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Portugal-Espanha: em busca da maturidade
Maria João Seabra *
Vinte anos passaram desde que Portugal e Espanha aderiram simultaneamente à então Comunidade Europeia. Hoje, é consensual considerar que a evolução da relação bilateral é precisamente uma das maiores consequências da adesão dos dois países. Após duas décadas de participação comum no processo de integração europeia, não só ambos os países sofreram profundas alterações internas como o relacionamento bilateral peninsular conheceu uma mudança radical. Na última década, sobretudo, há inúmeros sinais que apontam para a existência de uma nova dinâmica nas relações entre os dois países, visíveis não só no relacionamento institucional mas também nas relações entre as respectivas sociedades civis. Trata-se, no fundo, de um período em que é patente a existência de uma maior maturidade, e tranquilidade, nas relações luso-espanholas.
Os efeitos da integração
A integração regional é um fenómeno central da actual realidade que provoca alterações na organização do sistema internacional. Com objectivos mais ou menos ambiciosos, a integração é um factor marcante para a reorganização das relações entre os Estados, tanto em termos externos, nas relações com países terceiros, como em termos internos, nas relações entre os Estados membros. E se a integração é hoje, por vezes, considerada sobretudo como um processo económico e como uma resposta dos Estados à globalização, numa procura de inserção mais eficaz e efectiva no sistema internacional, importa não esquecer a variável interna ao processo e a sua dimensão política.
Muito mais do que um projecto económico, o que está na origem do processo de integração europeia é a vontade de criar uma estrutura política que possibilite a resolução pacífica dos conflitos e diferendos entre Estados, procurando afastar de vez da Europa o espectro da guerra. O exemplo da evolução da relação bilateral entre a França e a Alemanha é paradigmático: para além de sarar as feridas do passado, estes dois países desenvolveram um relacionamento bilateral que acabou por se transformar no próprio motor da União Europeia. O exemplo da evolução das relações bilaterais entre Portugal e Espanha segue o mesmo padrão. É através da integração europeia que se gera um novo quadro de relacionamento entre os dois países, permitindo não só o reforço da cooperação bilateral como o desenvolvimento de esforços concertados no seio da União Europeia.
Portugal e Espanha fizeram, em 1977, o pedido de adesão à Comunidade Europeia. Em ambos os casos, a opção pela integração na Europa comunitária teve como fundamento essencial a consolidação da democracia. O longo período de negociações foi marcado pela persistência de uma atitude de prudência recíproca, mais manifesta por parte de Portugal, não só pela tradicional desconfiança mas também pelo facto de ter tido que aguardar pelo desenrolar do processo espanhol para concretizar a adesão. Com o passar do tempo, porém, o desenrolar do processo de construção europeia tem vindo a tornar manifesta uma atitude de progressiva convergência. Sem que se possa considerar a opção pela Europa como uma acção concertada entre os dois países, esta veio a revelar-se decisiva para a melhoria das relações bilaterais e para uma progressiva convergência entre Portugal e Espanha, tanto em termos de actuação na Europa como em relação a outras zonas do mundo – basta recordar, por exemplo, a criação das Cimeiras Ibero-Americanas.
A integração regional, sobretudo quando tem objectivos políticos, cria um novo espaço político de relacionamento entre os países, que não se substitui às relações bilaterais. Por mais que o projecto de integração se desenvolva no sentido da supranacionalidade e de uma cada vez maior partilha de soberania entre os seus membros, resta sempre um espaço para a relação bilateral, que não se esbate mas, pelo contrário, se reforça. É este processo simultâneo de integração num quadro de relacionamento mais amplo e de reforço das relações bilaterais que permite a resolução pacífica dos diferendos e o desenvolvimento das relações entre os parceiros, esbatendo os bloqueios que dificultam as relações, tanto institucionais como mesmo entre os cidadãos.
A exigência democrática é um dos factores essenciais que permite à integração reforçar e desenvolver as relações bilaterais entre os países. Se bem que o Tratado de Roma não fizesse qualquer menção aos regimes políticos dos Estados membros, a realidade cristalizou a ideia de que somente democracias poderiam aspirar a pertencer à Comunidade Europeia. Esta exigência democrática implícita condicionou a adesão dos países com regimes autoritários do sul da Europa. Portugal, Espanha e Grécia apenas aderiram à Comunidade na sequência dos seus processos de transição democrática. O vínculo democrático ficou perfeitamente claro no caso dos dois países ibéricos: após um longo período de domínio de regimes autoritários, a opção pela integração europeia consagrava, no plano interno, a irreversibilidade do processo democrático e, no plano internacional, a inserção num espaço de democracia e de solidariedade. Aliás, a democracia é considerada um elemento vital para o próprio sucesso da integração. Por um lado, o normal funcionamento das instituições democráticas cria condições de estabilidade política mais propícia ao desenvolvimento da integração. Por outro lado, os Estados democráticos têm muito mais condições de desenvolver relações de parceria e entendimento entre si do que estados autoritários. Portugal e Espanha, apesar das semelhanças existentes entre os regimes autoritários, não desenvolveram entre si uma relação de parceria, nem mesmo de boa vizinhança. A ignorância mútua foi a principal característica das relações luso-espanholas durante o período franquistas e salazarista. Foi só com o início da transição democrática que as relações começaram a mudar, criando-se o potencial para um quadro de relacionamento ibérico que viria a ser alcançado com a integração europeia.
Multilateralização das relações bilaterais
A integração regional gera a multilateralização das relações entre os países, abrindo novas vias para a resolução de conflitos. Questões estritamente bilaterais até à participação num processo de integração regional passam a ser geridas e ou mediadas a nível intergovernamental ou supranacional, o que faz com que outras entidades, mais ou menos institucionalizadas, tenham um papel na resolução dos diferendos. Por um lado, a passagem de diversos temas para a agenda integracionista reduz o potencial de choque bilateral, uma vez que, por mais centrais que sejam os países envolvidos num eventual diferendo, os restantes membros ou as instituições comuns podem “amortecer” o choque. Por outro lado, a existência de instituições comuns pode servir de instrumento de pressão – no caso das relações luso-espanholas, no período posterior à adesão, a estratégia portuguesa ficou conhecida como «chegar a Madrid via Bruxelas», ou seja, incluir a relação luso-espanhola num quadro de solidariedade comunitária e afastá-la de um possível quadro de solidariedade (ou de conflito) peninsular.
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Interesses comuns
A integração regional cria interesses comuns entre países. Já não é apenas a prossecução estrita de interesses nacionais que está em causa, na medida em que estes são incorporados no interesse comum – a convergência de interesses tende assim a sobressair, passando os diferendos para segundo plano. A dinâmica de criação de interesses comuns resulta do facto de a integração regional não ser um jogo de soma zero – os ganhos de um dos parceiros não dependem necessariamente das perdas do outro. A procura de soluções comuns para problemas igualmente comuns potencia a cooperação, em detrimento do conflito.
A existência de interesses comuns não implica, no entanto, a criação de interesses únicos, nem evita a competição entre os Estados membros – aliás, mesmo dentro das entidades estatais nacionais há competição (nomeadamente por recursos) e diferendos entre regiões. Mas os interesses comuns enquadram o relacionamento entre as partes e fazem sobretudo com que a dinâmica da procura de soluções seja claramente superior à dinâmica conflitual. A percepção de que todos têm a perder com o fim ou com uma crise grave no processo de integração implica a concessão de cedências mútuas.
O interesse comum é mais do que a justaposição dos interesses individuais de cada Estado. A solidariedade entre os Estados membros faz com que os interesses específicos de cada Estado sejam progressivamente incorporados no interesse comum. Daí que, nomeadamente em termos de relações externas, por exemplo, a adesão à União Europeia implique o aumento das áreas de interesse dos Estados e, simultaneamente, cada alargamento da União implica que esta incorpore as prioridades dos novos membros (caso das relações com a América Latina, com a adesão de Portugal e de Espanha). A própria dinâmica da integração reforça o interesse comum, num constante processo de evolução e à medida que o processo evolui para novos temas reforça e alarga o interesse comum.
A construção da confiança ibérica
Na Península Ibérica, e sobretudo tendo em consideração o reduzido nível de contactos, sobretudo institucionais, entre os dois países, todos estes efeitos se foram sentindo de uma forma gradual. O desbloqueamento das relações bilaterais luso-espanholas, com a substituição da retórica pela procura real de entendimento, inicia-se de forma substantiva, em 1983, com a realização da primeira cimeira ibérica, que tem como protagonistas Mário Soares e Felipe González. A partir de 1986, ano da adesão, as cimeiras passam a realizar--se anualmente. A institucionalização das cimeiras é um dado importante, sobretudo na medida em que estabelece um espaço de diálogo para além da retórica, onde é possível encontrar soluções para problemas reais e criar dinâmicas novas de relacionamento.
A preocupação central de Portugal, durante os anos 80 e até meados dos anos 90, é a diferenciação em relação a Espanha: ou seja, trata-se sempre de afirmar a existência de duas entidades soberanas na Península – cuja manutenção é um objectivo prioritário. Mas, para lá da retórica, a participação comum, não só na União Europeia mas também na NATO, altera a relação tradicional com o país vizinho, já que passam a existir zonas de interesse comum no plano multilateral que justificam e requerem uma coabitação diferente. A estratégia portuguesa nesta altura ficou conhecida como «chegar a Madrid via Bruxelas», ou seja, incluir a relação luso-espanhola num quadro de solidariedade comunitária e afastá-la de um possível quadro de solidariedade peninsular. Se era imprescindível superar a tradicional frieza peninsular, tal não poderia significar ceder à Espanha em qualquer domínio e, nesse sentido, as relações deveriam desenvolver-se num quadro comunitário estrito. Mas a dinâmica da integração tende a contrariar as atitudes defensivas portuguesas e uma nova realidade peninsular começa a tomar forma.
A manutenção da reserva portuguesa face a Espanha era reforçada pelas diferentes percepções dos dois países face ao aprofundamento do processo europeu, mas essas diferenças não impediram, no entanto, o desenvolvimento da cooperação peninsular em áreas de interesse comum. Ambos são países do Sul, com um grau de desenvolvimento económico semelhante e muito inferior àquele em que se encontra a maioria dos Estados membros, necessitando por isso de fortes apoios comunitários. Ultrapassada a etapa do «chegar a Madrid via Bruxelas», Portugal apercebe-se de que tem vantagens em «chegar a Bruxelas com Madrid». Mas em termos mais globais, e até mesmo fora do quadro mais estrito do relacionamento inerente ao processo de integração europeia, tanto Lisboa como Madrid se apercebem da importância da própria dinâmica bilateral, cujo reforço é assim incorporado nas políticas de cada um dos países.
Esta alteração profunda no padrão peninsular vai concretizar-se no verdadeiro desbloqueio das relações bilaterais, sobretudo através da criação das condições para uma nova dinâmica de relações económicas, sociais e culturais, cujo desenvolvimento, a partir de meados dos anos 90, começa verdadeiramente a querer deixar para trás a distância do passado.
É assim que se assiste a uma verdadeira «explosão» das relações económicas entre os dois países, tanto em termos comerciais como de investimentos. Daí que, em 2005, o primeiro-ministro José Sócrates tenha afirmado que a sua prioridade de política externa era «Espanha, Espanha, Espanha», uma afirmação que, sendo fruto do contexto em que foi proferida, demonstra bem como mudou a forma como Portugal, e sobretudo os seus governantes, olham para o país vizinho.
A mesma dinâmica se encontra no domínio da integração física, com a criação de fáceis condições de circulação entre os dois países, nomeadamente através da rede de auto-estradas e da construção de pontes nos rios internacionais, e que será ainda mais evidente quando o TGV for finalmente uma realidade. Da energia à gestão dos recursos hídricos, do ambiente à concretização de projectos comuns nas zonas fronteiriças, o que se nota é o desenvolvimento de uma relação muito mais marcada pela «normalidade» e pela procura de afinidades e pontos de contacto.
Como se poderia imaginar, há vinte anos (mesmo há menos) que Portugal iria concluir um acordo para que grávidas e parturientes portuguesas fossem atendidas na maternidade de Badajoz – um exemplo absolutamente revelador deste novo relacionamento? E sobretudo, quem poderia imaginar que a concretização de tal acordo – mesmo com algumas, poucas, vozes dissonantes – seria pacífica e não provocaria uma verdadeira comoção na opinião pública?
É certo que o “fantasma espanhol” continua, apesar de todas as mudanças, a estar presente em Portugal. A “invasão económica espanhola” como substituto do domínio político que Madrid nunca teria conseguido alcançar sobre Lisboa continua a ser um slogan recorrente – e que se faz ouvir mais quando a situação económica portuguesa sofre algum percalço. Da mesma forma, permanecem igualmente os desejos de diferenciação em relação ao país vizinho, especialmente em questões internacionais: quando tropas portuguesas e espanholas coincidem na participação em missões internacionais, por exemplo, ouve-se sempre o argumento de que aquelas não devem ficar sob o comando espanhol (basta pensar no exemplo da participação na IFOR e na SFOR, na Bósinia-Herzegovina e, recentemente, na preparação da missão portuguesa no Líbano), para que não se corra o risco de “desaparecer” no contingente de Espanha.
Mas este tipo de argumentos, que provavelmente irão continuar ainda por algum tempo, não parecem ser suficientes para travar ou sequer questionar a dinâmica de desenvolvimento das relações luso-espanholas, tanto em termos institucionais como em termos da própria sociedade civil. Trata-se, afinal, da concretização daquele que deveria ser o padrão de relacionamento entre países vizinhos, sobretudo quando, como no caso português, Espanha é o único país com o qual existe uma fronteira terrestre. A enorme alteração que se deu, sobretudo na última década, é consistente e parece estar solidamente enraizada, caminhando, agora a passos bem mais largos, para a normalidade e a maturidade.
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Informação Complementar
Os pequenos indicadores das grandes mudanças
Um dos dados que certamente atesta o dinamismo das relações bilaterais entre Portugal e Espanha é a circulação de pessoas e o interesse que os nacionais de um dos países demonstram pelo seu vizinho. Nos últimos dez anos, é interessante constatar a entrada de médicos espanhóis em Portugal e a procura por parte de estudantes portugueses das universidades espanholas. Na verdade, exercem hoje a sua actividade em Portugal mais de 1800 médicos espanhóis, uma situação que, fruto de características específicas do mercado de trabalho espanhol, não deixa de ser um indicador das potencialidades da troca de profissionais entre os dois países. Aliás, a facilidade, e mesmo a hospitalidade, com que os médicos espanhóis são recebidos em Portugal atesta claramente a facilidade de contactos existente entre os portugueses e os espanhóis. Igualmente significativo é o número de estudantes portugueses que procuram as universidade espanholas, sobretudo para a frequência da licenciatura em medicina – cerca de 700. Sendo igualmente uma consequência das especificidades nacionais, não deixa por isso de ser um movimento que realça não só a fluidez das relações interpessoais mas também institucionais. Na mesma linha regista-se o forte crescimento dos alunos que escolhem o espanhol no ensino básico e secundário, cujo total, no ano lectivo de 2005-2006, superou os 9900. A juntar a estes indicadores, finalmente, é de salientar o forte peso que os turistas de cada um dos países representam no total de visitantes do país vizinho, um número que também conhece tendências de crescimento. Assim, e muito para além de querelas e desaguisados potenciais que possam ainda permanecer, o que sobressai é a relação entre os cidadãos dos dois países.
* Maria João Seabra
Licenciada em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Investigadora do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais desde 1991.
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