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Onde estou: | Janus 2006> Índice de artigos > Internacionalização da educação e da cultura > Tendências e políticas da cultura > [ A cultura à saída da modernidade ] | |||
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No pensamento alemão fez doutrina, juntamente com as concepções de Herder, Humboldt e Nietzsche, a proposta de Burckhardt: a cultura é uma das três “potências” da história, a par do Estado e da religião. Estado e religião são organizações estáveis que inscrevem, “com valor universal e de forma obrigatória”, e pelo menos para “um povo”, as “relações sociais” na sua história efectiva. A cultura, “fruto da actividade espontânea do espírito”, “sem valor universal nem obrigatório”, é, nas suas mil formas, “a crítica do primeiro e da segunda”, “o relógio que mostra a hora em que, num Estado ou numa religião, forma e substância já não se recobrem exactamente”. Nesta acepção, a cultura é, assim, uma “potência de inscrição” não-normativa e crítica. Para a antropologia, a noção de cultura é originalmente britânica, porque foi Tylor o primeiro a defini-la como “esse todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (1). Esta definição inscrevia a diferença entre o homem e o “animal” (herdada da distinção entre o que tem alma e o que a não tem) e tornava a cultura oposta à natureza: a cultura começava onde acabava a natureza (a natura naturans , autopoiética). E, como salientou Lévi-Strauss, o homem em referência era sobretudo o faber dos latinos, o tool-maker dos anglo-saxónicos. Quer dizer: “Costumes, crenças e instituições apareciam como técnicas entre outras, de natureza mais propriamente intelectual” (2). Ao propor as crenças como objecto da antropologia, esta acepção integrou a religião na cultura, separando-se das três potências de Burckhardt. Em alemão, kultur foi longamente sinónimo de civilisation . E uma civilização é “um conjunto complexo de fenómenos sociais, de natureza transmissível, apresentando um carácter religioso, moral, estético, técnico ou científico, comum a todas as partes de uma vasta sociedade, ou a diversas sociedades relacionadas” (3). A filosofia das Luzes opôs à tradição alemã (herdada da reivindicação nacional de Lutero) a ideia de uma cultura intelectual de vocação universal. Mas só com o relativismo dos culturalistas americanos (4), quase a meio do séc. XX, se ultrapassou a antiga hierarquização evolucionista das culturas: o relativismo rompeu com os etnocentrismos e abriu a era epistemológica do respeito pelo “outro” e pelo “diferente”.
O salto culturalista Isto significa que a antropologia deixou de conhecer grupos humanos “incultos”, ou seja, passou a postular a priori a existência de um fenómeno cultural presente — quer falemos da cultura americana, jacobina, pequeno-burguesa, proletária, dos arapesh ou dos mundugumor — sob condição de sermos capazes de descrever o seu funcionamento como sistema e estrutura. Quer dizer, a cultura passou a ser interrogada sobre a sua sistematicidade e estrutura. Deixou de bastar a enumeração das práticas simbólicas e técnicas, passando a ser necessária compreendê-la e descrevê-la como um todo expressivo. Kardiner e Linton, entre outros, tentaram explicar como determinada cultura produz sentido enquanto totalidade. Mas antes da passagem ao “sistema” e à “estrutura”, o culturalismo estabeleceu uma relação coerente entre antropologia e psicanálise na abordagem dos fenómenos sociais e definiu a cultura como totalidade das atitudes, ideias e comportamentos partilhados, em obediência a padrões ou modelos ( patterns), pelos membros de determinada sociedade, a que se somam os resultados materiais desses comportamentos — os objectos manufacturados. Mostrou que as instâncias psíquica e institucional são duas faces da mesma moeda, e a sua influência veio até autores como Éric Fromm e Herbert Marcuse, e até aos estudos sobre a modernidade e a mudança social. Os culturalistas tinham começado por operar outra inscrição decisiva: o todo que a palavra cultura designa incluía obras materiais (património construído e objectos manufacturados) e já não apenas intelectuais (património simbólico globalmente considerado). Os Estados contemporâneos, obrigados a gerir também o universo da cultura, relacionam-se sobretudo com a sua definição material e patrimonial, que, como valor, deve ser mantida e rentabilizada. Depois, ocupam-se do acompanhamento das expressões mais efémeras da cultura (das artes cénicas ao cinema; em certos casos, chegaram a ser criadas bolsas de escrita para autores literários...). A estas definições de âmbito somam-se mil outras, poéticas e menos operativas: “A cultura é o que fica quando já se esqueceu tudo” (Herriot). E todas elas convivem na linguagem contemporânea, sobrepondo-se umas às outras sem contradição. Se os sentidos históricos da palavra cultura raramente foram disjuntivos e exclusivos (não obedecendo a uma lógica do tipo “ou vale,... ou...”), hoje são claramente cumulativos e copulativos (obedecendo a uma lógica do tipo “e... e...”). A noção de cultura tornou-se ao mesmo tempo um palimpsesto e um chão resultante de sucessivas sedimentações — incluindo a que a associa em primeiro lugar ao indivíduo. De facto, ainda hoje, no sentido popular e mais geral, cultura designa um certo conjunto de capacidades individuais adquiridas — “carácter da pessoa instruída, e que por essa instrução desenvolveu o seu gosto, sentido crítico e juízo”. Ou “a educação que tem por efeito a produção desse carácter” (5). Mas, mesmo neste sentido, o uso autónomo da palavra não remonta a antes do séc. XVIII: “estado de um espírito cultivado pela instrução” (6). Assim, o indivíduo culto é comparável a um campo laborado. A cultura é, então, o que determinada lavoura inscreveu na pessoa, intensiva ou extensivamente. E inclui a ideia de especialização: a cultura individual é musical, literária, científica depois de ser “geral”, do mesmo modo que a floricultura, a arboricultura, a horticultura são especializações a partir de um tronco comum. Kroeber e Kluckhohn (7) tentaram inventariar os usos da palavra cultura desde o séc. XVIII, e o seu recenseamento confirmou a convergência em direcção à hegemonia de dois sentidos sucessivos: o mais restrito define cultura como a organização simbólica de um grupo e sua transmissão, bem como o sistema de valores de auto-representação desse grupo face a outros; o mais alargado acrescenta a esta definição a descrição das ideias, gostos estéticos, crenças e costumes, bem como das técnicas expressas pela organização do ambiente total que o grupo gera — ou seja, a cultura material, o habitat, os utensílios e a tecnologia transmissível. Agalma, aura e sua perda Uma cultura, uma civilização, “brilham” e “irradiam”. A Atenas de Péricles e a Roma da pax romana e do direito, o califado andaluz e a Renascença italiana, “brilharam” e “irradiaram”. Encontramos esta ideia desde as Euménides de Ésquilo: a cidade, a polis , é cidadela dos deuses e agalma (maravilha) protectora dos altares das divindades gregas. A polis é garantia de perpetuação da comunidade em forma de artefacto artificial e triunfa diante da ameaça de dissolução. A ideia de agalma (8) abrange, na etiologia grega da forma valor, poderes mágicos, os poderes do dom (no sentido de Mauss) e os talismãs de soberania dotados de valor estético (9). E refere-se, por semelhança, a artefactos que passam a ser objectos de fascínio e que adquirirão valor monetário independentemente do seu valor de uso, eminentemente simbólico. Estamos muito próximos da “aura” de Benjamin (10), a capacidade que a obra de arte teve, em tempos, para se deixar interpelar por quem a olhava: “quando somos olhados, erguemos o olhar... também a obra de arte, quando olhada, levantava o olhar”. Os leitores de Benjamin associaram longamente a aura (e a sua perda, quando, segundo o autor, o capitalismo transformou a obra de arte em mercadoria) às artes plásticas, mas para ele a aura é extensiva à narração (11) e, por simpatia, à diversidade das formas “artísticas”. A perda da aura das coisas (e da agalma de Ésquilo) está também ligada à paz e à guerra, ou melhor: à experiência desumanizante da violência social. Em Ésquilo, a agalma da polis celebrava a experiência da integração, a experiência socializadora, a experiência da redução da violência. Em Benjamin, “a cotação da experiência não tem feito senão baixar” e é a própria consciência da experiência humana do mundo que está em queda, como ele regista a propósito do final da Grande Guerra (1914-18): “Não vimos nós, no armistício, que as pessoas voltavam mudas da frente? Não enriquecidas, mas empobrecidas em experiência comunicável? E como espantar-nos com isso? Nunca a experiência tinha sido tão brutalmente desmentida: a experiência estratégica pela guerra de posições, as materiais pela inflação, as morais pelos governantes”. Outra aura que se perde é a da experiência cultural e civilizacional, portanto. Paul Valéry escrevia, igualmente a propósito da Grande Guerra: “Nós, civilizações, sabemos agora que também somos mortais” (12). Não cabe aqui desenvolver veio de reflexão tão exigente e actual. Mas a ligação da ideia de civilização à de cultura — e a perda de ambas — em época de regresso do terror, do genocídio e de guerras preventivas, está de novo na primeira linha das nossas preocupações.
Dominação cultural Culturas e civilizações brilham, irradiam e dominam ou são dominadas . A dominação cultural é uma metáfora da dominação ideológica marxista, e entrou no vocabulário da antropologia pela mesma via que o vocabulário técnico do marxismo entrou nas ciências humanas do terceiro quartel do séc. XX: a investigação universitária. A ideia de dominação não implica que se atribua a determinados conteúdos culturais maior força intrínseca do que a outros. Implica, sim, que as relações entre conteúdos culturais exprimem as relações de força entre os grupos que os produzem e sustentam. Nas sociedades estruturadas pelo antagonismo de classe, e onde a luta pela supremacia na superestrutura ideológica é constante, uma cultura dominada é a cultura de um grupo que não consegue senão identificar-se com os conteúdos culturais produzidos pelo grupo que o domina, interiorizando-os como igualmente seus. A relação é do mesmo tipo que a existente entre colonizador e colonizado. A grelha de leitura mais simplista nascida deste enfoque tende a descrever a cultura popular como um subproduto e sucedâneo da cultura erudita, resultante da divulgação, da simplificação, do empobrecimento e do atraso. Uma segunda grelha, esta sim, marxista, descreve a sociedade dividida em classes como soma de lugares diferenciados de produção simbólica. Existiria, assim, uma cultura proletária , que se definiria pelos seus conteúdos mas também pela luta constante para retirar a hegemonia à cultura burguesa . Esta segunda grelha complicou-se, fazendo emergir subgrupos representativos de fracções derivadas da representação dicotómica básica. Por outro lado, a descrição dos mecanismos de dominação tentou explicar como a ideologia da classe dominante passa a ser, em grande parte, “tomada de empréstimo” pela classe dominada (13). Por outras palavras, a produção simbólica de um grupo dominado passa a ser apenas residual, sobrevivendo em fracas condições de comunicabilidade e de transmissibilidade — perde brilho e irradiação. Em termos marxistas, o grupo dominado vive em situação de alienação essencial, enquanto interiorizar como sua a cultura do grupo dominante. Para além do seu vocabulário parcialmente datado, a teoria da dominação cultural mantém a sua pertinência hoje, menos como capaz de dar conta das relações entre conteúdos culturais numa dada sociedade, do que na análise das relações internacionais “para-imperiais”. Por exemplo, a hegemonia cultural dos EUA tem sido inumeramente citada como factor decisivo no desfecho da prolongada “guerra fria”: “A dimensão cultural do confronto influenciou grandemente o seu desfecho. A coligação democrática [saída da Segunda Guerra Mundial] adoptou numerosos atributos do modo de vida americano (...). A Alemanha e o Japão recuperaram a saúde económica devido à admiração sem limites por tudo o que vinha dos EUA (...). Pelo contrário, a Rússia inspirou sobretudo, entre os seus vassalos da Europa Central mas também na China (...), desprezo. A sua dominação separou os países da Europa Central das suas raízes culturais e filosóficas (...), exigindo submissão a um povo [o russo] muitas vezes considerado como culturalmente inferior” (14).
Informação Complementar LEIS DA HOSPITALIDADE A experiência contemporânea da multiculturalidade, vivida pelos países mais desenvolvidos e suas periferias devido ao progresso contínuo das grandes migrações humanas, produziu, sobretudo nas grandes cidades dos países receptores, culturas de miscigenação e de fusão que exprimem, não só a “guerra dos sonhos” de que fala Marc Augé 15 , mas também a incorporação, nos nossos “sonhos”, dos “sonhos” de outros. A configuração fusionária destas culturas urbanas é porventura o traço mais marcante do seu “cosmopolitismo”, como de novo se diz. É a expressão local de um pensamento global, herdeiro da antiga ideia de “cosmopolitismo”, para quem cada cultura, cada agente cultural, é antes de mais, e para além dos seus particularismos, um cidadão do mundo. O tempo dirá se estamos diante de espuma dos dias, ou de metamorfoses dificilmente reversíveis. A multiculturalidade é hoje, não apenas um tema de primeiro plano para quem estuda as culturas, mas o terreno por excelência desse mesmo estudo — na medida em que ela é o interface , no mesmo território, de culturas entendidas como processos e em mutação mais ou menos acelerada, e onde subsiste a dominação de que falávamos atrás. No plano político, por exemplo, a multiculturalidade abriu a porta a experiências de “comunitarismo” em que os Estados receptores, sua identidade e autoridade, se deixam benevolamente enfraquecer a favor de autonomias étnico-religiosas cada vez mais autocráticas. A querela francesa do chador e a substituição da justiça britânica pela charia em alguns quarteirões londrinos são exemplos dessa nova tensão. Em parte, não aplicámos um princípio caro à UNESCO: “Ninguém poderá invocar a diversidade cultural para atentar contra os direitos do homem garantidos pelo direito internacional” (16). Passados os excessos do culturalismo, ainda marcado pela urgência de descrever sociedades e culturas em vias de desaparecimento devido ao fim do seu isolamento, e pelo anti-racismo (17), o estudo da diversidade das culturas e dos seus modos de relacionamento ganha importância progressiva nos nossos dias. Em termos que nos obrigam, igualmente, a pensar as leis da hospitalidade, para evocarmos um belo título de Pierre Klossowski, já datado de 1966. Ali, ele interrogava-se sobre as condições de sobrevivência do hospedeiro que se torna íntimo dos seus hóspedes. E escolhia para epígrafe do livro a seguinte passagem de Lucas (III, 8, 18): “Tende cuidado com o que ouvis: porque ao que tem será dado, mas ao que não tem roubar-se-á até o que ele julga ter”.1 E. B. Tylor, Primitive Culture , Londres 1871. 2 C. Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale , Paris, 1958. 3 Sobre este sentido de “civilização”, M. Mauss, Les civilisations, éléments et formes , in Publications du Centre International de Synthèse, fasc II, Paris 1930. 4 Ruth Benedict, Margareth Mead, Ralph Linton e o psicanalista Abram Kardiner. 5 Cultura, Lalande. 6 Vauvenargues, ed. De Fortia, Paris 1797. 7 Culture, a Critical Review of Concepts and Definitions , N.Y. 1952. 8 L. Gernet, Anthropologie de la Grèce antique , Maspero 1968. 9 Pierre Kaufmann, Culture et Civilisation , Universalis 1989. 10 W. Benjamin, A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica , 1936. 11 Carta a Adorno, Junho de 1936. 12 Citado por Alain Touraine em Société de risque et développement durable , 1997. 13 Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugement , 1979 e La Reproduction. Eléments pour une théorie du système d'enseignement , com Jean-Claude Passeron, 1970. 14 Z. Brzezinski, The Grand Chessboard , 1997. 15 M. Augé, La guerre des rêves , 1997. 16 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, UNESCO, art. 4. 17 M. Augé e J.-P. Colleyn, L'Anthropologie , Paris, 2004. * João Maria Mendes Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na UAL. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Responsável pelo Projecto Janus Online.
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