Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa | ||||
Onde estou: | Janus 2006> Índice de artigos > Internacionalização da educação e da cultura > Tendências e políticas da cultura > [ Multiculturalidade em zona problemática: a Cova da Moura ] | |||
|
O balanço contrastado da vida no bairro põe em evidência o forte desejo de reconhecimento, por parte de residentes que são igualmente activistas da sua defesa, do que nele existe de positivo. E os três traços positivos que nele sobressaem são a defesa de uma história identitária forte, a limitada – mas real – possibilidade de requalificação urbana, e o pedido de respeito alheio pelo que, ali, é nicho de multiculturalidade confirmada. Fracos argumentos, para um sistema dos media onde “só as más notícias são notícia”.
Identificação A Cova da Moura fica administrativamente situada nas freguesias da Buraca e Damaia do concelho da Amadora e tornou-se atractiva para os seus primeiros habitantes pela localização privilegiada. Hoje está entre as estações de comboios de Santa Cruz de Benfica e da Damaia, com ligações rápidas para Lisboa, linha de Sintra e abundância de autocarros. Estimam-se em 7.000 os residentes actuais deste bairro multicultural e autoconstruído. 60% dos habitantes são de origem africana, 50% deles situam-se na faixa etária abaixo dos 20 anos, mas surgem os primeiros sinais de envelhecimento relativos aos habitantes primordiais do bairro. O nível de escolaridade subiu em média (a taxa de analfabetismo está nos 10%) e há cada vez mais jovens a prosseguir graus de ensino para lá do obrigatório, chegando uma minoria à formação universitária. O espaço físico tornou-se uma malha complexa mas profundamente vivida, com pontos estratégicos de sociabilidade com história. A profusão de cafés, mercearias, oficinas e cabeleireiros (mais de 20, uma das «marcas» do bairro), entre outras actividades, fazem dele um caso próximo da «auto-sustentação em serviços de proximidade» (1). Vai-se de propósito à Cova da Moura para almoçar num dos seus restaurantes africanos ou para fazer um penteado especial. Em 2005, um grupo de animadores promoveu visitas ao bairro para combater a má imagem que os media dele dão (programa Sabura). Na sua vida quotidiana, a âncora familiar continua a ser forte e o bairro é um enquadramento vital para uma maioria desfavorecida e ilegal, com as suas redes de solidariedade hospitaleira e uma quantidade invulgar de pessoas empenhadas no associativismo, como no incontornável “Moinho da Juventude”, que se desdobra em actividades para crianças, jovens e adultos, o Clube Desportivo, a igreja da Buraca, entre outros. É maioritariamente um bairro de gente de trabalho, de sol a sol, que sai cedo e chega tarde. Recentemente, assiste-se à instalação de cidadãos brasileiros e provenientes do Leste europeu.
História do bairro A Cova da Moura é um bairro peculiar. A sua história e desenvolvimento idiossincrático fazem-no diferente de tantos outros bairros degradados das periferias urbanas. As suas primeiras construções, em madeira, surgem na década de 60 e eram sobretudo barracas de apoio a pequenas hortas de habitantes dos bairros vizinhos e de antigos trabalhadores agrícolas da Quinta do Outeiro, entretanto desactivada. A ocupação começa por distribuir-se em dois núcleos, um junto à referida quinta e outro próximo de uma pedreira abandonada, junto à actual Avenida da República, o que vai resultar na configuração toponímica da Cova da Moura, muito mais colina do que cova. Segundo dados municipais (2), em 1974 viviam ali 360 pessoas. É com a descolonização que verdadeiramente começa o povoamento em larga escala. Os chamados «retornados», em grande parte instalados pelo IARN em condições precárias, acorrem à zona pela localização e disponibilidade do terreno, que era barato e estava desocupado. Esta era uma gente dinâmica e disposta a lutar pela vida, mesmo que a partir do zero. A 12 de Novembro de 1978 surge a primeira comissão de moradores “constituída essencialmente por retornados, sobretudo os provenientes de Angola, – que começa por reivindicar e conseguir – as primeiras infra-estruturas básicas. Em 1977 dá-se a instalação de electricidade, primeiro a título precário e ainda a cargo da Câmara Municipal de Oeiras (a da Amadora só nasce em 1979). Nesta data procede-se à colocação de água e esgotos e asfaltam-se algumas ruas, obedecendo a um plano da comissão. De acordo com o estudo acima citado, “as sucessivas comissões de moradores desempenharam um importante papel na gestão dos terrenos e no controlo da dinâmica construtiva do bairro (...). Eram chamados a intervir como mediadores em todo o tipo de conflitos entre vizinhos, evitando assim o agravamento das condições de habitabilidade”. Dois “quarteirões” Durante a década de 80, além de trabalhadores portugueses de vários pontos do país que procuravam trabalho em Lisboa, afluíram em grande número imigrantes de origem africana, sobretudo de Cabo Verde, vindos para Portugal em busca de trabalho e melhores condições de vida. Na década de 90, fugindo à guerra e à pobreza, arribaram gentes de Angola, Guiné e S. Tomé e Príncipe. Segundo o último estudo exaustivo sobre a população e parque habitacional da Cova da Moura (3), o bairro tinha em 1990 uma população de 3.746 residentes, heterogénea (africana e nacional), essencialmente jovem (56% com menos de 25 anos), activa, repartida maioritariamente entre os sectores secundário (homens, 76,4% na construção civil) e terciário (mulheres, empregadas domésticas 35,9%, e função pública, 14,6%), com um grau de escolarização baixo (69,4% com instrução primária e uma taxa de analfabetismo de 22,1%). A tipologia de família predominante era a nuclear (casais com filhos 48,4%). As condições de habitabilidade diferiam entre os dois aglomerados predominantes, conhecidos como o «quarteirão europeu» e o «quarteirão africano». O primeiro apresentava casas bem estruturadas, de dimensões muito razoáveis que respeitam o alinhamento das ruas.
“Djunta Môn” Nos últimos anos, a pressão demográfica e o desmantelamento do Casal Ventoso agravaram os problemas já existentes de criminalidade juvenil (com casos de passagem da pequena delinquência para a grande delinquência), abandono escolar (a Amadora é o concelho com a taxa recorde do país), toxicodependência e tráfico de droga. Mas, ao contrário de outros bairros “africanos” nas franjas de Lisboa, como o Estrela de África e o 6 de Maio, Santa Filomena ou a Quinta do Lage, onde ainda estão por alojar 2.000 agregados familiares ao abrigo do PER (Plano Especial de Realojamento), a Cova da Moura não se deixa ir abaixo. Não está abrangida pelo PER... nem quer estar. No workshop promovido a 10 de Junho de 2005 pelo “Moinho”, intitulado “A Requalificação da Cova da Moura é Possível se a Gente Quiser”, os arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Helena Roseta ou Isabel Guerra, professora de sociologia urbana no ISCTE, deram lastro ao título. Ali se falou do evidente fracasso do modelo de realojamento massivo seguido em Portugal desde os anos 90, como o gritante caso da Bela Vista, em Setúbal. O PER surgiu como um pacote para acabar com as barracas, com boas intenções mas – tão infeliz recorrência entre nós – com um atraso conceptual demolidor. Construíram-se enormes aglomerados de realojamento, quando na Europa já se estavam a demolir as torres dos anos 60 e 70. Criaram-se do nada monstros homogéneos que não potenciam a mobilidade social, não dinamizam a actividade económica local e não favorecem a criação de emprego. No workshop citado, defendeu-se que é possível e desejável, a nível urbanístico e arquitectónico, quebrar o isolamento do bairro e abri-lo à cidade. Partindo dos moradores como pedra-chave para o processo, dadas as fortíssimas relações de associativismo, solidariedade e vizinhança que ali existem, sublinhou-se. A bastonária da Ordem dos Arquitectos recordou que, de resto, já existem projectos para requalificar as periferias das cidades, como o PROQUAL (Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa). Alunos da Faculdade de Arquitectura apresentaram cinco projectos com este objectivo. O que, por junto, significa que a Câmara da Amadora tem em mãos uma oportunidade de ouro de fazer história a nível nacional. Assim observe o lema crioulo que foi o alicerce da construção da Cova da Moura – o “ Djunta Môn ” (juntar as mãos) – e tenha vontade política de o fazer. Recuperar o bairro em vez de o arrasar, acabar com um gueto e melhorar a qualidade de vida dos residentes e vizinhos, poderá ser um gesto a favor de um autêntico multiculturalismo contemporâneo.
Gente de Leeds A multiculturalidade é um dado irreversível das antigas metrópoles coloniais, e não deixará de se acentuar, dadas as tendências pesadas das migrações que vão continuar a visar a Europa como zona de destino. Mas o multiculturalismo, ou seja, as políticas que apliquem o articulado do respeito pela diversidade cultural como património chave para a manutenção da coesão e da paz social – e que estão na base do projecto europeu – sofreu um duro revés com os atentados de 2005 nas redes de transportes públicos de Londres. As primeiras abordagens compreensivas dos jovens islâmicos de Leeds actualizaram o que já se sabia sobre os jovens árabes das periferias parisienses ou de Marselha, e o problema das segundas e terceiras gerações de imigrantes gelou a Europa: aqueles terroristas eram cidadãos britânicos, aqueles islamistas queriam nas mesquitas oradores que lhes falem em inglês. Percebeu-se que o desafio multicultural deixou de ser apenas uma questão macrossocial de relações intercivilizacionais, para passar a ser algo de enorme relevância ao nível intrassocial, micro, o das cidades e dos bairros. A polémica iniciativa francesa que ficou conhecida como “a lei do véu islâmico” dá que pensar, e a Europa ainda não encontrou as melhores soluções. Sendo a Cova da Moura um bairro com alma, testemunha viva da nossa história recente em democracia, com a sua mistura de proveniências e pertenças múltiplas que têm sabido enriquecer-se contra ventos e marés, fazer da sua recuperação uma meta pode ser um desafio exemplar. A história tem demonstrado que a estratégia da borracha de apagar não resiste aos anos e os tempos estão de feição a repensar os problemas da imigração. Fácil não será, mas está longe de ser impossível.
Informação Complementar O MOINHO DA JUVENTUDE, EXEMPLO DE CIDADANIA A Associação Cultural Moinho da Juventude acompanhou nos últimos 20 anos a dinâmica do crescimento e consolidação do bairro. Nasceu de acções então espontâneas, que tentavam dar resposta às carências do bairro, valorizando as capacidades nele existentes, envolvendo na sua construção os grupos mais marginalizados: crianças, jovens e mulheres. A luta pelo saneamento básico, o apoio pela dignificação do trabalho doméstico, o apoio às crianças e jovens que cresciam sem equipamentos sociais, foi determinante na definição do projecto comunitário da associação. A cooperação permitiu a criação de Serviços de Proximidade, que se traduzem actualmente em 65 postos de trabalho, assegurando uma cornucópia de actividades. Marcos históricos • 1984 - Pré-Associação com acções espontâneas: luta pela instalação da rede de água e esgotos na Quinta do Outeiro; Organização de uma Biblioteca Juvenil; Organização das mulheres do serviço doméstico para melhorar as suas condições de vida.
AS "TRAVES MESTRAS" DO MOINHO DA JUVENTUDE 1. Interculturalidade: respeitar e valorizar a minha cultura e a cultura dos outros Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Mestre em Comunicação Educacional Multimédia pela Universidade Aberta. Doutoranda em Comunicação na Universidade Complutense de Madrid. Docente na UAL. Jornalista.
|
|
|||||||