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Dez anos de guerras
e pazes: o velho, o novo e o novíssimo
José Manuel Pureza *
Clausewitz viveria um desconforto assinalável com a viragem do século
XX para o século XXI. Arauto da modernidade, o autor de Da guerra viu
nela – como “continuação da política por outros meios” – a expressão
acabada do processo de afirmação do Estado como produto por excelência
da modernidade. O nosso tempo põe essa percepção claramente em causa:
terminámos o século XX a descobrir as “novas guerras” e iniciamos o
século XXI sob o manto da guerra contra o terrorismo. E por ambas passa
a mesma marca de aparente perda de centralidade do Estado na guerra.
A pré-modernidade das novas guerras
Há dez anos atrás, no rescaldo do fim da Guerra Fria, a categoria de
“novas guerras” ganhou estatuto de referência analítica. Pretendeu a
literatura que a consagrou (Kaldor, 1999) pôr em evidência alguns traços
de conflitualidade, patentes nas guerras das periferias do sistema-mundo,
diferentes dos que haviam marcado a guerra até então. Mary Kaldor é
clara: “as novas guerras podem ser contrastadas com as do passado pelos
seus objectivos, pelos métodos e pela forma como são financiadas”. Sublinhava
naquele primeiro domínio a (re)emergência das identidades etno-religiosas
como factores de alimentação desses conflitos (o que tem vindo a ser
objecto de vivo debate teórico entre primordialistas, instrumentalistas
e construtivistas); vincava, no segundo, o primado do controle da população
sobre a disputa de território, num ressurgimento combinado das tácticas
da guerrilha com as da contra-insurgência e em que as práticas de “limpeza
étnica” assumem um visível destaque; e realçava, no último dos aspectos
inovadores referidos, quer a importância das economias informais na
alimentação da guerra (através de pilhagens sistemáticas), quer da íntima
articulação entre guerras locais e mercados globais de recursos específicos
(diamantes, marfim, ópio, petróleo), quer ainda da assunção da guerra
como factor de estruturação económica e social.
Mas, em bom rigor, o que o conceito de nova guerra traz para o centro
do debate sobre a realidade da guerra são dois aspectos essenciais.
O primeiro, mais específico, é o da desestatização tendencial da violência.
As novas guerras da década de 90 ocorreriam, na opinião de Kaldor e
dos seus seguidores, “no contexto da erosão do monopólio da violência
legítima organizada”, algo que sucede quer por força da transnacionalização
das forças militares quer como resultado da privatização da violência.
O protagonismo de milícias, forças paramilitares ou empresas privadas
de segurança em conflitos como os de Angola, do Sudão, da Bósnia ou
de Nagorno-Karabakh testemunha essa distância face à representação da
guerra como fenómeno estritamente interestatal. O segundo aspecto, mais
geral, é o da identificação das novas guerras como uma realidade co-natural
aos chamados Estados frágeis ou falhados. Incapazes de reunir os requisitos
básicos do padrão weberiano e abandonados à sua sorte pelo fim da lógica
bipolar, muitos dos Estados pós-coloniais seriam afinal um terreno de
disputa de recursos e de lealdades, entre senhores da guerra e facções,
sendo o governo não mais do que uma delas.
Ambições e limitações para a paz
A pré-modernidade irrompe brutalmente nos processos de construção (tantas
vezes forçada e apressada) da modernidade. E esse choque alimentou,
ao longo da última década, uma transformação não menos importante no
modo de conceber a paz e os procedimentos a ela (re)conducentes.
A colocação da fragilidade institucional, económica e política dos Estados
pós-coloniais na raiz da eclosão das “novas guerras” e a convicção de
que a divisão etno-religiosa das suas sociedades constitui factor maior
da respectiva perpetuação tiveram como resposta uma sofisticação das
missões de paz, sobretudo das estruturadas em torno da Organização das
Nações Unidas. A nova geração de operações de paz, consolidada ao longo
desta última década, descolou da prática ancestral da organização –
traduzida no binómio peace-enforcing e peacekeeping – e adoptou um modelo
muito mais exigente e sofisticado. Inspiradas, em grande medida, em
aquisições teóricas dos peace studies – designadamente na complementaridade
entre paz física e paz estrutural – e tributárias de um pensamento que
identifica fragilidade económica e política com propensão para o conflito,
as novas operações de paz passaram, por regra, a englobar quatro áreas
complementares de peacebuilding: uma dimensão militar e de segurança
(desarmamento, desmobilização e reinserção social de ex-combatentes),
uma dimensão político-constitucional (realização de eleições e edificação
da institucionalidade própria de um Estado de direito democrático),
uma dimensão económico-social (inserção do país no mercado internacional
e assimilação de regras de desenvolvimento sustentado) e uma dimensão
psicossocial (reatamento de laços intracomunitários e superação dos
traumas causados pela experiência de guerra e de violência social disseminada).
Topo
Esta sensível ampliação da geografia conceptual da paz
acabou por ceder, ao longo desta década, à hegemonia ideológica de uma
agenda demoliberal bastante menos ambiciosa. Talvez a herança maior
destes dez anos, neste domínio, venha, aliás, a ser a projecção política
prática ganha pelas teses da “paz pela democracia” e da “paz pelo mercado”
e a sua capacidade de formatar políticas públicas de pacificação de
territórios devastados por conflitos.
O balanço está por fazer mas, neste momento, suscitam-se inúmeras críticas
a esse ascendente académico-político, sobretudo diante dos resultados
concretos de fragilização acrescida, de polarização social e de disseminação
de diversas violências nos tecidos sociais, a que não é alheia uma subalternização
das políticas de reconciliação, de emprego e de segurança. A advertência
“institutionalization first” (Paris, 2004) vale como denúncia do viés
programático destes dez anos e dos seus resultados por vezes catastróficos.
De que é feita a pós-modernidade?
A natureza transicional dos últimos dez anos não se evidencia, porém,
apenas, na persistência do pré-moderno no domínio do moderno. Foram
também as novas configurações que emergiram, rompendo com os cânones
anteriores. Situo-as em três planos.
A revolução nos assuntos militares
O primeiro é o da “revolução nos assuntos militares”. Andrew Latham,
um dos seus mais conceituados estudiosos, escrevendo em 1999, situa-a
como “transição da guerra total industrializada (simbolizada pela Primeira
e Segunda Guerra Mundiais) para o que foi indistintamente designado
como ‘guerra de precisão’, ‘ciber-guerra’, ‘guerra informatizada’ e
‘guerra de terceira vaga’”. Para, de seguida, concluir que “a revolução
nos assuntos militares em curso foi, de algum modo, antecipada pelas
transformações tecnológicas, especialmente no domínio da informação,
pelas mudanças sociais com o declínio do exército de massas e por outros
factores, designadamente um novo ‘discurso sobre a ameaça’ construído
após o fim da Guerra Fria”.
Trata-se, pois, de um processo de passagem do paradigma napoleónico
e do subsequente modelo de guerra industrializada total – que combinava
mobilização (não só demográfica mas também económica e ideológica) em
massa, produção em massa e destruição em massa – para aquilo a que o
mesmo Latham chama a guerra conhecimento-intensiva. Se, do ponto de
vista material, essa mudança se traduziu no recurso crescente à microelectrónica,
às munições de precisão, à tecnologia de ponta em matéria de comunicações,
de controle e de computação, do ponto de vista discursivo e ideológico,
a revolução nos assuntos militares assentou na substituição da velha
ameaça comunista por novas ameaças em que pontua a articulação entre
Estados falhados, Estados-párias e descontrole dos movimentos de armas
de destruição em massa. Esse novo (?) discurso materializou-se, após
os atentados de 11 de Setembro de 2001, na conhecida doutrina do “eixo
do mal” e na legitimação do recurso à guerra preventiva, à margem do
disposto na Carta das Nações Unidas e no Direito Internacional geral.
A nova configuração da guerra
b) Aqui mesmo radica a segunda nova configuração da guerra, herdada
dos últimos dez anos. A “guerra contra o terrorismo” transporta a guerra
para um patamar substancialmente diferente do que ela ocupava há dez
anos. Os arautos da guerra preventiva e da longa guerra contra o mal
insinuam-na não mais como uma irrupção de irracionalidade violenta mas
como um mecanismo regulatório e sistémico. Roubada à sua acepção metafórica,
a guerra é muito mais do que sinónimo de tolerância zero em domínios
específicos da vida social. Sendo “contra o mal”, é uma guerra cultural
e identitária de escala global. E nesta sua nova configuração estatutária
vai arrastada, na prática, uma inversão da lógica clausewitziana – é
cada vez mais a política que tende a ser vivida como condução da guerra
por outros meios, mas subordinada a ela e aos seus códigos binários.
O rosto das guerras pós-modernas
c) O terceiro rosto das guerras pós-modernas é o que se vem chamando
de “novíssimas guerras” (Moura, 2005). Tem razão Martin Van Creveld
(1998) quando afirma que “a simplificação das armas, e não o contrário,
aumentará (...), as tropas assemelhar-se-ão cada vez mais a polícias
(...) não se desenrolará no seio da ambientes complexos (...) será uma
guerra de escutas,, de viaturas roubadas, de mortes corpo-a-corpo (...)”.
É o que está a suceder já hoje, com a disseminação da violência armada,
com picos de concentração nas periferias dos grandes centros urbanos
em países em paz formal. São novíssimas porque aprofundam a chegada
da guerra ao privado, anunciada já nas novas guerras. Não são apenas
novas porque radicalizam a circunscrição territorial dos seus teatros:
os espaços urbanos onde se desenrolam (do Rio de Janeiro a Lisboa, a
Paris, à Praia ou a Cape Town) são microterritórios de guerra em países
em paz institucional. Mas também não são apenas espaços de criminalidade
organizada. A estrutura social que lhes dá corpo e os índices de letalidade
das práticas de violência dominantes são francamente superiores aos
de muitos territórios formalmente declarados em guerra, além de que
integram todos os ingredientes da cultura de guerra, desde a hierarquização
rígida dos actores envolvidos até à legalidade paralela e à disputa
de territórios e recursos (não apenas simbólicos).
Em 1996, início da década aqui em apreço, Johan Galtung, patriarca dos
estudos para a paz, publicava Peace by peaceful means e fazia aí a apologia
da correspondência entre as diferentes expressões de violência os diferentes
patamares de construção da paz. Em acrescento ao que era o discurso
tradicional dos peace studies, Galtung não mais deixou de sublinhar,
desde então, a centralidade da paz cultural, no avesso das práticas
sociais legitimadoras de formas de violência. Na linguagem, na religião,
na arte, e sobretudo no senso comum, a cultura da paz ganha densidade
como alternativa radical. Sinal dos tempos, uma das tensões que mais
marcou esta década foi precisamente a que contrapôs a celebração do
ano internacional da cultura da paz, por proposta da UNESCO, em 2000,
e a assimilação pelo senso comum da hipótese do choque de civilizações.
É uma contraposição funda, que está para durar.
Topo
* José Manuel Pureza
Professor Associado da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. Coordenador da Licenciatura em Relações Internacionais.
Coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais.
Bibliografia
Kaldor, Mary — New and old wars. Organized violence
in a global era. Londres: Polity Press, 1999.
Latham, Andrew — “Re-imagining warfare: the ‘revolution
in military affairs’, in Snyder, C. (ed.), Contemporary
Security and Strategy. Londres: MacMillan, 1999.
Moura, Tatiana — “Novíssimas guerras, novíssimas pazes:
desafios conceptuais e políticos”, Revista Crítica de Ciências Sociais,
nº 71, 2005, pp. 77-96.
Van Creveld, Martin — La tranformation de la guerre.
Paris: Éditions du Rocher, 1998.
Dados adicionais
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