reforma da CDH, que nos últimos anos está cada vez mais refém de uns poucos países radicais que inviabilizam o seu papel de promoção e defesa dos Direitos Humanos, é igualmente fundamental para recuperar a credibilidade da organização. Os países radicais tudo farão, no entanto, para minar a criação de um Conselho forte que afaste a sua capacidade de se porem ao abrigo de críticas. Sobre terrorismo, embora se tenha conseguido o compromisso político importante de procurar encerrar as negociações da Convenção Global até ao fim da 60ª sessão da AG, a verdade é que as questões em aberto continuam as mesmas: a definição de terrorismo e a referência ao direito à luta pela autodeterminação e contra a ocupação estrangeira. Conseguiu-se no entanto um endosso, embora não incondicional, do plano de acção de combate ao terrorismo lançado pelo Secretário-geral em Madrid, em 11 de Março de 2005. No que respeita ao desarmamento e não proliferação não foi sequer possível retomar a linguagem da Cimeira do Milénio. A determinação dos EUA em concentrar-se exclusivamente na questão da não proliferação, e a igual determinação de um conjunto de países do Sul em centrarem-se quase exclusivamente em linguagem sobre desarmamento, traduziram-se num tal afastamento de posições que não permitiu à UE fazer o seu habitual papel de ponte.
Informação Complementar O DOCUMENTO FINAL DA CIMEIRA DE SETEMBRO O documento adoptado a 16 de Setembro de 2005 na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo das Nações Unidas representa ao mesmo tempo uma oportunidade perdida e um bom documento. Uma oportunidade perdida face a expectativas existentes para uma quase refundação das Nações Unidas para o séc. XXI, e para aspectos centrais da reforma institucional da organização (nomeadamente do Conselho de Segurança). Um bom documento porque se conseguiu a criação da “Comissão de Consolidação da Paz“ (Peace Building Commission, PBC), o reconhecimento do princípio da “responsabilidade de proteger”, disposições importantes na reforma do Secretariado e dos procedimentos de administração e ainda a reafirmação integrada de compromissos importantes na área do desenvolvimento. Noutras áreas (terrorismo, substituição da Comissão de Direitos Humanos pelo Conselho de Direitos Humanos) registaram-se progressos mas restam negociações difíceis para concretizar os compromissos assumidos na Cimeira. Na questão do desarmamento e não proliferação não foi possível conseguir quaisquer resultados, o que dá um mau sinal sobre a relevância da organização numa matéria fulcral para a paz e a segurança internacionais, e ilustra a extensão da divergência de pontos de vista na comunidade internacional sobre o tema.* Rui Macieira Licenciado em Economia pela Universidade Católica Portuguesa. Representante permanente adjunto de Portugal junto das Nações Unidas em Nova Iorque desde Julho de 2002. Funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros desde 1984.Bibliografia ONU – Statement of the Secretary-General to the General Assembly in 23 September 2003. (SG/SM/8894). ONU – Report of the Secretary-General's High-level Panel on Threats, Challenges and Change. A More Secure World: our shared responsibility. (A/59/565), 2 Dezembro 2004. ONU – Report of the Secretary-General. In Larger Freedom: towards development, security and human rights for all. 21 Março 2005. ONU – 2005 World Summit Document . (A/60/L.1), 16 Setembro 2005.
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