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Portugal e os Oceanos. O que mudou?
Tiago Pitta e Cunha *
Hoje, passados seis anos desde o início do século XXI, não será exagero afirmarmos que Portugal continua a ver-se a si próprio como um país marítimo. Uma nação com a sua história e cultura fortemente marcadas pela maritimidade das grandes descobertas, pela navegação transoceânica e pelo intercâmbio com outras regiões do mundo. Portugal, o país da pesca longínqua nas águas da Gronelândia, o país das comunidades piscatórias, dos marinheiros e da história trágico-marítima. No nosso imaginário continuamos a ser os descobridores, conquistadores, os pescadores ou simplesmente os emigrantes que partiram pelo mar em busca do desconhecido.
A matriz histórica
O mar sustentou Portugal desde a dinastia de Avis até à revolução de 1974. Neste largo espaço de tempo, ao longo de séculos, fizemos e desfizemos impérios, atirámo-nos ao mar e, cima de tudo, contámos sempre mais com o que estava lá longe, por detrás do mar, do que com aquilo que éramos ou tínhamos aqui. O mar era a nossa ancestral ambição e era a medida da nossa dimensão. Por isso mesmo, ao longo ainda de grande parte do século XX se acalentou como principal desígnio nacional a manutenção da soberania portuguesa sobre os territórios declarados ultramarinos. Na Primeira República, determinando-se a participação na I Guerra Mundial; e depois com ainda mais obsessão ao longo do Estado Novo que – contra os ventos e as marés da história – se empenhou na manutenção do “império”, elegendo a sua defesa, não apenas como um objectivo principal, mas como o seu derradeiro desígnio.
Neste contexto, o mar era naturalmente reconhecido como um instrumento estratégico nacional de fundamental importância: por ele se escoavam as matérias-primas e por ele chegavam os colonos e os soldados da metrópole. Por causa dele desenvolveu-se uma frota de marinha mercante com alguma dimensão; formaram-se comandantes; investiu-se na excelência da construção e reparação naval; licenciaram-se engenheiros navais; construíram-se portos e outras grandes obras públicas marítimas; e promoveu-se a pesca longínqua nas águas da Terra Nova. Portugal mantinha então um verdadeiro cluster do mar.
Com a instauração da democracia, nos anos 70, Portugal vira-se para a Europa e constitui seu desígnio político a integração na Comunidade Europeia. Com a descolonização, a marinha mercante perde relevo e inicia a sua inexorável e penosa decadência, a construção naval reduz-se drasticamente, perdem-se milhares de empregos, a geração de marítimos procura reciclar-se e a pesca longínqua vai perdendo espaço, encolhendo-se até à sua actual menor expressão.
Portugal deixa de ser uma nação marítima e passa do “orgulhosamente sós” ao “orgulhoso melhor aluno europeu”. É uma mudança que não contempla transigências com o tempo passado.
Se a marinha mercante – operando em regime de monopólio – e a construção naval perdem algum do seu sentido com a independência dos territórios ultramarinos, já a pesca longínqua – tal como era conduzida – vai, em larga medida, ficar condenada pela adopção, em 1982, da Convenção de Direito do Mar das Nações Unidas. Com esta convenção definem-se generosamente as áreas marítimas adjacentes aos Estados costeiros, incluindo o mar territorial, a zona económica exclusiva e a possibilidade eventual de delimitar a plataforma continental para além das duzentas milhas náuticas. Em consequência, Portugal perde o livre acesso aos bancos de pesca caídos na jurisdição da Noruega, do Canadá, da Mauritânia ou de Marrocos.
Ao contrário da Espanha, que obteve através dos acordos internacionais estabelecidos entre a Comissão Europeia e terceiros países – no quadro da Política Comum de Pescas Europeia – novas oportunidades de pesca, Portugal conformou-se com a nova ordem marítima internacional. Perdeu espaço de manobra; fez mal!
Portugal e o direito do mar
É que a Convenção do Direito do Mar das Nações Unidas veio oferecer a Portugal, agora mais do que nunca reduzido à condição de mero Estado costeiro, relevantes desafios e importantes oportunidades: uma área marítima sob jurisdição nacional que é mais de dezoito vezes a área terrestre do território nacional; que corresponde à maior área marítima da União Europeia; e que é – no que só por si é extremamente significativo – uma das maiores áreas marítimas do mundo!
Inacreditavelmente, o relevo e o alcance desta convenção internacional, naquilo que é verdadeiramente decisivo, ficou até à data por debater na arena política nacional. Muito por causa disto, até hoje, nem as oportunidades foram ainda aproveitadas, nem tão pouco os desafios foram claramente assumidos. Em larga medida, tais desafios nem sequer se chegam mesmo a colocar ou a existir para a sociedade portuguesa, em geral, e para os seus decisores políticos em particular.
Independentemente dessa omissão, as oportunidades que se nos deparam (1) são bem reais e nasceram com a concessão a Portugal pela Convenção de Direito do Mar da já mencionada imensa área marítima sob jurisdição nacional. Elas concretizam-se nos novos e múltiplos usos do mar, que tornados possíveis pelo considerável avanço tecnológico da última década, abrangem a exploração das riquezas naturais da nossa zona económica exclusiva, aí se incluindo a extracção de inertes e recursos minerais; a exploração dos recursos vivos e biológicos com aplicação na biotecnologia, nas industrias farmacêuticas, de bem-estar e de cosmética; a exploração de recursos energéticos, incluindo a energia renovável das ondas; bem como ainda a exploração do potencial dos transportes marítimos, do estudo e conhecimento do clima, do ambiente e de novas indústrias de produtos e serviços baseados na eco-inovação.
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Os anos 80 e 90
Num certo sentido, durante os anos 80, o desinteresse pelas questões do mar foi comum à generalidade dos países da comunidade internacional que, talvez cansados dos longos anos de discussão e negociação da Convenção de Direito do Mar, deixaram estas questões de fora da agenda internacional (2). Na ressaca da adopção em 1982 da Convenção e dados os receios postos por países como os Estados Unidos à valia ou bondade de largas partes desse texto internacional, como que se gerou uma sensação de fadiga relativamente à discussão do direito do mar e dos assuntos marítimos.
Na mesma década, enquanto a comunidade internacional reduzia a sua atenção sobre os assuntos do mar, Portugal preocupava-se basicamente com a sua economia. Primeiro, foram os anos da crise económica e da intervenção do Fundo Monetário Internacional, depois foram os anos do crescimento económico e da adesão à Comunidade Europeia. Face a esta conjuntura nacional e à letargia internacional que referimos, é compreensível e até aceitável que o mar tenha ficado de fora do “radar nacional”. Com a “mudança de agulha” para a Europa, ele deixou – aos olhos dos decisores políticos, e diga-se em abono da justiça, também dos agentes económicos, dos académicos e dos opinion makers do país – de fazer falta e, por isso, ficou de fora dos grandes planos estratégicos de desenvolvimento do país que, financiados pela Europa, então se desenharam.
Na década de 90, a nível internacional as coisas começaram a alterar-se e de novo o mar começa a reemergir na agenda da comunidade internacional. Neste plano, podemos destacar alguns factos principais que marcaram o ressurgimento dos assuntos do mar, os quais são: a famosa Cimeira Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento do Rio em 1992; o fim da guerra fria; a aceleração da globalização; e o fenómeno natural apelidado de el niño.
Todavia, na perspectiva em que todos eles concorreram para relançar a compreensão da importância do mar para o nosso planeta e para as sociedades do futuro, todos se conjugam e se relacionam.
A Cimeira do Rio (1992)
Foi um momento de extraordinária importância, uma vez que com ela nasce verdadeiramente o paradigma que orienta a governança mundial e que há-de dominar o século XXI: o paradigma do desenvolvimento sustentado. Com ele, vamos descobrir o extremo valor ambiental do mar para a sustentação do planeta e das actividades económicas que sobre ele incidem, as actividades marítimas. Simultaneamente, ao passarmos a dar mais valor à saúde do planeta que habitamos, necessariamente vamos passar a dar mais relevo ao mar que ocupa mais de dois terços da sua superfície, e que é determinante para o seu suporte. Como fonte de vida, de biodiversidade, de alimentação e enquanto regulador do clima e dos ciclos hidrológicos. Mais a mais, com a nova concepção tridimensional do desenvolvimento sustentado vamos compreender que a abordagem ao governo e gestão dos oceanos não pode continuar a ser uma abordagem puramente sectorial, mas precisa de ser uma abordagem integrada e holística do ecossistema no seu todo, bem como dos múltiplos usos que dele fazemos.
Com esta nova compreensão começa a desenhar-se nos anos 90 uma nova geração de políticas de gestão integrada do oceano. Num primeiro momento, para a concepção de tais políticas, foram pioneiros os australianos e os canadianos, ainda no final dos anos 90. Esta nova visão foi depois, de certo modo, introduzida na Europa por Portugal, já no início deste século com o trabalho da Comissão Estratégica dos Oceanos, e está agora a ser debatida por Bruxelas, no âmbito do Livro Verde sobre uma Futura Politica Marítima Europeia.
Para além disso, pouco tempo passado sobre o surgimento da visão integrada da Cimeira do Rio entra finalmente em vigor a Convenção de Direito do Mar e com ela os Estados costeiros começam a abrir os olhos para o potencial da exploração das suas zonas económicas exclusivas, inclusive começando a delimitar as respectivas plataformas continentais (3).
Da Guerra Fria à globalização
Com o fim da Guerra Fria o mar perde relevo como zona de interesses geoestratégicos e de defesa, mas ganha como área de exploração de recursos económicos, e como campo para a investigação científica e para o desenvolvimento do conhecimento. Estas novas possibilidades vão ser potenciadas também pela “libertação” para a sociedade científica civil de alta tecnologia de exploração sub-aquática desenvolvida militarmente durante a acumulação dos arsenais da Guerra Fria e que vão permitir dar um considerável salto na área das tecnologias marítimas, durante a década de 90.
Outra consequência reconhecida do final da Guerra Fria é a aceleração do fenómeno que hoje entendemos por globalização. Com ele tem-se vindo a assistir a um grande desenvolvimento do comércio internacional e logo do transporte marítimo, da logística e dos portos que asseguram mais de 80 por cento desse comércio. Este facto, só por si, tem trazido grande dinamismo à economia do mar que assenta nos sectores marítimos ditos tradicionais do transporte, dos portos, dos serviços marítimos e da construção e reparação naval. Ao longo da década passada estes sectores começaram a organizar-se em vários países europeus, através dos designados clusters marítimos, facto que veio potenciar sinergias e reduzir muitos dos custos de operação dessas indústrias nos países que desenvolveram esta abordagem às actividades marítimas.
Ou seja, a Cimeira do Rio trouxe uma nova perspectiva do mar – mais abrangente e integrada – e formulou uma nova visão para a sua gestão e governo, que só agora começamos a interiorizar e, logo, a poder dar os primeiros passos para a implementar. A esta visão, que destaca a importância crítica do ambiente marinho e dos seus ecossistemas, veio juntar-se o surto de desenvolvimento científico e tecnológico da exploração submarina promovido pelo fim da Guerra Fria e ainda o fomento da exploração económica do mar, quer pela aplicação industrial dos novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, quer pela aceleração da globalização, do comércio internacional e, logo, pelo dinamismo criado na complexa rede logística que constitui o transporte marítimo e as operações portuárias.
Alterações climáticas
Finalmente, com o fenómeno do el niño generalizou-se a compreensão de que existe um “clima dito oceânico” o qual é determinante para as condições do clima atmosférico. O oceano passa a ser uma porta de acesso a novas fronteiras do conhecimento e torna-se um factor incisivo no estudo do clima e das alterações climáticas, temas que com o desenvolvimento sustentado irão, sem dúvida, dominar uma larga parte da agenda deste século XXI.
Em Portugal a realização da Expo 98 abriu, pela sua abordagem aos oceanos, um capítulo inteiramente novo na história já velha da nossa relação com o mar, agora menos marcada pelo passado dos navegadores e das conquistas, mas mais virada para o futuro. Para a ciência, o conhecimento, a tecnologia, a inovação e para a preservação ambiental.
A Comissão Estratégica dos Oceanos, criada em 2003, veio reflectir sobre as mudanças ocorridas no mundo e em Portugal e defendeu ser crítico ressuscitar na consciência colectiva a importância estratégica dos oceanos para o país. Com esta acção e com o contributo de outras iniciativas com o mesmo fim abriu-se lenta, espaçadamente, mas de forma inexorável o debate que vai recolocar o país no caminho do seu destino: o de uma nação marítima da Europa. Um país projectado sobre o oceano, formado por uma estreita faixa costeira da orla da Península Ibérica, pelas suas ilhas atlânticas e por muito mar a ligá-las entre si.
Uma visão europeia da matriz histórica
Este debate faz-se sentir no actual governo com a sua Secretaria de Estado dos Assuntos do Mar, e com uma equipa de missão encarregue de prosseguir o compromisso de Portugal com o mar. Ele faz-se igualmente sentir nas primeiras palavras do Presidente da República ao assinalar o relevo do mar no seu discurso inaugural, e faz-se sentir cada vez mais na sociedade civil, na curiosidade dos agentes económicos e no conhecimento dos cientistas.
Na Europa, em Bruxelas, estamos a trabalhar hoje com o mesmo objectivo: compreender a importância da dimensão marítima da Europa e projectá-la através da Estratégia de Lisboa no crescimento económico e na criação de emprego nas indústrias marítimas, bem como na qualidade de vida das regiões costeiras da Europa.
O Livro Verde sobre uma “Futura Política Marítima para a União: uma Visão Europeia dos Oceanos e dos Mares”, tornado público no início de Junho de 2006, é um sinal claro do compromisso histórico a que a Comissão Europeia decidiu obrigar-se.
É um sinal de estímulo para os Estados costeiros e para despertar Portugal. É um aviso de que outras nações marítimas da Europa já começaram a corrida às oportunidades que a nova política marítima europeia vai proporcionar. Neste cenário, Portugal tem de se posicionar. Não pode ficar de fora! Cabe-nos a todos compreender e contribuir para isso.
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1 - Vide Relatório da Comissão Estratégica dos Oceanos, intitulado: ”O Oceano, um Desígnio Nacional para o Século XXI”, editado pela Presidência do Conselho de Ministros em 2004, em que se analisam as oportunidades, o potencial e os desafios a enfrentar em nove diferentes sectores marítimos, preconizando-se duzentas e cinquenta medidas para o desenvolvimento da dimensão marítima nacional.
2 - Na verdade, a convenção começou a ser tecida em 1972 com a III Conferência sobre Direito do Mar, a qual fora já antecedida por duas outras conferências similares, mas menos bem sucedidas. A este período adicione-se os longos dez anos de negociação que demoraram a conseguir a adopção da convenção, e ainda os doze anos subsequentes até 1994, data em que a mesma entrou finalmente em vigor, para compreender a extrema complexidade do processo negocial e diplomático que está na génese deste instrumento internacional e, logo, a fadiga ou até mesmo “alergia” da agenda internacional relativamente aos temas do mar que durante os anos 80 se fez sentir.
3 - A constituição em Portugal de uma equipa de missão encarregue de executar o levantamento da delimitação da plataforma continental é uma medida que, embora tomada tardiamente (2004), dado o prazo concedido pelo direito internacional para a sua implementação, se destaca e se aplaude.
* Tiago Pitta e Cunha
Licenciado em Direito. LL.M. em Direito Europeu e Internacional. Ex-coordenador da Comissão Estratégica dos Oceanos e actualmente membro do Gabinete do Comissário Europeu das Pescas e dos Assuntos Marítimos, responsável pela política marítima europeia.
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