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Janus 2006



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UE, ONU e promoção da paz

Luís Tomé *

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O relacionamento entre a União Europeia (UE) e as Nações Unidas (UN) no campo da promoção e manutenção da paz tem progredido enormemente nos últimos anos, mas numa ambivalência de situações: do lado da ONU, as novas exigências em matéria de peacekeeping colocam a organização nos limites operacionais e levam-na a procurar cada vez mais apoio entre os actores regionais, em particular a UE; do lado europeu, o desenvolvimento da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) e a ênfase na sua autonomia tem levado a União a equacionar o seu envolvimento nas operações da ONU. A convergência destes dois movimentos promoveu uma genuína aproximação interinstitucional. Todavia, este processo desenvolve-se por entre as diferenças de agenda, vocação ou membership respectivos das duas organizações. Em geral, é mais a União que fixa a agenda e define os termos de um relacionamento, caracterizado, essencialmente, pelo que a ONU quer e aquilo que a UE está disposta a oferecer.

As relações UE-ONU na promoção da paz são multifacetadas, pois resultam da junção de perspectivas de diferentes actores estatais em relação a uma actividade – operações de paz – complexa e multidimensional por natureza, com aproximações necessariamente distintas consoante o local onde se desenrole (Europa, África ou outro), por intermédio de que quadro (NU, organizações regionais, coligações) e com que propósito e nível de envolvimento (mandato, comando, força requerida, etc.). Em última análise, a ONU e a UE fazem aquilo que os seus membros entendem que se pode e deve fazer.

 

A ONU nos limites da capacidade operacional

A ONU e a UE estão, indubitavelmente, em situações distintas. Através do seu Conselho de Segurança, as Nações Unidas são o garante da legalidade e da legitimidade das operações de paz, e a única organização que pode autorizar o usa da força nas relações internacionais. Em termos operacionais a ONU é, de longe, a organização internacional com maior envolvimento em operações de paz, implicando mais civis e militares do que todas as organizações regionais e sub-regionais juntas. Além da crescente complexidade das missões, as exigências relacionadas com as actividades de promoção e manutenção da paz das Nações Unidas aumentaram, significativamente, nos últimos anos: de cerca de 30.000 militares e polícias destacados em 2000 passou-se para cerca de 70.000 ao serviço actualmente, nas 17 operações de paz no âmbito do UN Department for Peacekeeping Operations (UNDPK). Em 2004, foram movimentados 120.000 militares, 580.000 passageiros e cerca de meio milhão de toneladas de equipamento – tudo isto gerido por um departamento cuja ratio é de 1 membro de staff para cada 115 no terreno.

Ora, tal situação coloca nos limites a capacidade operacional das Nações Unidas e justifica que a organização procure constantemente formas de suprir os hiatos, reformando-se e solicitando aos Estados e às organizações regionais que lhe forneçam os meios necessários para uma promoção da paz mais robusta e complexa. Mas não é apenas de militares ou polícias que a ONU está carenciada: porventura, capacidades de resposta rápida, intelligence , unidades médicas ou logísticas estarão menos disponíveis do que contingentes militares. Daí que os responsáveis da ONU acolham de braços abertos a iniciativa da UE de reforçar a capacidade das Nações Unidas, directa ou indirectamente. Entretanto, reconhecem que as organizações regionais como a NATO ou a UE também se confrontam com desafios semelhantes na implementação operacional das suas próprias missões de paz, sejam elas sancionadas ou não pelas Nações Unidas – o que sugere a preocupação no seio da ONU de que a PESD se desenvolva em detrimento da aproximação inclusiva e das necessidades das Nações Unidas.

 

A ambiguidade da UE nas operações de paz da ONU

Face a esta situação, a União e os Estados--membros mostram que a moeda tem, de facto, duas faces: por um lado, são claros apoiantes do reforço das Nações Unidas e proclamam a centralidade da organização no conceito de “efectivo multilateralismo”; por outro, o forte empenho que a UE coloca na sua autonomia leva-a a um certo distanciamento das operações da ONU. Por exemplo, obter um mandato das Nações Unidas para as operações PESD parece não ser um requisito para a UE, bastando o consentimento do Estado visado e que sejam de natureza não coerciva ou civil. No continente europeu, exemplos disso são a operação policial da UE na Bósnia-Herzegovina (MPUE) e as operações Concórdia e Próxima na Macedónia, que não foram propriamente criadas por qualquer resolução do CSNU; as três operações civis na Geórgia (EUjust Themis), Kinshasa (Eupol Kinshasa) e Iraque (EUjust Lex) também o ilustram.

Outra característica do envolvimento da UE nas operações de paz da ONU é o enorme diferencial entre o seu contributo financeiro e a disponibilidade de meios civis e militares. Colectivamente, a contribuição financeira da UE representa 39% do orçamento de peacekeeping da ONU ( ver gráfico ); porém, em Abril de 2005, os Estados-membros da UE representavam apenas cerca de 6,5% das tropas, polícias e observadores ao serviço das Nações Unidas ( ver gráfico ), uma percentagem que diminui para 2,3% nas operações da ONU em África, continente onde as operações de paz são claramente mais necessárias.

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Por outro lado, os Estados-membros são grandes contribuintes para as operações de paz mandatadas pelas NU, mas muito mais modestos nas disponibilidades para as operações lideradas pela organização. Por razões diversas, os países europeus têm-se mostrado relutantes em participar nas operações lideradas pelas Nações Unidas, privilegiando as organizações regionais (UE e NATO) ou as coligações de Estados. Na realidade, o desenvolvimento da PESD e o lançamento de operações UE, desde 2003, parece ter como efeito a diminuição da participação dos Estados-membros nas operações de paz da ONU. A comparação entre a contribuição de polícias, militares e observadores europeus em Abril de 2002 (antes das operações UE) e Abril de 2005 (com operações UE em curso) mostra uma relação inversa de movimentos: uma diminuição nos totais UE25 de 6.271 para 4.321 envolvidos enquanto os contingentes totais da ONU aumentaram de 46.799 para 66.565! Ou seja, a percentagem do envolvimento da UE nas operações de paz das NU passou de 13,4 em 2002 para 6,5 em 2005. Inevitavelmente, Portugal acompanha esta tendência.

Também isso ajuda a explicar que a UE mostre muito mais empenho em levar outras organizações regionais a desenvolverem operações de paz (por exemplo, em África) do que em convencer os países europeus a disponibilizarem capacidades para operações directamente lideradas pela ONU em certas regiões. Tomemos como exemplo o caso africano. Seguindo o Plano de Acção PESD para África (Novembro de 2004), a UE tem tido um papel extraordinariamente relevante no fortalecimento das capacidades de manutenção de paz africanas, quer financiando componentes ou programas de operações de paz (através do Peace Facilty for Africa e dos programas DDR – Desmobilização, Desarmamento e Reintegração – e SSR – Security Sector Reform ) quer apoiando técnica e politicamente a União Africana (por exemplo, nos esforços de estabilização do Darfur-Sudão, missões AMIS I e II). A União aprovou ainda, em 2004, a criação de um fundo de 250 milhões de euros, designado por “Mecanismo de apoio à Paz”, com vista a apoiar a força de manutenção de paz da União Africana. É evidente que estas acções, de uma maneira geral, contribuem para reforçar a intervenção da ONU na promoção da paz, mas também é certo que demonstram um certo grau de flexibilidade e de autonomia da UE na relação com as Nações Unidas, e o empenho europeu para que, em África, sejam principalmente os africanos, não a UE ou os europeus através da ONU, a levar a cabo essas operações.

No centro da PESD está a autonomia na decisão e acção da União, o que torna mais complexa a subordinação à ONU. A ideia de que as capacidades dos Estados-membros possam ser parte de uma operação UE e, em simultâneo, colocadas sob o comando das Nações Unidas choca com a filosofia de autonomia da PESD.

Por outro lado, como já se referiu, a relativa ausência dos Estados europeus nas missões lideradas pela ONU é contrastante com a sua presença nas operações por ela mandatadas . Tal contribuição é, com efeito, bastante elevada, desde os Balcãs ao Afeganistão – mas com a NATO e a UE a assumirem o papel proeminente. Ora, isto coloca a questão de saber quais os canais mais efectivos para servir o grande objectivo da Carta das Nações Unidas de manter a paz e a segurança internacionais. Para os Estados europeus, parece evidente que o seu envolvimento nas operações de paz é complementar dos esforços das Nações Unidas, mas salvaguardando a autonomia das operações lideradas pela União, num quadro mais geral de relacionamento UE-ONU. Para as Nações Unidas, as contribuições nacionais ou regionais são encorajadas, mas não devem ser impeditivas de contribuições directas para as operações lideradas pela organização. Uma das grandes preocupações é que se desenvolvam operações a duas velocidades: umas lideradas pelas NU, relativamente pobres, mal equipadas e com pouco apoio político; e outras lideradas por Estados ou organizações regionais, como a NATO ou a UE, operacional, política e militarmente melhor equipadas e apoiadas. Outra preocupação incide sobre a balança entre a África – onde as necessidades de peacekeeping são maiores mas a apetência de envolvimento da UE é menor (procurando, inclusivamente, uma maior participação das organizações regionais africanas) – e outros locais que mais atenção têm merecido do Ocidente/Norte mas, eventualmente, com menos necessidade de actividades de peacekeeping . Dadas estas preocupações, poucas dúvidas restam de que África constitui um teste importante para a cooperação UE-ONU em matéria de promoção e manutenção da paz.

 

Modalidades de cooperação UE-ONU

O trabalho realizado na promoção da paz pela ONU e pela UE, combinado com a experiência adquirida em operações recentes, e ponderando as aspirações das duas organizações, permitem-nos elaborar uma série de cenários para a cooperação UE-ONU nas operações de paz:

Cenário 1) Contribuições nacionais dos Estados-membros, respondendo à solicitação da ONU, com a UE a coordenar estas contribuições nacionais;

Cenário 2) UE conduz uma operação sob mandato da ONU, subcontratada pela ONU ou por sua própria iniciativa a qual, uma vez implementada, não teria qualquer ligação à estrutura operacional das NU;

Cenário 3) Operação UE a preceder operação ONU – sendo necessário, a UE responde a uma emergência com o seu mecanismo de reacção rápida e os seus battle groups (eventualmente, por um período de tempo limitado), permitindo que as NU montem uma nova operação ou organizem a existente (provavelmente, por um prazo mais alargado);

Cenário 4) Operação UE substitui missão da ONU – tal como a MPUE sucedeu à International Police Task Force (IPTF) das Nações Unidas na Bósnia-Herzegovina;

Cenário 5) Operação UE implementada em simultâneo com operação ONU – a UE actua em coordenação com a ONU a partir da sua Força de Reacção Rápida, battle groups ou outras forças para auxiliar implementação ou reforçar operação ONU;

Cenário 6) Uma componente UE numa operação ONU – a aproximação modular, em que o contributo UE é colocado sob comando da ONU, tal como componentes de outros participantes.

 

Desafios e dilemas na cooperação UE-ONU para a promoção da paz

As Nações Unidas têm tentado envolver a União Europeia nas suas actividades de promoção e manutenção da paz, bem como na prevenção de conflitos e gestão de crises, advogando uma estreita parceria que não se confine a uma espécie de subcontratação ou um qualquer tipo de assistência, mas que implique também a contribuição directa da UE para operações lideradas pela ONU. Fazendo isto, as NU têm sempre insistido no princípio da complementaridade e não no da substituição. Por seu lado, a aproximação da UE também se baseia na complementaridade, mas reflecte outras preocupações: reconhecendo a necessidade de cooperar em diferentes níveis, favorece uma postura mais flexível, analisada caso a caso, em que a autonomia de decisão e de acção da União prevaleça, e sem garantias de que as necessidades da ONU serão cobertas. Neste contexto, bastante permanece por ser explorado no relacionamento UE-ONU para a promoção da paz. Muito depende das evoluções das reformas em curso nas duas organizações, mas a forma como a UE e a ONU encarem e desenvolvam as suas actividades em África pode revelar-se um teste decisivo.

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Informação Complementar

OPERAÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA, EM JUNHO DE 2005

Operações efectuadas

RJM/Concordia - Operação militar da UE na antiga República Jugoslava da Macedónia.
RDC/Artemis - Operação militar da UE na República Democrática do Congo.

Operações em curso

EUFOR - Althea - Operação militar da UE na Bósnia-Herzegovina.
Proxima - Missão de polícia da UE na antiga República Jugoslava da Macedónia.
Eujust Themis - Missão da UE para o Estado de direito na Geórgia.
MPUE - Missão de polícia da UE na Bósnia--Herzegovina.
EUPOL “Kinshasa” - Missão de polícia da União Europeia em Kinshasa (RD Congo).
Eujust Lex - Missão integrada da UE para o Estado de direito no Iraque.
EUSEC RD Congo - Missão da UE na República Democrática do Congo.

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* Luís Tomé

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL. Mestre em Estratégia pelo ISCSP. Doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra. Professor na UAL. Investigador e Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Principais contribuintes para o orçamento de Peacekeeping da ONU

Link em nova janela Participação da UE nas operações de paz na ONU

Link em nova janela Contribuições UE para operações de paz das Nações Unidas (comparativo Abril de 2002 - Abril de 2005)

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