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O que mudou na sociedade portuguesa?
José Manuel Fernandes *
Uma sociedade muda em dez anos? Sim e não. Uma sociedade pode mudar de um dia para o outro se ocorrer uma revolução, mas muitas vezes essa mudança é mais superficial do que real. Um país e um povo mudam muito mais devagar do que a aparente aceleração da vida moderna parecem indiciar.
Do rural ao urbano
Em Portugal o momento da grande viragem nas estruturas e hábitos sociais começou década e meia antes do 25 de Abril, à entrada dos anos 1960 e após a adesão à EFTA.
A emigração maciça que marcou esse período – emigração para os países mais ricos da Europa, para as colónias e ainda a migração para as maiores cidades do litoral – determinou o início da irreversível desertificação do interior. A experiência da guerra colonial ajudou a mudar as referências dos mais novos. A televisão chegou a muitos lares. Dessa forma, um país que era ainda aldeão e rural começou a tornar-se urbano e nele surgiu uma classe média que foi ganhando um peso crescente.
O estudo, dirigido por António Barreto, da evolução dos indicadores sociais entre 1960 e meados da década de 1990 mostra como ao longo desse período houve realmente uma transformação radical do país. Diminuiu o número de casamentos, explodiu o de divórcios. Diminuiu o número de filhos por casal, mas também diminuiu de forma espectacular a mortalidade infantil. Aumentou a esperança de vida e a pirâmide etária quase se inverteu. Passámos a ter um Estado social e tornámo-nos uma sociedade de consumo, quando antes a protecção social era quase inexistente e se guardavam as poupanças no colchão. O terciário tornou-se o sector dominante da economia e a massificação da educação mudou o paradigma mínimo do “ler, escrever e contar” para estudar pelo menos até ao 9º ano, com o ensino superior a encher-se de alunos vindos de todos os extractos sociais. O peso da religião diminuiu no dia-a-dia dos cidadãos, que não deixaram de se declarar maioritariamente católicos, mas deixaram de ser praticantes enquanto os seminários se esvaziaram. A manutenção da tradição do casamento religioso é mais ritual do que substancial, pois em nada afecta o aumento do número de divórcios.
Contudo, a profundidade de todas estas mudanças, assim como a passagem do salazarismo ao marcelismo, deste à Revolução e, por fim, à normalidade democrática, se alteraram de forma radical as condições de vida, se mudaram o paradigma de um país rural cuja matriz fora tão bem explicada por Orlando Ribeiro em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, transformando-o num país urbano e definitivamente “entornado” para o litoral, onde a população se acumulou em grandes, coalhados e desordenados centros urbanos, não foi ao ponto de alterar doenças antigas que mobilizam as preocupações dos nossos escritores, sociólogos e historiadores, pelo menos desde o século XIX. O país produz menos do que consome, as finanças públicas são um constante sobressalto e os cidadãos olham para o Estado como se dele tudo dependesse e este não altera o seu paternalismo, um paternalismo ora autoritário, ora revolucionário, ora acomodado aos interesses instalados.
Há dez anos provavelmente não faríamos este diagnóstico. Depois de uma breve recessão no início dos anos 1990, em grande parte induzida pela crise económica que na Europa se seguiu à integração da antiga Alemanha de Leste na RFA, Portugal retomara um ritmo de crescimento acelerado e começava a apoderar-se dos portugueses a euforia que então se sintetizava numa frase tão pomposa como enganadora: “Portugal está na moda”. Talvez estivesse, ou sentíssemos que estava, pois Lisboa preparava-se para acolher a Expo-98, uma grande fábrica de automóveis instalara-se em Palmela, as Universidades estavam cheias e a taxa de desemprego situava-se a níveis historicamente baixos. Para mais, há muito que crescíamos a um ritmo superior ao da União Europeia, não faltando quem alimentasse o sonho de virmos a ser um “tigre da Europa do Sul”, seguindo as pisadas do “tigre irlandês”. Hoje sabemos que os castelos então construídos eram de areia, tinham muito pouca sustentação.
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Os últimos dez anos
Olhando para os indicadores dos últimos dez anos, o que notamos? A população envelheceu ainda mais, pois a natalidade continuou a níveis muito baixos. Hoje já há mais portugueses com mais de 65 anos do que com menos de 15 anos. Somos um dos países com mais automóveis por habitantes do mundo, terceiros na Europa apenas ultrapassados pela Itália e pelo pequeno Luxemburgo. Em contrapartida, os portugueses são dos que lêem menos jornais diários: menos de 70 exemplares são vendidos por dia por cada mil habitantes, um décimo da Noruega, um quinto do Reino Unido, um terço da França, menos até do que na Turquia. Preferem a televisão, em frente da qual passam mais horas do que qualquer outro povo da União Europeia, sendo que à sua frente embrutecem, pois os canais generalistas estão quase reduzidos à transmissão ininterrupta de telenovelas.
Na área da educação, se temos escolas melhor equipadas, equipamentos do ensino superior novinhos em folha e se o investimento público em educação é, em percentagem do PIB, dos mais elevados da OCDE, a verdade é que continuamos na cauda da Europa quando olhamos para os resultados obtidos pelos estudantes e quase desanimamos quando percebemos que podemos estar até a retroceder. Da população que tem entre 25 e 34 anos, menos de 40 por cento terminou o ensino secundário, metade da média da OCDE. No grupo dos 18 aos 24 anos, mais de 40 por cento já abandonou o sistema de ensino e não participa em qualquer acção de formação profissional, o dobro da média da União Europeia a 15. Dos que entram para o ensino superior, apenas 50 por cento terminam as suas licenciaturas. E quando olhamos para estudos comparados que incidem sobre a aprendizagem – como o PISA – continuamos a encontrar Portugal nos últimos lugares, quer na área da matemática e das ciências exactas, quer no domínio da língua pátria.
Mas o mais inquietante é que, de acordo com um estudo de Valadares Tavares (INA, 2005), a taxa de escolarização aos 16 anos (idade com que se devia estar a frequentar o ensino secundário) atingiu um máximo em 1997/98, com 79 por cento, mas tem vindo a cair desde então, tendo sido de 70 por cento em 2003/04. Ou seja: há sinais de que estamos a regredir, há indicadores que apontam para uma menor crença no valor acrescentado da educação, uma crença que nunca foi muito elevada entre a maioria dos portugueses, mais predispostos a acreditar na “sorte”, na “cunha” ou nos “esquemas” para progredir na vida do que dados a “queimar as pestanas” a estudar. Um inquérito recente indicava mesmo que a maioria dos portugueses pensa que já não precisa de aprender mais nada ao longo da vida depois de sair da escola. Esses e os seus filhos parecem acreditar que nem na escola o conhecimento acrescenta real valor, o que talvez não surpreenda: as taxas de desemprego entre os jovens licenciados dobram a média nacional e, entre os que se licenciaram e estão no mercado de trabalho, são inúmeros os que não encontraram empregos à altura das suas expectativas. Há mesmo quem, desempregado, esconda parte das suas habilitações para evitar não ser aceite por... ter habilitações a mais.
As mudanças introduzidas no sistema educativo nestes dez anos procuraram introduzir mais qualidade depois das sucessivas vagas de massificação das décadas anteriores. Estabeleceram-se processos de avaliação das escolas de todos os graus de ensino e procurou-se racionalizar a rede de estabelecimentos públicos tal como tornar mais transparentes os seus resultados. Introduziram-se provas nacionais e alteraram-se os curricula. Um novo estatuto da carreira docente, entretanto de novo em revisão, revalorizou os salários dos professores, que no topo da carreira são, em paridade de poder de compra, dos mais elevados, senão os mais elevados, da União Europeia. Mesmo assim os resultados estão à vista e esta área continua a ser aquela em que Portugal mostra mais debilidades face aos países com que temos de concorrer nos mercados internacionais.
Novo padrão migrante
A evidência dessa debilidade tornou-se mais gritante na última década face ao que poderíamos escolher como a mais importante e marcante alteração social deste período: a mudança no padrão dos imigrantes que procuram Portugal para trabalhar. Antes quase só chegavam ao nosso país africanos vindos das antigas colónias; na última década começaram a chegar, primeiro a um ritmo muito elevado, depois mais lentamente, sucessivas vagas de imigrantes com origem nos antigos países de Leste. Grande parte deles, especialmente os ucranianos, mostrou ter um nível de formação e uma capacidade de trabalho não só superior aos de origem africana, como um nível de formação que lhes permitia, em pouco tempo, ocupar lugares de chefia mesmo trabalhando à margem da lei. Alguns conseguiram ver a sua formação superior reconhecida e quase todos aprenderam rapidamente a falar português. Quando têm filhos em idade escolar preocupam-se com o seu aproveitamento, o que contrasta com o comportamento de muitas famílias portuguesas e com as vindas de outras origens, que mais depressa “depositam” as crianças na escola do que acompanham ou vigiam a sua aprendizagem.
Paradoxalmente, ou talvez não, a esta chegada de novos imigrantes, que, melhor integrados após vários processos excepcionais de regularização de “ilegais”, já representam mais de cinco por cento da população nacional, tem correspondido um aumento do número de saídas de trabalhadores portugueses para o estrangeiro. Uns são muito qualificados: são os que aproveitam os programas de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento e, depois, sem empregos à altura em Portugal, vão ficando lá por fora, o que corresponde a um espantoso desperdício dos recursos investidos na sua formação. Outros partem na mesma situação de precariedade com que chegam brasileiros, ucranianos ou africanos, indo dispostos a aceitar os trabalhos menos qualificados, sendo frequente a denúncia de situações de verdadeiro trabalho escravo.
Os números não são fiáveis, mas nos últimos anos, ao mesmo tempo que subia a taxa de desemprego, a entrada de estrangeiros e a saída de nacionais tendeu para o equilíbrio. O que significa que, ao contrário de Espanha, que compensa a baixa natalidade com o acolhimento de centenas de milhares de imigrantes, Portugal não cresce do ponto de vista demográfico: apenas envelhece se é que não definha.
Euforia, depressão e reforma
Não surpreende por isso que à euforia dos tempos de “Portugal na moda” se tenha seguido a depressão do “país de tanga”. A uma primeira fase desta década marcada pela estabilidade política seguiu-se uma segunda metade onde os governos se sucederam a uma cadência anormal. Todos eles procurando fazer as reformas sempre adiadas. “O lançamento imediato de grandes reformas de fundo, que, pela sua natureza controversa, logo produziriam efeitos de divisão no eleitorado e, por certo, um clima de instabilidade social”, escrevia em 1996 Pina Moura, levou a que o Governo que integrava optasse “por uma estratégia de criação de laços de confiança com os vários sectores da sociedade, designadamente com os seus sectores mais dinâmicos”. Como isso não resultou, a dor chegou com anos de atraso e sem anestesia, dominando as ditas “reformas” o discurso político desde a viragem do milénio.
Boa parte dessas reformas centra-se no papel do Estado, no tamanho do Estado, nos gastos do Estado e nos investimentos do Estado. Porque temos um sector público que, consumindo já quase metade da riqueza nacional, gasta proporcionalmente pouco nas suas funções sociais, algumas das quais, como a saúde e a segurança social, não deixarão de exigir no futuro recursos cada vez mais avultados. Em contrapartida emprega boa parte dos portugueses, gastando com os seus ordenados o equivalente a 15 por cento do PIB, a segunda percentagem mais elevada da Europa a seguir à Finlândia e bem acima da média comunitária, situada em redor dos 11 por cento. E se ainda gasta relativamente pouco, se compararmos com os outros países europeus, nas suas funções sociais (que mesmo assim aumentaram o seu peso no PIB, passando de 14 para 17 por cento do PIB só entre 2000 e 2003, cf. Medina Carreira), é generoso quando toca a promover obras públicas, sendo que o betão é uma paixão nacional que tanto toca o sector público e como o particular. Não surpreende por isso que Portugal tenha 12 por cento da população activa na construção e obras públicas, quando a média europeia é de apenas seis por cento: a obsessão nacional, além do carro próprio e do telemóvel, é a via rápida e a segunda habitação. Nisso, ao menos, somos como sempre fomos: fontistas. Ou alguém pensará que é por acaso que num concurso lançado pela televisão pública no final de 2006 sobre os maiores portugueses de sempre os guionistas se tenham “esquecido” de Salazar mas não tenham omitido Duarte Pacheco?
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Informação Complementar
Valores evoluem mas nem tanto
Em 1997 Portugal preparava-se para o seu primeiro referendo, sobre a interrupção voluntária da gravidez. Todas as sondagens, antes da ida às urnas, eram inequívocas: o “sim” ganharia com percentagens que poderiam chegar aos 70 por cento. Mas o “não” venceu tangencialmente numa votação marcada pelo elevado índice de abstenção.
Quando os eleitores se preparam para, no início de 2007, voltarem de novo a pronunciar-se sobre o aborto, uma sondagem realizada pelo CESOP da Universidade Católica produziu um conjunto de resultados muito reveladores sobre os valores e as referências dos portugueses. Perguntados sobre a pergunta do referendo, os inquiridos voltaram a pronunciar-se de forma esmagadora pelo “sim”. Contudo, quando lhes foi perguntado em que condições consideravam legítimo uma mulher interromper a gravidez, responderam positivamente nos casos previstos na lei da 1983 e, surpresa, negativamente nos casos que a lei então a referendar previa. Isto é, consideraram legítimo abortar quando a gravidez resulta de uma violação, põe em risco a vida da mãe, ou a sua saúde física ou psíquica (aqui dividiram-se bastante) e quando se detecta uma grave deficiência física ou mental no feto. Porém já não consideraram legítimo abortar quando a mãe ou a família não têm meios para sustentar a criança ou quando a mãe simplesmente não deseja ter o filho. Mais: o número de inquiridos que considera que a vida começa no momento da concepção triplica o daqueles que indica o início da actividade cerebral, critério utilizado para estabelecer a fronteira entre a legalidade e a ilegalidade da interrupção da gravidez.
Este resultado mostra como um tema que foi aparentemente objecto de inúmeros debates públicos, não terá sido completamente apreendido pela opinião pública, que diz aceitar em geral o que, depois, se verifica não aceitar em concreto.
O mesmo estudo continha outros indicadores aparentemente contraditórios. Por exemplo: os inquiridos aceitavam maioritariamente a eutanásia, mas só a pedido do doente, pois recusavam ao médico e aos familiares o direito de a decidir no caso de um doente em coma. A lei não prevê nenhuma destas soluções, mas não penaliza o consumo de drogas leves, ao contrário do que disseram preferir a maioria dos entrevistados. E se a lei já confere aos casais homossexuais o direito a constituíram uniões de facto, a maioria pronunciou-se contra essa solução e, sobretudo, apenas uma pequena minoria respondeu que esses casais deviam poder casar-se ou adoptar crianças. Esmagadoramente a favor da educação sexual nas escolas, defensores das quotas para mulheres na política, algo divididos quanto à reintrodução da pena de morte (mas mesmo assim maioritariamente contra), os inquiridos baralharam-se quando confrontados com uma questão que procurava aferir se valorizavam mais a tradição ou a tolerância face a novos modos de vida.
Estas aparentes contradições, além de revelarem desconhecimento sobre o que já é legal ou ilegal ou sobre o que está em causa num referendo – o que mostra como o debate político em Portugal é pobre e pouco esclarecedor –, também mostraram que continuam a prevalecer valores sociais e morais mais tradicionalistas. Contudo estes não resultam de se seguir a doutrina de Igreja Católica (há pontos onde esta é mesmo desafiada abertamente), antes de uma espécie de “senso comum” que passa de geração em geração e mostra que, na substância, a sociedade evolui mais devagar do que às vezes parece se olharmos apenas para a espuma das notícias e o tom dos debates “na moda”.
* José Manuel Fernandes
Jornalista. Director do PÚBLICO.
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