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Janus 2006



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Ordens profissionais, diferentes desafios, novas reflexões

Paula Torres de Carvalho *

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A auto-regulação, a acreditação dos títulos académicos e a adaptação às alterações introduzidas no sistema de ensino superior pela Declaração de Bolonha são as três principais questões que, hoje, se colocam às ordens profissionais em Portugal.

O crescente número de licenciados que continua a sair, todos os anos, das universidades e o consequente aumento de profissionais a entrar no mercado de trabalho ou à procura de emprego tem vindo a mudar o funcionamento das diversas ordens e associações profissionais, a apresentar-lhes diferentes desafios e a provocar novas reflexões.

No total existem, hoje, 11 associações ou ordens com a função de regular as práticas de certas profissões consideradas de interesse público, como a Associação Nacional de Bioquímicos ou as Ordens dos Engenheiros, dos Médicos, dos Economistas ou dos Advogados. Estão ainda constituídas a Associação pró-Ordem dos Psicólogos e a Associação Sindical dos Professores pró-Ordem, a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e as Ordens dos Arquitectos, dos Biólogos, dos Enfermeiros, dos Farmacêuticos, dos Médicos Dentistas e dos Médicos Veterinários e ainda dos Revisores Oficiais de Contas.

O exercício de todas estas profissões, em Portugal, implica inscrição obrigatória nas respectivas ordens.

Estes organismos fazem parte do Conselho Nacional de Profissões Liberais que integra os bastonários e presidentes das diferentes ordens e associações.

O aumento de profissionais das mais diversas áreas de actividade veio conceder, por seu turno, cada vez maior importância à discussão do problema da auto-regulação, seja no seio das próprias ordens, seja nos meios a elas exteriores.

 

Estado, Ordens e interesses corporativos

Algumas correntes de opinião questionam a legitimidade de o Estado delegar nas várias associações profissionais competências que lhe devem ser próprias, poderes que são públicos, e manifestam-se contra o crescente poder e visibilidade das ordens e do que consideram ser interesses corporativos e de grupo, lembrando que há países da Europa onde a inscrição de profissionais nas respectivas ordens nem sequer é obrigatória.

Contrariando esta perspectiva, outros argumentos surgem em defesa cada vez maior da intervenção das ordens na sociedade civil, assumindo, inclusive, que o seu papel não se deve limitar a zelar pelo cumprimento das normas deontológicas mas que se deverá estender a outros domínios como, por exemplo, o da fiscalização.

O bastonário da Ordem dos Engenheiros (OE), Fernando Santo, refere as diferenças de actuação existentes nos países da Europa do Norte comparativamente com o que se observa nos países de cultura latina. Aponta, no entanto, o exemplo de Espanha como “muito mais exigente” salientando que, naquele país, tanto a ordem dos engenheiros como a dos arquitectos fiscalizam se os projectos de obras públicas contam com engenheiros e arquitectos, como está determinado obrigatoriamente, o que não acontece em Portugal. Refere ainda um outro exemplo, o do Brasil, onde as ordens cumprem, igualmente, esse papel fiscalizador.

 

Ordens e acreditação

Um outro debate tomou, entretanto, lugar, resultante também do aumento das mais variadas licenciaturas e consequentemente de profissionais: o da acreditação e avaliação de cursos do ensino superior.

O processo da sua acreditação está descentralizado e repartido por várias estruturas, entre as quais as ordens profissionais, de forma a acrescentar um outro filtro à entrada na profissão. Mas esta é uma realidade que tem merecido forte contestação.
A questão central é a de saber se as ordens têm ou não legitimidade para reconhecer a qualidade dos cursos superiores, função que deveria caber ao Estado, ou se devem limitar-se a desempenhar um papel consultivo, de forma a adaptar os cursos às exigências do mercado.

Algumas das referidas ordens, como a dos engenheiros, a dos arquitectos ou a dos farmacêuticos, submetem os candidatos às profissões a exames de entrada dos quais são dispensados os licenciados que frequentaram cursos por elas “acreditados”, por meio de uma avaliação do plano curricular, do corpo docente e dos sistemas de ensino.

Este controlo feito posteriormente a uma formação académica obtida numa universidade não é considerado válido

em determinados meios de opinião, tendo em conta a existência de um sistema independente de avaliação do ensino superior.

Entre as ordens que têm assumido um papel mais activo a favor da intervenção em matéria de acreditação, conta-se a Ordem dos Engenheiros, com 40 mil membros, a primeira a participar nos processos de acreditação. Os licenciados que frequentarem cursos que não obedecem aos critérios exigidos pela OE são obrigados a submeter--se a um exame feito por esta, de forma a obter a carteira profissional.

O seu bastonário explica que em Portugal há, hoje, 314 cursos de engenharia, dos quais apenas 99 são reconhecidos pela OE. Ao referir o assinalável aumento em relação, por exemplo, a 1954, em que apenas existiam 15 licenciaturas em engenharia, o bastonário nota que apenas dois terços do total dos cursos são reconhecidos pela Ordem, o que significa que nela se inscrevem só 25 por cento dos 7700 licenciados em engenharia que saem anualmente das universidades.

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Ordens e Ensino Superior

Fernando Santo alerta para o facto de já se estar a banalizar a situação de os diplomados por institutos politécnicos e algumas universidades privadas se apresentarem no mercado de trabalho com classificações muito mais elevadas do que os licenciados por universidades de qualidade considerada muito superior, mas que concluem as licenciaturas com nota final muito mais baixa e que estão a ser “preteridos” nos estágios profissionais em relação aos primeiros.

Mas a intervenção das ordens neste âmbito tem merecido fortes críticas.

Para o professor de direito constitucional Vital Moreira, observa-se uma “óbvia violação da separação de poderes que deve existir entre a formação académica, que incumbe às escolas do ensino superior, e a formação profissional, que é do foro dos organismos profissionais.”

Na perspectiva deste professor de direito, “a vocação natural das ordens profissionais não é a de controlar a formação académica dos candidatos à profissão, essa já oficialmente “acreditada” no título académico, mas sim a de lhes ministrar uma adequada formação quanto à deontologia profissional e quanto às “ legis artis ” e “boas práticas” da profissão”. Estas são funções que, no entender de Vital Moreira, não competem às universidades, devendo as ordens “proceder ao necessário controlo e punição das infracções” cometidas pelos profissionais das mais diversas áreas.

Segundo Carlos Ceia, professor da Universidade Nova de Lisboa, o papel das ordens profissionais na avaliação dos cursos é fundamental, juntamente com outros organismos independentes. O seu papel deveria ser o de parceiros privilegiados dos processos de acreditação “e não o de juízes supremos da qualidade de um curso”, defende, salientando a impossibilidade da criação de dois mecanismos distintos, o de acreditação e o de avaliação, que se assemelham, contudo, nas metodologias e nas tarefas.

Na opinião de Fernando Santo, contudo, é nas ordens que reside “a última reserva das competências”. O bastonário da OE admite a legitimidade do funcionamento do mercado livre, mas manifesta-se contra a irresponsabilidade que se observa por parte do Estado quanto ao negócio do ensino, abrindo possibilidade à existência de cursos que não cumprem os exigidos critérios de qualidade e deixando assim de cumprir o seu papel no que diz respeito ao controlo sobre a qualidade do ensino, conforme estipula a lei.

“A omissão desse papel de exigência por parte do Estado deu lugar à nossa intervenção”, diz o bastonário da Ordem dos Engenheiros, afirmando-se contra “os que não estão interessados na selecção e na exigência e querem o facilitismo como via.”

O controlo sobre a competência dos recém-licenciados e dos estagiários é também feito por outras ordens profissionais, como a dos médicos ou dos advogados.

Rogério Alves, bastonário da Ordem dos Advogados, considera que “a experiência portuguesa é positiva” nesse domínio, pelo menos no que respeita à advocacia, e insiste na ideia da importância do tema da auto-regulação. “A discussão está na mesa”, diz, salientando o facto de em certos países europeus, como a Inglaterra, a inscrição na Ordem não ser obrigatória para o exercício da advocacia e referindo o debate a propósito do recente relatório do inglês David Clementi que consiste num ataque à ideia da auto-regulação das ordens profissionais e no entendimento de que é ao Estado que compete assegurar o cumprimento das normas de conduta profissional.

 

“Processo de Bolonha” e preconceito corporativo

A esta discussão juntou-se mais recentemente a polémica aberta pela adopção da Declaração de Bolonha, cujo objectivo consiste em obter a uniformização e equivalência dos graus académicos nos países da União Europeia até 2010.

De acordo com esta Declaração, o grau de licenciatura é atribuído ao fim de três anos de formação universitária (um primeiro ciclo de seis semestres) e o de mestrado, ao fim de outros dois anos (um segundo ciclo de quatro semestres).

Esta opção tem sido, no entanto, fortemente contestada pelos representantes das ordens profissionais em Portugal. No ano passado, bastonários, presidentes e representantes das ordens dos médicos, dentistas, biólogos, engenheiros, arquitectos, economistas, advogados, veterinários e da Câmara dos Solicitadores promoveram uma reunião em que decidiram manifestar-se contra a proposta de Bolonha, considerando a impossibilidade de formar licenciados no período de três anos, com o mesmo grau de competência.

“É procurar igualizar algo que não é igualizável”, considera o bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando Santo. A uniformização e a obtenção de equivalências requer “referências semelhantes” entre os cursos, nota, observando que existe uma directiva aplicável aos cursos de arquitectura, medicina e farmácia, que têm os mesmos anos de formação, mas que o mesmo não é possível no caso dos vários cursos de engenharia.

Em comunicado conjunto, os representantes das várias ordens solicitavam a retirada da designação de licenciatura para a formação de três anos e que, em seu lugar, fossem adoptadas as designações de bacharelato e mestrado para os ciclos de formação anteriores ao doutoramento. E acrescentavam que uma formação de três anos levantaria “um sério problema em vários domínios científicos e profissionais, na perspectiva da qualidade dos actos e serviços e da segurança dos cidadãos.”

A adaptação dos princípios da Declaração de Bolonha ao caso concreto dos cursos de Direito ainda não se fez em Portugal, segundo o bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves. “Estamos longe de chegar a uma conclusão”, diz, notando que “as coisas não mudaram muito em lado nenhum” e que “tudo está ainda em negociação”, nomeadamente a possibilidade de se transferir para as universidades o que é feito na Ordem em matéria de formação e de estágios. Uma das hipóteses em reflexão é a de aceitar que nas actuais licenciaturas em Direito com duração de cinco anos passe a ser considerado que metade do estágio obrigatório fica realizado, tal como se verifica na Alemanha, na Itália ou em Inglaterra. Mas, segundo o bastonário da Ordem dos Advogados, “o debate acerca desta questão permanece em aberto e estamos ainda longe de chegar a uma conclusão.”

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Informação Complementar

ASSOCIAÇÕES CRIADAS PARA DEFENDER E DISCIPLINAR PROFISSIONAIS

A constituição de corporações profissionais em Portugal data da Idade Média, quando representantes de diversas profissões se juntaram em várias cidades do país, com vista à defesa dos seus interesses corporativos.

O mesmo se terá observado então em muitos outros países. Com o crescimento dos burgos europeus, surgiram as primeiras corporações de artesãos ou de ofício (guildas), refere João Gualberto de Oliveira em “ História dos Órgãos de Classe dos Advogados ”.

O início da produção em escala levou a uma maior preocupação relativamente à formação e à conduta ética e moral dos carpinteiros e ferreiros. As corporações constituídas por mestres e por aprendizes adquiriram então um papel de assinalável importância no plano institucional no que respeitava à moralização, num contexto de transição política e económica. “Estava lançada a semente histórica das entidades e organizações de classes modernas do período pós-industrial no mundo inteiro, tais como as conhecemos hoje”, salienta João Gualberto de Oliveira.

No século XIX, surgiram as primeiras associações de defesa dos trabalhadores e, ao abrigo da mesma legislação que as legalizou, constituíram-se também associações profissionais, segundo relata Diogo Freitas do Amaral na sua obra “ Curso de Direito Administrativo ”. As características desses organismos eram ainda bem diferentes das que existem na actualidade. Podia haver mais de uma associação para a mesma profissão, a inscrição e o pagamento de quotas eram livres e não estava prevista a aplicação de sanções aos sócios.

Uma das primeiras associações profissionais que surgiram em Portugal foi a Associação dos Engenheiros Civis, em 1868. Através de decreto régio é, pela primeira vez, reconhecido o mérito dos engenheiros. Em conta foi tomado o seu papel decisivo na reconstrução da Baixa Pombalina, após o terramoto de 1755.

Esta associação transforma-se em Ordem anos mais tarde, em 1936, quando o Estado entende delegar competências num organismo que regulamente e fiscalize a acção dos engenheiros, tendo em conta o interesse público e a segurança das populações.

Na generalidade dos países da Europa, grande parte destas associações só passou a ter verdadeiro poder durante a primeira metade do século XX. Muitas, cuja constituição fora inspirada em associações criadas de acordo com a ideologia fascista italiana, acabaram por entrar em crise com o fim da segunda grande guerra mundial e a vitória das democracias.

O caminho seguido pelas associações profissionais não foi o mesmo em todos os países. Em Portugal, bem como em Itália e na então Alemanha Federal, foram constituídas “associações de direito público” com poderes para disciplinar a sua classe profissional, estabelecer regras e aplicar sanções a quem as infringisse.

Depois da Revolução de 1974, em Portugal, com a dissolução da organização corporativa, foi levantada a dúvida sobre se as ordens profissionais deveriam continuar a existir, atendendo a que eram consideradas organizações de índole corporativa, segundo refere o advogado João Sena.

Do debate saiu vencedora a ideia favorável à manutenção das ordens, tendo em consideração a dificuldade do Estado em disciplinar determinadas profissões com métodos de trabalho e tradições já muito antigas, nota João Sena.

Tornava-se, no entanto, necessário estabelecer uma distinção clara e legal entre ordens profissionais e sindicatos e, nesse sentido, foram introduzidas alterações na Constituição, em 1982.

Assim, estabelecia-se que a legislação sobre as ordens, consideradas associações públicas, era da exclusividade da Assembleia da República. As associações sindicais eram de organização livre e exclusiva dos seus fundadores.

Segundo a lei, as associações públicas deveriam evitar a burocratização, aproximar os serviços das populações e assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva, obrigações a que não estariam sujeitas as associações sindicais.

A mesma legislação estabelecia ainda que as ordens deveriam ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas e não para as relacionadas com as dos sindicatos. Deveriam ainda caracterizar-se pela unicidade, obrigatoriedade de inscrição e pagamento de quotas, enquanto as organizações sindicais se regeriam pela liberdade de constituição.

Ficaram assim definidas legalmente as principais diferenças entre os dois tipos de organizações de profissionais.

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* Paula Torres de Carvalho

Licenciada em Sociologia. Jornalista do Público. Autora de “Histórias de desencantar: os afectos da inquietude”.

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