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- JANUS 2006 -



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A Declaração de Bolonha

Marçal Grilo *

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Quando em Junho de 1999 assinei em Bolonha, com mais vinte e oito representantes de outros tantos países europeus, a Declaração que estabeleceu as bases e os objectivos para a criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior, tive a noção de que estava a colocar as nossas instituições universitárias e politécnicas num caminho correspondente a um novo enquadramento institucional de que Portugal muito poderia beneficiar num futuro mais ou menos próximo. Isto porque o documento assinado não era apenas mais um texto de intenções quanto ao que poderá ser construído na área do ensino superior, mas sim uma declaração política que resultara de uma negociação e de um acerto de posições em que os próprios ministros se tinham envolvido pessoalmente, não deixando que a matéria fosse tratada, como acontece por vezes, pelos burocratas e os peritos a quem falta a visão clara do “ ultimate goal ” das iniciativas políticas.À distância de mais de seis anos sobre a assinatura da Declaração, o que importa hoje é retomar os objectivos que foram definidos e que congregaram a vontade política dos governos dos países signatários e ao mesmo tempo fazer algumas reflexões sobre o caminho andado e sobre as questões centrais com que a aplicação da Declaração se tem confrontado desde 1999.

 

Os objectivos

Quanto aos objectivos parece-me que a Declaração, que foi cuidadosamente preparada e negociada entre os países signatários, se insere em quatro grandes objectivos estratégicos que os países europeus, através de diversos instrumentos, têm vindo a prosseguir, numa lógica de consolidação do desígnio de integração económica, social e política que a Europa encetou imediatamente a seguir ao final da 2ª Guerra Mundial, na segunda metade da década de 40 e mais concretamente durante a década de 50, com a assinatura do Tratado de Roma.

Em primeiro lugar, o incremento da mobilidade dos cidadãos. Seguidamente, a promoção do desenvolvimento económico e social dos países europeus e a empregabilidade dos europeus, em especial daqueles que obtêm uma formação de nível superior.

Em terceiro lugar, o aumento da competitividade das instituições europeias de ensino superior. E, finalmente, a criação de um processo coordenado entre países, designadamente na área dos graus e dos diplomas, na comparabilidade desses mesmos diplomas, nas transferências de créditos, na mobilidade de estudantes, professores e investigadores, na promoção da qualidade e na introdução de uma verdadeira dimensão europeia no âmbito dos cursos ministrados nas diferentes instituições de ensino superior no nosso continente.

Como é claro por este enunciado, os objectivos que foram traçados e levaram os ministros a assinar a Declaração têm um carácter eminentemente estratégico e político, não havendo seguramente alguém de boa fé que possa vislumbrar no documento de Bolonha uma qualquer “ hidden agenda ” com objectivos perversos visando a uniformização dos graus, o combate à diversidade institucional ou a redução da componente pública do financiamento do ensino superior.

 

Particularidades do “Processo de Bolonha”

Um primeiro esclarecimento que importa fazer diz respeito ao modo como a Declaração se relaciona com a Declaração da Sorbonne assinada em 1998 pelos ministros da Educação do Reino Unido, da França, da Itália e da Alemanha e que tinha um carácter muito semelhante a esta de Bolonha.

Numa primeira apreciação, pode afirmar-se que a Declaração de Bolonha aparece na sequência da Declaração da Sorbonne, mas para se ser rigoroso deve entender-se que a Declaração de Bolonha de 1999 é uma correcção das intenções da Declaração da Sorbonne de 1998 e constitui, sobretudo, uma modificação radical da metodologia que tinha sido adoptada pelos quatro grandes países da União Europeia para lançar o processo de construção de um Espaço Europeu de Ensino Superior.

Se tivermos em atenção que esta ideia fora pela primeira vez explicitada em 1997 na Conferência de Varsóvia, quando o presidente da Conferência, o ministro da Educação da Holanda, apresentou o conceito de “ Common European Home for Education ”, podemos mesmo afirmar que a Declaração da Sorbonne aparece um pouco fora do enquadramento para que se parecia caminhar, uma vez que em Varsóvia estavam presentes não apenas os países que constituíam a União Europeia na altura, mas também um grande número de países que estavam fora da União e que, desde o princípio, estavam incluídos no projecto de construção deste Espaço Europeu da Educação. Acresce que a Declaração da Sorbonne tinha um carácter muito restrito, como estava expresso no próprio título da Declaração – « Joint Declaration on Harmonisation of the Architecture of the European Higher Education System ».

A Declaração de Bolonha de 1999 é pois inspirada e motivada pela Declaração da Sorbonne de 1998, mas constitui uma iniciativa que adopta objectivos que vão muito para além do que se pretendia com esta e introduz uma metodologia que difere substancialmente da que estava subjacente às intenções de 1998.

Um segundo ponto que importa sublinhar é o modo como foi preparada a Declaração de Bolonha. Com efeito, entre o momento em que o ministro Berlinguer começa a ventilar a hipótese de uma segunda Declaração que corrigisse os aspectos menos positivos da Declaração da Sorbonne e a data de assinatura da Declaração de Bolonha, tornou-se evidente o esforço de concertação encetado por vários responsáveis políticos ao nível europeu para se encontrar um texto que tivesse importância política, mas que, ao mesmo tempo, fosse capaz de mobilizar as próprias instituições de ensino superior europeias, única forma de se assegurar no futuro que o processo não teria uma evolução do tipo “ top-down ”, com as instituições a aguardar aquilo que vai sendo decidido pelos governos e, muitas vezes, pelos burocratas de Bruxelas. Refira-se, a este propósito, que os representantes da Comissão Europeia que acompanharam a preparação do texto da declaração pretenderam, ainda na própria manhã do dia em que se realizou a cerimónia de assinatura em Bolonha, que a Comissão também fizesse parte dos signatários do documento, o que veio a ser inviabilizado por um conjunto de ministros que se opuseram a tal pretensão. Infelizmente, e como se sabe, a Comissão veio mais tarde a “colar-se” à Declaração com o beneplácito de uma Conferência de Ministros que acedeu às suas pretensões, criando o chamado “Processo de Bolonha” onde a Comissão passou a desempenhar um papel, em minha opinião, só explicável pela demissão que, em simultâneo, as instituições de ensino superior assumiram em relação ao follow-up e ao estabelecimento dos acordos, dos instrumentos e dos mecanismos capazes de levar à pratica os objectivos definidos na Declaração.

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As consequências

Outra particularidade relaciona-se com o debate surgido em várias instâncias quanto às consequências da Declaração relativamente à uniformização dos graus e dos diplomas no espaço europeu e também quanto ao eventual desaparecimento de sistemas binários de ensino superior.

É neste quadro que aparece a tendência, muito marcada em alguns sectores do nosso país, que pretende impor um crescente esbatimento das diferenças entre as instituições universitárias e as instituições do tipo politécnico, o que conduz, necessariamente, à adopção de um modelo institucional homogéneo e uniformizado, sem diversificação e seguramente com muito menos capacidade para responder aos desafios que hoje se colocam ao ensino superior em qualquer país europeu.

De uma forma directa, importa, a este propósito, referir que a Declaração de Bolonha não tem qualquer objectivo de uniformização dos graus entre os países signatários nem muito menos abrir espaço para que dentro de cada país se proceda no sentido de esbater as diferenças entre ensino superior universitário e ensino superior não universitário, qualquer que seja a designação deste, mas que no nosso país assumiu, e bem, o nome de ensino superior politécnico.

 

Obstáculos ao processo

Um outro factor que pode explicar alguns dos obstáculos que têm vindo a ser encontrados ao longo dos últimos três ou quatro anos e que já referimos neste escrito, prende-se com o papel que as instituições europeias de ensino superior deveriam ter desempenhado na condução do processo de aplicação da Declaração de Bolonha. Em nosso entender, as instituições, e em particular as organizações europeias de universidades que acompanharam de perto a elaboração do documento assinado em Bolonha, talvez não tenham assumido como prioritário o seu envolvimento no processo, o que teve como consequência serem os governos dos países e a própria Comissão Europeia que vieram a liderar o processo. Tal facto teve algumas consequências menos positivas face aos objectivos inicialmente traçados, que apontavam para um maior envolvimento das instituições através de uma metodologia “ bottom-up ” exactamente ao invés do que veio a verificar-se quando os governos passaram a ditar as leis e a impô-las de cima para baixo, com as instituições a assistir à evolução do processo. Ou seja, as instituições não foram capazes ou não quiseram ou, pior ainda, não foram incentivadas a desempenhar o papel que lhes estava reservado, na procura dos instrumentos que dessem corpo à própria Declaração. Como consequência o processo sofreu atrasos, alguns dos quais introduziram manifesto prejuízo à normal evolução do processo de Bolonha.

À partida, as universidades tinham todas as condições para avançar com acordos institucionais que não requeriam legislação especial e que poderiam ter lançado as bases de uma rede, ou de várias redes, constituídas por áreas científicas que poderiam facilitar e incentivar a mobilidade de estudantes, investigadores e professores, o que só veio a verificar-se muito mais tarde quando os governos e a Comissão já detinham a condução do processo.

A este propósito, não pode deixar de se referir como extremamente positivo o movimento criado com o lançamento do Programa Erasmus-Mundus que veio, dando sequência ao movimento lançado a partir de 1986 com a criação do programa Erasmus , a tornar-se um instrumento muito relevante para a criação destas redes que vão, necessariamente, no futuro, consolidar e reforçar a coesão europeia pela ligação permanente entre instituições, através de esquemas simples e muito pouco burocratizados. Nesta matéria, a Comissão Europeia deu um passo que se pode revelar de grande importância para o reforço da capacidade europeia em termos de oferta de formação e internacionalização das suas instituições de ensino superior.

 

Condicionantes ao êxito do processo

Um comentário que nos parece importante fazer não tem a ver directamente com a Declaração, mas refere-se a um factor que é essencial para que os objectivos da Declaração possam vir a ser atingidos nos prazos recentemente estabelecidos na Conferência de Bergen.

Como tem sido referido em numerosos estudos (refira-se o “ Report by The Forum on University-based Research ” com o título “ European Universities: Enhancing Europe's Research Base ”), as universidades europeias debatem-se com algumas questões que devem ser encaradas e ultrapassadas de forma a poderem colocar-se no confronto internacional a par das melhores instituições mundiais, nomeadamente aquelas que nos EUA são justamente consideradas como instituições de referência e cujo papel é determinante para o avanço do conhecimento e para a formação de recursos humanos com qualificações ao nível do topo.

De entre estas questões que têm vindo a ser identificadas como obstáculos ao desenvolvimento de instituições europeias de ensino superior mais ágeis, mais intencionais e por isso mesmo mais competitivas e com maior capacidade, importa referir que cada vez mais os modelos de gestão e de decisão dentro das instituições têm vindo a ser apontados como responsáveis por uma parte dos constrangimentos a que se encontram sujeitas as instituições europeias.

Não se trata apenas do modo como são constituídas e como funcionam os órgãos de gestão, em particular das universidades, mas sobretudo a falta de liderança de que dão mostras muitas instituições europeias de ensino superior, em particular quando as comparamos com as mais prestigiadas universidades norte-americanas, sejam estas de carácter público ou privado. Acresce que as modificações nos estatutos das universidades europeias que visem uma maior abertura ao exterior, uma maior responsabilização dos seus dirigentes e um nível mais elevado de prestação de contas de quem gere a quem tem as funções de “ trustee ” da instituição, constituem, seguramente, nos dias de hoje, um factor que deve ser equacionado com particular ênfase, sobretudo pelas próprias instituições. É hoje reconhecido por muitos estudos e por muitos investigadores que as universidades europeias necessitam urgentemente de flexibilizar os seus modelos, tendo presente que não existe uma única forma de organização interna ou de constituição dos órgãos de gestão, mas que haverá algumas novas concepções e alguns novos procedimentos que poderão ser introduzidos e dos quais deverão resultar benefícios evidentes, tendo em linha de conta que o modelo clássico europeu não tem sido capaz de responder aos novos desafios que enfrentam as universidades europeias.

A este propósito, sublinhe-se que numa União Europeia que atravessa uma das suas maiores crises políticas de sempre, as universidades podem desempenhar, como instituições capazes de prosseguir os caminhos e os objectivos traçados nomeadamente pela Estratégia de Lisboa, um papel de importância acrescida. Basta para isso pensar que estas são talvez as instituições onde é possível encontrar uma maior concentração de saberes e de recursos humanos qualificados capazes de promover as bases de um novo modelo de desenvolvimento equilibrado, assente no conhecimento e na competição, mas enquadrado pelos valores da liberdade, da solidariedade e do respeito pelos direitos das pessoas.

 

Conclusão

A Declaração de Bolonha assinada em Junho de 1999 traduz uma vontade política de avançar para a constituição de um Espaço Europeu de Ensino Superior. Este espaço tem como base as instituições existentes, mas pressupõe um novo relacionamento institucional que permita a criação de uma multiplicidade de redes interuniversitárias de cooperação, onde se movem estudantes, investigadores e professores, onde se assumem objectivos comuns e através dos quais se promovem projectos, cursos e actividades que visam a optimização de recursos existentes nessas mesmas redes.

Em termos práticos, estas redes, que devem ter uma “geometria variável”, constituem o “esqueleto” de uma Europa que assenta o seu modelo de desenvolvimento nas capacidades, nos recursos e nos saberes acumulados nas instituições situadas nos “nós” destas mesmas redes. Neste contexto, gostaria de citar Manuel Castels, que quando nos visitou há dois anos, afirmou que a grande capacidade e o enorme poder dos EUA reside sobretudo nas suas universidades e no conhecimento que aí é gerado.

Relativamente ao futuro, é de esperar que o sucesso da Declaração dependa sobretudo da capacidade das instituições para assumirem o seu próprio papel, embora se reconheça aos governos e à Comissão Europeia um papel relevante na condução do processo, em particular ao nível do enquadramento legislativo, da transmissão da informação, bem como da coordenação e da criação dos incentivos necessários ao florescimento destas redes de instituições de ensino superior.

Passados mais de seis anos sobre a assinatura da Declaração, continuo convencido de que este foi um passo decisivo na direcção certa, mas também reconheço que os objectivos são ambiciosos. Os europeus são muito tradicionalistas, e a força dos interesses corporativos é ainda muito significativa, mas o tempo se encarregará de dar razão aos que acreditam que é possível ter na Europa instituições de ensino superior muito qualificadas, capazes de se imporem em qualquer área científica.

Os europeus, que são responsáveis pela criação do conceito de Universidade, têm agora de assumir a tarefa de reflectir sobre as suas instituições universitárias – de que tanto se espera – e encontrar os novos caminhos que permitam consolidar uma Europa mais ambiciosa, mais coesa e com maior liderança no contexto internacional.

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* Marçal Grilo

Ex-ministro da Educação. Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian.

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