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Uma década de política externa (1995–2005)
Francisco Seixas da Costa *
Em Outubro de 1995, o Partido Socialista regressou ao poder, depois de mais de 13 anos na oposição. Do programa de política externa do XIII Governo Constitucional constavam algumas preocupações de conjuntura e a linguagem da agenda “progressista” internacional (sistema multilateral e Direitos Humanos, questão Norte-Sul). O programa não assumia, contudo, nenhuma ruptura drástica de orientação e o seu enunciado de prioridades assentava na tradicional tríade regional, percorrida pelos anteriores governos do PS e do PSD: Europa, África e relação transatlântica.
Quatro anos mais tarde, em 1999, o programa do governo socialista reconduzido (XIV Governo) reflectia algumas das novas realidades com que o país entretanto se confrontara, em especial na agenda europeia. Mas as três prioridades anteriores mantinham-se centrais. Porém, e em perspectiva, pode dizer-se que, com a questão de Timor-Leste, a Europa viria a revelar-se o tema dominante nos quase seis anos da gestão socialista na área externa.
Europa
A partir de 1995, no terreno da União Europeia (UE), Portugal confrontou-se sucessivamente com a negociação do Tratado de Amesterdão (1996-97) e do pacote financeiro da “Agenda 2000” (1997-99), a obtenção do acesso à 3.ª fase da União Económica e Monetária (1999), a presidência portuguesa da UE (2000) e a negociação do Tratado de Nice (2000). Pelo meio ficou o arranque e a presidência do Acordo de Schengen (1997), o novo processo de alargamento comunitário e um esforço de activa participação na nova política mediterrânica da UE (neste caso, ligado a uma maior visibilidade portuguesa em outras dinâmicas na região) (1).
Para Portugal, a Europa não se esgotou, contudo, na agenda da UE. O país viria a tomar a estratégica decisão de estar presente com forças militares no cenário de pacificação da Bósnia-Herzegovina, inaugurando um capítulo novo na afirmação externa do país no cenário continental. A realização da Cimeira da OSCE em Lisboa (1996) e o trabalho que culminou na presidência portuguesa da organização (2002) acabaram por dar a Portugal uma inédita visibilidade em áreas geográficas tradicionalmente não frequentadas pela nossa política externa.
Antes disso, entre 1986 e 1995, a acção externa europeia, para além da defesa dos interesses comerciais no âmbito do “Uruguay Round” do GATT, havia-se concentrado nas adaptações legislativas decorrentes da integração e, com destaque, na negociação de dois importantes quadros comunitários de apoio financeiro. Nesse tempo, a discussão do Tratado de Maastricht foi um exercício em que o nosso país teve uma presença algo discreta. Já a presidência de 1992, bem conduzida “by the book”, revelou-se uma prestação segura e prestigiante para a imagem do país.
A Europa pós-1995, além de iniciar a catadupa de revisão dos tratados que culminaria na crise da Constituição Europeia, veio a ter como decisivo pano de fundo os processos de alargamento (e a discussão sobre a sua dimensão e ritmo) e a crescente indisponibilidade demonstrada pelos contribuintes líquidos da UE para manterem as anteriores políticas de financiamento. A Europa tinha mudado, as necessidades de Portugal um tanto menos e Lisboa viu-se obrigada a uma luta muito difícil para conseguir sugerir-se ainda como prioridade num contexto europeu muito mais exigente.
A diplomacia externa portuguesa procurou, assim, continuar a garantir as ajudas comunitárias (argumentando com a “especificidade” do caso nacional), operando simultaneamente um processo de recentragem na manifestação da vontade europeísta – com uma evolução progressiva no plano institucional, ousadia na resposta política positiva ao alargamento, uma presença mais activa na PESC e afirmação de uma vocação inclusiva nos processos de aprofundamento sectorial de políticas (Schengen, UEM).
Na negociação institucional europeia seguinte, sob gestão PSD/CDS-PP, Portugal viria a ter uma prestação interessante durante a Convenção sobre o Futuro da Europa, a que se seguiu uma discreta e muito táctica postura no percurso subsequente, que levou à fixação do texto da Constituição Europeia.
Presidência da União Europeia
Portugal optou por transportar para a sua presidência da UE (2000) uma muito ambiciosa agenda de relações externas. Ela decorria do interesse em ligar o nome do país à cada vez mais diversa actividade internacional da UE, cuidando em promover alguma colagem a linhas de acção bilateral que o país lançara nos últimos anos, com vista a ampliar a sua dinâmica diplomática. A realização da Cimeira UE-África, conseguida após laborioso trabalho diplomático junto dos Estados africanos, terá ficado então como um dos mais importantes marcos desta vontade portuguesa.
Afectada inicialmente pelo inesperado “caso austríaco” (2), a presidência europeia de 2000 viria a ter como ponto alto o estabelecimento da chamada “Estratégia de Lisboa” – um conjunto calendarizado de objectivos tendente a reforçar a competitividade da economia europeia, através de um imaginativo modelo de coordenação de diversas políticas nacionais, o qual ainda hoje continua a inspirar as agendas comunitárias. Não parece exagerado contar-se a Presidência de 2000 como um dos êxitos mais significativos da política externa portuguesa na década passada.
Multilateralismo
Ainda em 1995, o XIII Governo decidiu confirmar a anterior candidatura portuguesa ao Conselho de Segurança da ONU (biénio 2007-08). O sucesso deste empreendimento viria a somar-se ao exercício da Presidência da Assembleia-Geral, assumido por Portugal no ano anterior. Além de outros dossiês, a presença portuguesa no CSNU coincidiu com um período muito importante na discussão da questão timorense.
A partir daqui, Portugal iniciou nas Nações Unidas um período de alguma visibilidade, que foi de par com uma intervenção muito activa noutros fóruns multilaterais. Em vários desses contextos, o país passou a ser visto como um firme defensor do papel central do sistema multilateral no âmbito regulatório internacional e diversos aspectos dessa sua múltipla intervenção garantiram-lhe uma imagem de coerência e de desejável “previsibilidade” de reacção.
Destaquem-se, neste âmbito, as claras posições portuguesas, assumidas no âmbito multilateral, no tocante aos esforços para combate ao terrorismo (3).
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Espanha
O quadro integrador europeu demonstrou ser um terreno interessante para projectar o relacionamento entre Lisboa e Madrid, num novo tempo de abertura de fronteiras físicas e económicas. A partir de 1995, alguns contenciosos tradicionais puderam dar um salto em frente (regulação dos caudais dos rios comuns), outros tiveram, nesse contexto, um marco regulatório para incidentes de percurso (regimes de pescas fronteiriças) e um espaço para a discussão serena de novas realidades conflituais bilaterais surgiu no horizonte (polémicas sobre concentrações empresariais).
A relação Portugal-Espanha, que desde a comum entrada para a UE como que perdeu a tensão que parecia afectar tradicionalmente o diálogo ibérico, passou neste período por uma prova interessante, com a discussão e posterior estabelecimento de novos equilíbrios na questão dos comandos regionais das forças na NATO. Haverá que reconhecer-se que o saldo deste delicado exercício negocial terá constituído um evidente sucesso para a diplomacia portuguesa.
A relação ibérica navega hoje em águas de plena normalidade, praticamente imune às flutuações políticas em ambos os países.
Brasil
Uma relativa surpresa no contexto bilateral constitui-se em torno da relação económica luso-brasileira. Desde há décadas que, naquela relação, a dimensão económica perdera quase toda a relevância, com a retórica emotiva a assumir-se como o “produto” privilegiado de tráfico bilateral... O facto do surto de privatizações e a estabilidade política no Brasil ter coincidido com uma fase de expansão internacional de grupos económicos portugueses (que os mercados africanos habituais então não facilitavam), justificou o empenhamento político de Lisboa na promoção de um inédito movimento de investimento empresarial luso no Brasil.
Foi um gesto eminentemente político, a que estavam subjacentes juízos de racionalidade económica, que a realidade viria a confirmar. Com muito mais avanços que recuos, este movimento consolidou-se e o Brasil permanece ainda hoje como um dos principais destinos dos capitais portugueses, embora com um impacto mais limitado nas trocas comerciais bilaterais.
Menos conseguido terá sido o esforço paralelo com vista a fazer de Portugal (e de Espanha) factores impulsionadores para um reforço da integração sul-americana, em torno de um Mercosul que continua a dar mostras de grande debilidade e cuja relação com a UE viria a atravessar inesperadas dificuldades.
A marcar também esta nova fase da relação luso-brasileira, neste caso invertendo o modelo migratório tradicional, estão os mais recentes fluxos de cidadãos brasileiros para Portugal, criando uma diferente realidade, com implicações de natureza política (4).
África
Antes de 1995, a governação social-democrata havia dado alguma ênfase a determinados dossiês da relação de Portugal com as suas antigas colónias, onde avultou a tentativa de mediação nos processos de paz nas ex-colónias. Há que reconhecer que a conjuntura não foi propícia a grandes avanços nesse domínio nos anos posteriores de governação socialista. Os esforços tendentes ao arranque da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), a interessante presença portuguesa numa das crises cíclicas da Guiné-Bissau e outras iniciativas esporádicas não foram suficientes para alterar significativamente este panorama. A experiência prova que a “navegação à vista”, olhando os ciclos políticos dos interlocutores africanos, continua a ser a regra predominante no relacionamento com o nosso legado pós-colonial.
Num plano africano mais alargado, a realização da Cimeira UE-África, durante a presidência europeia de 2000 e uma inédita evidência portuguesa na política mediterrânica trouxeram, contudo, outra África para a nossa política externa. Raramente a vertente africana fora do espaço dos PALOP foi tão bem trabalhada (também no contexto ACP, através de Bruxelas) (5) como no tempo que antecedeu e sucedeu à Presidência da UE em 2002.
Relação transatlântica
Historicamente, a acção externa portuguesa, em democracia, procura manter uma relação muito positiva com Washington. PS e PSD habituaram-se a comungar uma leitura segundo a qual uma atenção particular face aos EUA, ligada também a uma relação privilegiada com quem na Europa melhor se articula com os americanos, aparece como condição indispensável para ajudar a preservar alguns equilíbrios estratégicos no plano europeu, em especial no contexto da Aliança Atlântica. O modo como a questão da presença americana nas Lajes foi sempre dialogada, no quadro da negociação das respectivas contrapartidas, não deixou de reflectir esse interesse permanente em não alienar a boa-vontade de Washington.
Na década em observação, dois tempos distintos podem ser observados.
Com algum êxito, os executivos socialistas utilizaram esta relação para promover os interesses portugueses na delicada questão da distribuição dos comandos na NATO, em particular para contrabalançar outras ambições no âmbito peninsular.
Mas seria na decisiva questão de Timor-Leste que esta articulação com os EUA melhor foi activada, com reflexos claros na evolução satisfatória do problema.
O segundo tempo foi mais complexo.
Face à vontade americana de, para além da acção no Afeganistão (coberta por Resolução do CSNU), empreender um ataque ao Iraque (neste caso, dispensando uma nova resolução), no quadro de uma acção antiterrorista mais global, o XV Governo português (fruto de aliança entre PSD e CSD-PP) decidiu-se por privilegiar uma leitura radical do alinhamento do país com Washington. A posição nacional ganhou grande visibilidade com a subscrição da “Carta dos Oito” (que apoiava a posição americana) e a organização logística da polémica Cimeira das Lajes, onde se reuniram, sob hospedagem portuguesa, os países mais directamente envolvidos no desencadear do conflito.
Ao assumir esta atitude, de cariz que pareceu marcado por uma opção de natureza ideológica, mas que foi sugerido como apoiado numa leitura estratégica dos equilíbrios ibéricos, Portugal afastou-se pontualmente da política de alianças que vinha constituíndo na UE, desde a sua adesão. No plano interno, introduziu também uma decisiva clivagem no tradicional consenso em matérias centrais de política externa, com consequências muito visíveis na atitude das oposições e do próprio Presidente da República neste caso, como iria ficar evidente quando se colocou a questão do eventual envio de tropas para o cenário de guerra.
Este posicionamento episódico, mas determinante, do país face à nova expressão do poder americano no quadro global acabaria por constituir-se como um dos mais marcantes momentos da política externa portuguesa na década em apreço. E foi também a marca mais evidente na memória da gestão externa dos governos PSD/CDS-PP (2002 – 2005).
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Informação Complementar
O êxito timorense
A diplomacia portuguesa deu provas de assinalável eficácia no seu esforço para sustentar a causa timorense no plano internacional. Embora o grau de determinação dos diversos governos de Lisboa tenha sofrido flutuações de empenhamento, desde a invasão indonésia em 1975 até à independência de Timor-Leste em 2002, Portugal manteve sempre a imagem de principal promotor daquela causa. E isso conferiu-lhe uma marca de alguma coerência, perante amigos e adversários.
No esforço pró-timorense, a acção externa portuguesa confirmou a ideia de que a sua diplomacia funciona melhor quando mobilizada em torno de uma causa tida por nacional – bem melhor que na gestão do quotidiano, em que frequentemente vêm ao de cima alguns vícios de cultura comportamental.
Se bem que a promoção da causa timorense tivesse funcionado como uma expiação de um sentimento de culpa, pelo descuido havido na descolonização de Timor, ela acabou por contribuir para o apuramento de uma linha de política externa, com especial interesse no tema dos direitos humanos. Esse mesmo movimento funcionou, também, em favor da criação de uma filosofia de intervenção própria no domínio multilateral.
Portugal soube entender os sinais de fragilização da Indonésia e, já em 1996, teve em Bangkok um gesto de aproximação a Jacarta que funcionou como compensatório face ao obstrucionismo sistemático que Portugal criava nas relações da UE com a ASEAN.
O processo que levou ao referendo no território e a grave crise que lhe sucedeu ajudaram àquela que pode ser considerada a “finest hour” da diplomacia portuguesa no século XX, que soube afrontar o cinismo de muitos dos seus aliados europeus e conseguiu ajudar a mobilizar a comunidade internacional face à afirmação de vontade do povo timorense.
1 - Fórum do Mediterrâneo, dinamização do processo ”Cinco mais Cinco”, promoção da Estatégia Comum para o Mediterrâneo, para além da instituição de uma cimeira bilateral anual com Marrocos.
2 - A chegada ao governo da Áustria de uma coligação que incluía um partido de extrema-direita suscitou uma reacção por parte dos seus parceiros comunitários, traduzida num congelamento temporário de algumas dimensões do relacionamento bilateral. Portugal cuidou, contudo, em que todos os direitos da Áustria como membro da UE não fossem afectados.
3 - Além de outras iniciativas no mesmo âmbito, Portugal fez aprovar, durante a sua presidência da OSCE (2000), uma Carta de Prevenção e Combate ao Terrorismo.
4 - Em 2003, um entendimento luso-brasileiro permitiu abrir caminho à legalização de cerca de 30 mil cidadãos brasileiros, que se estimava ilegalmente residentes em Portugal naquele ano.
5 - A Convenção de Cotonu, entre os países ACP (África, Caraíbas e Pacífico) e a União Europeia foi concluída e assinada em 2000, sob presidência portuguesa da UE.
* Francisco Seixas da Costa
Embaixador de Portugal em Brasília. Ex-Secretário de Estado de Integração Europeia.
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