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Onde estou: | Janus 2006> Índice de artigos > Internacionalização da educação e da cultura > O ensino superior face a Bolonha > [ Ensino superior britânico: tradição e (r)evolução ] | |||
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A reconfiguração do ensino superior britânico Esta reconfiguração adquiriu dimensões verdadeiramente traumáticas naqueles países onde as instituições universitárias mantinham uma tradição quase milenar de defesa da bandeira, da independência e da autonomia, até se verem, de repente, obrigadas a abrir as suas pesadas portas e a deixar que avaliações vindas de fora ocupassem as suas ‘torres de marfim'. Foi, também, o caso do Reino Unido que, num período de tempo muito curto, passou por mudanças radicais nesse aspecto. Diferentemente de países como a França ou os Estados Unidos, onde o Estado e o mercado ocuparam, respectivamente, um papel importante na estrutura e organização do ensino superior, o modelo universitário britânico sempre se caracterizou por uma comunidade autónoma e autogovernada de scholars e seus aprendizes. De um sistema totalmente liberal – em rigor nem sequer era um “sistema universitário nacional”, pois cada universidade era, em si, um sistema – num processo de profundas e rápidas transformações do ensino superior inglês, cujo início remonta a 1985 e ao governo conservador de Margaret Thatcher, mas que se estende ao actual governo trabalhista de Tony Blair, em que mecanismos de controlo e de avaliação por parte de agências governamentais assumiram papéis centrais na determinação do rumo e da intensidade das mudanças, passou-se a um sistema unificado, a vigorar a partir de 1998, de avaliação ou de “garantia de qualidade” do ensino superior no Reino Unido, apertadamente controlado pelo Estado através da Quality Assurance Agency for Higher Education (QAAHE), a agência britânica responsável pela avaliação, que condiciona, em função dos resultados dessas avaliações, o financiamento da pesquisa e de parte do ensino realizados nas universidades. Estas transformações que atingiram o sector educativo visavam a superação dos estreitos limites de um modelo universitário elitista e a abertura às perspectivas de uma nova educação superior de massa, capaz de dar suporte ao desenvolvimento das tecnologias emergentes e de responder às solicitações de um mercado de mão-de-obra mais exigente, ao mesmo tempo que eram o resultado de novas concepções de política de financiamento e de controle dos gastos do sector público e de um novo conceito de gestão importado dos modelos produtivos do sector privado.
A ruptura do modelo tradicional: universidades e politécnicos Em 1961, havia apenas 26 universidades em todo o Reino Unido, com um total de 118 mil alunos. Era um sistema pequeno, elitista e perfeitamente auto-regulado, onde ninguém estava preocupado com “qualidade” e “ standards ”. O governo financiava o ensino superior através do Tesouro directamente para o Conselho de Financiamento das Universidades ( University Grants Committee – UGC), em montantes fixos por um período de quatro ou cinco anos, sem passar pelo Ministério da Educação ou sequer fiscalizar a sua utilização ou destino. As universidades gozavam de plena autonomia académica e os docentes da liberdade de ensinar o que e como queriam. A mudança, que significaria o fim do tradicional sistema universitário inglês, ocorreria em meados da década de 60 com o início da abertura desse sistema elitista e fechado através da criação de novas universidades e, em finais dos anos 60, também, de um grande número de institutos politécnicos. Como estes institutos não podiam conferir graus, foi criada, em 1964, uma agência para este fim, o Council for National Academic Awards – CNAA (Conselho para Graus Académicos Nacionais), que também aprovava currículos, supervisionava exames e conferia o título de professor aos docentes considerados merecedores de tal distinção. A partir de então, por mais de 25 anos, o ensino superior passou a ser composto por dois tipos de instituições: de um lado, as universidades, responsáveis pela sua própria actuação; do outro, os politécnicos, cujos padrões de qualidade eram definidos e controlados pelo CNAA e a qualidade do ensino controlada pelos “Inspectores de Sua Majestade”(HMIs). Essa organização com dois sistemas paralelos era conhecida como “ the binary line ” ou “ the binary devide ”. Os politécnicos introduziram inovações na estrutura dos cursos, abriram as portas do ensino superior a grande número de alunos e conseguiram operar a custos inferiores aos das universidades, tornando-se, nos anos 80, no governo Thatcher, na alternativa viável para um ensino superior que deveria aumentar o número de alunos, reduzir os custos e preparar mão-de-obra especializada de apoio às prioridades estratégicas nacionais. Tudo isso, mantendo um padrão de qualidade equivalente ao padrão universitário. A fórmula de oferta de cursos e de “garantia de qualidade” dos politécnicos passou a ser vista como um modelo que poderia ser adoptado por todo o ensino superior britânico, à luz de princípios verdadeiramente revolucionários, como a responsabilização e prestação de contas (“ accountable ”) de todos os docentes ao público – e não somente aos pares da academia, conforme a tradição de autonomia e de liberdade académica – pelo trabalho desenvolvido, e o fim da estabilidade dos docentes ( tenure ), decretada em 1988. O Conselho de Reitores das Universidades Britânicas (Committee of Vice-Chancellors and Principals of British Universities - CVCP), para contrariar essa ameaça, iniciou a implantação de um sistema de avaliação – a auditoria académica ( academic audit ) – que deveria certificar a validade das providências implementadas pelas universidades para garantir e melhorar a qualidade da oferta dos seus cursos e projectos de investigação, o qual entrou em funcionamento em 1990, através da “Unidade de Auditoria Académica” (Academic Audit Unit – AAU) que começou um programa de avaliação a todas as universidades.
A unificação do ensino superior A década de 90 traduziu-se numa profunda e turbulenta reestruturação do ensino superior, iniciada com a publicação, em 1991, pelo Departamento de Educação e Ciência, do documento “ Higher Education: a new framework ”. Em 1992, a lei Further and Higher Education Act , acabou com o sistema “binário” e permitiu que os politécnicos, se assim o quisessem, se transformassem em universidades – o que a grande maioria fez, sem, contudo, deixarem de continuar sujeitos aos mecanismos de controle a que estavam submetidos (CNAA e HMIs), agora exercidos pelos Conselhos de Financiamento do Ensino Superior (1) ( Higher Education Funding Councils - HEFCs) da Inglaterra, do País de Gales e da Escócia – que vieram substituir o Conselho de Financiamento das Universidades (University Funding Council - UFC), por sua vez sucedâneo do UGC dos tempos em que as universidades estavam livres do controle estatal. Nessa ocasião a Unidade de Auditoria Académica (AAU) transformou-se também no Conselho de Qualidade do Ensino Superior ( Higher Education Quality Council - HEQC), visando principalmente a “Auditoria de Qualidade” ( Quality Audit ) ao nível institucional e das áreas de conhecimento, mas que viria a ser extinto em 1997, sendo as suas funções transferidas para a nova agência de avaliação do ensino superior (Quality Assurance Agency - QAA) que passou a chamar as auditorias de “avaliação global da instituição” ( Institution Wide Review ), visando a implementação plena até 2003 de um novo e complexo sistema ( framework ) de garantia da qualidade do ensino superior. O sistema unificado de avaliação e acreditação externa (2) O sistema de “garantia de qualidade” ( quality assurance ) implementado pelo governo britânico, sem rival em termos de cobertura, sofisticação e rigor, submete as universidades britânicas, além dos seus próprios processos institucionais de avaliação interna, a quatro avaliações externas. Duas são conduzidas pela QAA, agência fundada em 1997 e com sede em Gloucester, com a missão de vigiar e de se responsabilizar pela qualidade do ensino superior: a “Avaliação Institucional” ( Institutional Review , nova designação para as “ academic quality audit ” ou “auditorias da qualidade” que estavam sob o controle da comunidade académica através do HEQC, vinculado ao CVCP Conselho dos Reitores) e a “Avaliação dos Cursos” ( Subject Review, que é a antiga avaliação da qualidade do ensino – Teaching Quality Assessment , iniciada em 1993, até então realizada por uma divisão – Quality Assessment Division – dos HEFCs, Conselhos de Financiamento do Ensino Superior, a quem estatutariamente competia a manutenção da qualidade académica nas instituições financeiramente deles dependentes). A terceira avaliação externa é a acreditação profissional ( professional accreditation of vocational and professional subjects ) levada a cabo pelas associações profissionais ( Professional and Statutory Bodies ), e a quarta é a da pesquisa ( Research Assessment Exercise - RAE), conduzida pelos próprios Conselhos Financiadores do Ensino Superior (HEFCs). Este novo sistema incorpora importantes propostas formuladas pelo Dearing Report (NCIHE, 1997), estudo encomendado pelo governo para fazer um diagnóstico da situação do ensino superior britânico e apresentar propostas sobre os desenvolvimentos necessários para os próximos 20 anos, visando garantir o nível de qualidade dos diplomas emitidos pelas instituições, a qualidade do produto dos programas, isto é, os diplomados, segundo padrões nacionais de referência da área de conhecimento ( national subject benchmark ), e pelas respectivas associações de acreditação profissional, garantir a qualidade das oportunidades de aprendizagem bem como, assegurar a produção de informação crucial para a tomada de decisões em matéria de financiamento pelas agências financiadoras (HEFCs).
O sistema de avaliação interna Em contraste com o modelo holandês ou francês, o inglês sempre foi caracterizado pela avaliação totalmente externa, concebida, implementada e utilizada pelo Estado e sem espaço e interesse para uma participação mais activa da academia. Contudo, o entendimento actual das agências governamentais é o de que tais avaliações são tanto mais eficazes quanto menos intrusivas, pelo que se procurou estimular o potencial crítico das universidades e integrar os seus sistemas de controlo de qualidade interna no processo de avaliação. A percepção pelas universidades e colleges britânicos de que a responsabilidade última pela qualidade dos cursos ( quality assurance ) e graus que conferem recai no desempenho dos seus docentes conduziu à implementação de vários mecanismos de avaliação, coordenados por uma comissão central ( Committee for Quality Affairs ) ou por subcomissões sectoriais e cujas decisões finais são submetidas ao senado académico ou a outra instância superior vinculada à reitoria. Incidem, entre outros, sobre a avaliação periódica dos cursos ( Course Review Cycle ), mais importante que a avaliação anual de cada curso, realizada em ciclos de cinco anos, e na avaliação, a cada dois anos, de todo o pessoal docente e técnico ( Staff Appraisal ) da responsabilidade dos Chefes de Departamento e da Comissão de Formação de Pessoal ( Staff Development Committee ), cumprindo as determinações impostas, desde 1998, pelos HEFCs a todas as universidades britânicas, visando desenvolver plenamente o potencial dos docentes, pesquisadores, técnicos e demais funcionários, por forma a que possam progredir nas suas carreiras e perspectivas profissionais.
Informação Complementar NÚMEROS E FACTOS DO ENSINO SUPERIOR BRITÂNICO Entre os anos 80 e 90 o país procedeu à reestruturação e reforma do sistema segundo os moldes que agora são exigidos pelo processo de Bolonha (desde o seu lançamento em 1999) pelo que possui a experiência e uma visão de fundo das implicações daquele processo. Actualmente existem 132 instituições de ensino superior na Inglaterra, 4 na Irlanda do Norte, 12 no País de Gales e 21 na Escócia (14 universidades, incluindo a Open University , 2 colégios das artes especializados, 1 colégio universitário, 2 colégios superiores, um conservatório e o colégio agrícola da Escócia). A única instituição financiada exclusivamente por fundos privados é a Universidade de Buckingham (em Inglaterra). Existem ainda várias instituições estrangeiras (universidades americanas), sujeitas à legislação britânica (1988 - Education Reform Act ; 1985 - Business Names Act ) mas financeiramente autónomas e que não conferem graus britânicos, utilizando contudo o ‘serviço de validação' da Universidade Aberta para garantir o nível das suas qualificações. O sistema britânico de graus baseia-se em 3 ciclos principais: Bachelors (3 a 4 anos), Masters (1 a 2 anos), Doctoral (3 anos e meio para o programa de estudos). Os graus tradicionais de doutoramento são o PhD ou DPhil que são concluídos após a apresentação de uma tese e a sua defesa pública em exame oral ( viva voce ), sendo os mais procurados, Engenharia (EngD), Gestão e Negócios (DBA), Educação (EdD), Psicologia Clínica e Medicina. Todas as instituições estão sujeitas a um código de conduta (QAA Code of Practice – Setembro de 2004) em matéria de gestão, padrões ( standards ) académicos e de qualidade dos programas pós-graduados de pesquisa.
VOZES CRÍTICAS DA AVALIAÇÃO A crítica ao modelo de avaliação do Reino Unido e ao novo framework proposto pela QAA em 1998 incide especialmente na constatação de que se alcançou um grau máximo de complexificação da máquina avaliativa governamental. Segundo Neave e Van Vught (1991), o Reino Unido é a personificação perfeita do que apelidaram de ‘Estado avaliativo'; uma característica dos Estados europeus autoritários que, para Guy Neave (1999), envolve o país numa avalanche de circulares ministeriais e de decretos que garantem coesão e observância, mas que também impõem um pesado fardo burocrático a gestores e administradores das universidades. O excesso de orientações, normas, rankings e exigências de relatórios conduziram, segundo Kogan ( apud . Williams 1997), à descrença na utilidade das instituições públicas e seus dirigentes, motivando ainda a acusação por Martin Trow, da Universidade de Berkeley, de que os novos rumos tomados pelo ensino superior britânico, com o conjunto de iniciativas e medidas avaliatórias, são expressão de um “ hard managerialism ”, que se substituiu à relação de confiança entre governo e universidades, atingindo-se, com o novo sistema, o limite de “falta de confiança” nos docentes e pesquisadores e um novo patamar de ingerência estatal no mundo académico (Trow, 1997). Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente e Investigador do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Editor do Janus. ALDERMAN, Geoffrey - Audit, Assessment and Academic Autonomy in Higher Education in the United Kingdom: An Institutional Perspective . London, 1999 (mimeo). CLARK, Burton - The Higher Education System. Academic Organization in Cross-National Perspective , 1983 NEAVE G & VUGTH F. - Prometheus Bound. The Changing Relationship between Government and Higher Education in Western Europe . Oxford: Pergamon Press, 1991. QAAHE - Subject Review Handbook . October 1998 to September 2000 (Reference No: QAA 1/97) Bristol: QAA, 1997. SPAGNOLO, Fernando - “Avaliação do Ensino Superior: Dez Lições da Inglaterra”. INFOCAPES: Boletim Informativo Vol. 8, Nº 1 Janeiro/Março 2000. Brasília-DF: MEC- Ministério da Educação, 2000. TROW, Martin – “Managerialism and the Academic Profession. The Case of England”. In: RODRIGUES, Paulo dos Santos et al . (Orgs.) A Universidade e a Pesquisa: o Público e o Privado . Rio de Janeiro: UFRJ / ICB, 1997 pp. 209-243. WILLIAMS, Ruth - Quality Assurance and Diversity. The Case of England. In: Brennan, J. et al. Standards and Quality in Higher Education . London: Jessica Kingsley Publishers, 1997 (pp. 104-118).
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