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A Europa sem fronteiras
Álvaro de Vasconcelos *
Na última década, a União Europeia alargou-se a dez novos Estados, consolidando a revolução democrática que começara, impulsionada por Gorbatchev, em 1989. É certamente o acontecimento mais marcante dos últimos dez anos. Hoje, há eleições democráticas de Portugal à fronteira da Rússia. Os países da Europa Central e de Leste são democracias integradas na União Europeia, ou em vias de o ser, caso da Roménia e da Bulgária, e o processo de alargamento da União irá continuar, com os países balcânicos e, esperamos, a Turquia, que já iniciou as negociações de adesão. Uma maioria dos habitantes da União vive hoje num espaço sem fronteiras internas e com a mesma moeda. Os que leram o extraordinário livro de Stefan Zweig, Memórias de um Europeu (1), terão presente a sua emoção por, no final do século XIX, poder viajar pela Europa sem fronteiras. Então, isso estava ao alcance apenas de uma elite; hoje são muitos milhões que viajam todos os anos, são centenas de milhares de estudantes que completam parte do seu curso, através do programa Erasmus, noutro país da União. Desde o seu início, em 1987, já mais de um milhão e duzentos mil os estudantes beneficiaram do programa Erasmus (2).
Em 1996, a tragédia da guerra dizimava ainda a antiga Jugoslávia, e chegava finalmente ao Kosovo. Hoje, a maioria dos países dos Balcãs, apesar dos graves problemas por resolver, assumem como plausível um destino europeu, como futuros membros da União (3). A política de inclusão e a deslegitimação da política de potência – a paz e a democracia pela integração – é a essência mesmo da União, a sua finalidade. O soft power europeu, o poder de atracção que ele representa, ficaram plenamente demonstrados na extraordinária transformação da Europa pós-queda do Muro. A Europa quase toda, preservando a sua enorme diversidade, ou está integrada ou em vias de o ser. A consolidação da democracia no continente é certamente o maior contributo da União para a paz e a segurança internacionais.
No entanto, apesar destes enormes sucessos, existe um flagrante mal-estar europeu. Mal-estar que reflecte, por um lado, a grande desordem internacional que se vive desde 2001, e, por outro, problemas políticos e sociais, nomeadamente o do desemprego, internos à União. Mal-estar que se reflecte também na atitude dos portugueses sobre a Europa, pois apesar de a União ainda ter uma imagem globalmente positiva, somente 47% consideram que ser membro da UE é positivo, quando a média europeia é de 50% (4).
O efeito europeu do neoconservadorismo
A mudança na política americana, com a chegada ao poder da Administração Bush e a estratégia de guerra global ao terrorismo definida pelos neoconservadores depois do 11 de Setembro, puseram termo à década de 90 – a década do regionalismo e do multilateralismo. A mudança americana, a prioridade dada ao uso da força e à acção unilateral, em detrimento da diplomacia, criaram uma enorme perplexidade na Europa. Não nos podemos esquecer que os Estados Unidos foram, desde o início, impulsionadores da construção europeia, com o Plano Marshall. No fim da Guerra Fria, o presidente Bush (pai) foi um dos defensores de que a reunificação alemã se devia fazer dentro da União e da Nato.
A Administração Bush rompeu com este consenso euro-americano. Um presidente americano para quem uma divisão da Europa, entre a velha e a nova Europa, pode ser favorável, é um enorme factor de divisão e renacionalização, como se viu durante a guerra do Iraque. A mudança radical da política americana não criou apenas fracturas sérias entre Estados membros; em alguns deles, popularizou também os valores neoconservadores de intolerância, de exacerbação dos antagonismos, de desrespeito do Estado de direito, em tudo contrários aos princípios em que assenta o projecto europeu. O risco de contaminação era particularmente perigoso no contexto da luta antiterrorista. Houve quem aceitasse o conceito de guerra global contra o terrorismo e abriu-se um debate sobre a necessidade de leis de excepção que diminuem as liberdades e garantias dos cidadãos. Mas, salvo algumas excepções, como a britânica, a Europa soube preservar-se de um tal perigo. Os países da União têm continuado a considerar, a exemplo da Espanha, que as democracias têm os instrumentos necessários para garantir a segurança dos seus cidadãos, no respeito da justiça e da liberdade para todos. Ao mesmo tempo, a União empenhou-se em fazer avançar a justiça internacional, nomeadamente na punição dos crimes contra a humanidade, tendo feito da institucionalização do TPI, que entrou em funções em 2002, um objectivo central, para o qual contou com a convergência dos latino-americanos. Pode dizer-se que o TPI foi um triunfo significativo da diplomacia europeia.
Se deixou traços na Europa, e cada país tem os seus neoconservadores de serviço – Portugal não sendo excepção –, a verdade é que o projecto aventureiro dos neo-conservadores ficou, para já, enterrado na tragédia iraquiana. O unilateralismo, apesar do enorme poder americano, demonstrou uma total incapacidade para resolver qualquer dos problemas significativos do mundo contemporâneo. Onde estiveram as iniciativas diplomáticas americanas para resolver o conflito israelo-palestiniano e israelo-árabe, para pôr termo aos massacres em Darfur, para regular a globalização e o combate à pobreza ou para a protecção do ambiente? (5) O fracasso da política neoconservadora tornou ainda mais atractivo o modelo europeu e a perspectiva de que a violência deve ser um último recurso, a utilizar somente quando todos os outros estiverem esgotados. A regulação multilateral das condições do uso da força, os mecanismos internacionais para julgar crimes contra os direitos fundamentais, passaram a ser uma exigência da sociedade civil europeia, atestada pelos milhões de manifestantes que se opuseram à guerra do Iraque.
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O risco da renacionalização e da xenofobia
O mal-estar interno reflectiu-se no impasse constitucional com o chumbo da Constituição Europeia – que deveria criar as condições para uma União de mais de 30 membros. Uma década de reformas do tratado de Maastricht, iniciada com o tratado de Amsterdão (1997) e continuada com a reforma de Nice, não criou as condições para uma governação europeia mais eficaz e democrática, como era considerado essencial desde 1992. Apesar dos progressos que representou a Carta dos Direitos Fundamentais, que deveria ter ganho força jurídica com o tratado constitucional, e o reforço dos poderes do Parlamento Europeu, a Europa ainda está muito longe dos cidadãos. A década permitiu um enorme avanço na união monetária, com a introdução física do euro em 2002, mas as reformas não completaram a moeda com o governo económico necessário para garantir uma melhor repartição da riqueza e as condições adequadas para enfrentar as crises. Por isso, muitos consideram que o mal-estar europeu é antes de tudo fruto dos problemas económicos e sociais e preconizam o que chamam uma política de resultados para vencer o impasse institucional. Certamente que o desemprego contribui para o descontentamento com os políticos e as políticas europeias, mas o mal-estar europeu tem uma forte dimensão política. Assiste-se a uma renacionalização das políticas de alguns Estados membros e voltou a ser banal culpar nações inteiras pelas políticas dos seus governos: é o costumeiro «a culpa é dos franceses, dos espanhóis ou dos polacos» e por aí adiante.
O mal-estar exprime, acima de tudo, a enorme dificuldade de alguns em aceitar a profunda alteração da Europa, que se transformou num espaço cosmopolita, pluricultural e religioso – dificuldades exploradas por políticos populistas em vários Estados membros. Hoje, no centro deste debate sobre a diversidade europeia está a atitude em relação aos europeus de religião muçulmana, o que se reflecte na oposição à adesão da Turquia e em atitudes xenófobas contra as comunidades com origem nos movimentos migratórios de países maioritariamente islâmicos. O movimento contra a adesão da Turquia visa definir a Europa cultural e religiosamente. Foi o que foi tentado, sem sucesso, na Convenção que preparou o tratado constitucional, mas o seu fracasso reabriu o debate. A Turquia é a prova provada do poder de atracção da União, do seu soft power. Em poucos anos, a Turquia transformou-se num país democrático, onde, regra geral, os direitos humanos são respeitados, mesmo ainda tendo pela frente um longo caminho a percorrer. Dizer não à Turquia é paralisar o processo de inclusão europeu. Um dos desenvolvimentos mais inquietantes da década foi o crescimento da xenofobia na Europa, nomeadamente em alguns dos países mais ricos, como a Dinamarca, a Áustria ou mesmo a Holanda, mas também em novos Estados membros como a Eslováquia ou a Polónia. Os Critérios de Copenhaga, instituídos em 1993, dizem de forma muito clara que, para aderirem à União, os países tem de cumprir três critérios: têm de ter instituições estáveis, capazes de garantir a democracia, o primado do direito, os direitos do homem e o respeito das minorias; têm de ter uma economia de mercado que funcione efectivamente e capacidade de fazer face às forças de mercado e à concorrência da União; e têm que adoptar todo o acervo comunitário, o que se traduz na capacidade para assumir as obrigações decorrentes da adesão, incluindo os objectivos de união política, económica e monetária. Mas, depois da adesão, países há que não os cumprem inteiramente e permitem que militantes de extrema-direita entrem nos governos, como na Polónia, ou, como acontecia até há pouco em Itália, que o primeiro-ministro controlasse o essencial da informação. São precisos critérios de Copenhaga para dentro, ou seja, é necessário ser capaz – como ocorreu, com coragem, durante a presidência portuguesa de 2000, em relação à Áustria – de penalizar os países que pactuem com a extrema-direita xenófoba, aplicando os instrumentos existentes no Tratado da União que prevê a suspensão de alguns direitos decorrentes da aplicação do tratado ao Estado-membro em causa, incluindo o direito de voto do representante desse Estado-membro no Conselho (6). A questão dos cidadãos europeus originários da emigração, sobretudo do Mediterrâneo e da África subsaariana, é uma questão central da política interna europeia que ainda não foi bem resolvida. Aliás, será, muito provavelmente, a questão da construção europeia dos próximos anos.
O triunfo de Vénus?
A forma como a União resolver os seus problemas internos afectará profundamente as suas capacidades de contribuir para a paz além das suas fronteiras. Isto é assim no que diz respeito à preservação do seu modelo social, e é-o muito particularmente em relação à possibilidade de garantir a unidade na diversidade – o desejo crescente de mais Europa, a Europa vista como um «bem público mundial», para usar a feliz expressão de Celso Lafer, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil. Mas se a consolidação do modelo europeu é essencial para a sua acção externa, para poder tirar plenamente partido do seu soft power a União tem de ser capaz de agir de forma unida e coerente nas grandes questões internacionais, particularmente na sua vizinhança. O fracasso do neoconservadorismo europeu, o reconhecimento, mesmo pela Administração Bush, da indispensabilidade da União Europeia para a resolução dos grandes problemas internacionais, da Coreia ao Iraque, passando pelo Irão, confirma que o mundo é mais de Vénus que de Marte, mas para isso é preciso que a União seja capaz de agir de forma coerente e unida. Quando os europeus se unem, os resultados acompanham o peso da União (7). É assim no comércio internacional ou nas grandes convenções multilaterais que, como Quioto ou o Tribunal Penal Internacional, sobrevivem e se vão mesmo impondo, apesar da oposição americana. Foi o que aconteceu recentemente com o TPI, ao qual o Conselho de Segurança das Nações Unidas atribuiu a responsabilidade de julgar os crimes cometidos no Sudão. As contradições e fraquezas deste novo actor global que é a União não escondem, porém, a enorme potencialidade do seu método de utilização do soft power e as esperanças que suscita nas mais diversas regiões do mundo. No Mediterrâneo, suscita as maiores expectativas o projecto europeu de apoio a um processo de longo prazo de reformas políticas e integração económica que procura alargar a sul o processo de inclusão democrática que tão bons resultados teve na Europa. Fá-lo sobretudo através do processo de Barcelona, de construção de uma área de livre comércio, em 2010, e fá-lo hoje também pela política de vizinhança, em que propõe aos seus vizinhos o acesso ao mercado único europeu a troco de reformas políticas e económicas significativas (8). Na política de ajuda ao desenvolvimento, a União tem vindo – lentamente, é certo, e com resistências múltiplas – a libertar-se do atavismo colonial de alguns dos seus Estados e a colocar cada vez mais as questões da democracia e dos direitos humanos na agenda. É sabido que em todas as declarações da União, sobre os mais diversos problemas, as referências aos valores fundamentais da integração europeia são múltiplas, mas tal não se traduz, longe disso, numa capacidade real para enfrentar a questão que é assim posta em evidência. Mostra sim que é aos seus valores que a União vai buscar a força que lhe falta em termos de hard power. No entanto, a União continua sem uma política coerente para a resolução das grandes crises internacionais, como se vê na Palestina ou no Líbano. Se o unilateralismo fracassou, embora os riscos da sua repetição, continuem a existir, como ficou patente no Líbano, a União Europeia ainda não é capaz de pesar decididamente na regularização da globalização e na construção de um novo multilateralismo, capaz de enfrentar os problemas do Mundo.
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Informação Complementar
A Europa está na rua!
O duplo revés da Constituição Europeia obriga a um exercício de modéstia democrática. Consideram com razão os que pretendem reanimá-la que a Constituição se aproxima do ideal de uma Europa dos cidadãos, favorece o progresso económico e ajuda a sacudir a paralisia da acção externa. Descartar, porém, o significado do «não, não» argumentando que foi fundamentalmente um voto contra governos ou políticas nacionais, e não contra o figurino da União, é uma grave imprudência, uma vez que é hoje convicção generalizada que a esfera nacional é cada vez mais determinada pelas boas ou más decisões tomadas no plano europeu, contra as quais os cidadãos pouco ou nada podem.O «não» francês, sobretudo, confirmou o que se sabia desde Maastricht: a Europa está na rua! Não se pode construir uma Europa que esteja – ou pareça estar – longe dos cidadãos e dos seus anseios. A União tem de ser mais democrática e mais solidária, e mais «transparente» também, para que se saiba quando prevalece o interesse comum e quando a este se sobrepõem, pelo contrário, orgulhos e egoísmos particulares. Como resolver, então, o impasse constitucional? É preciso separar as matérias com carácter constitucional, contidas na Parte I e II do tratado, das matérias ordinárias, as políticas enunciadas na Parte III, que pouco ou nada mudaram na nova redacção. Foram aliás as políticas da União no domínio económico – ou a insuficiência e a falta delas noutros domínios – que maior oposição provocaram. É preciso pois voltar a colocar à ratificação dos 25, por via parlamentar ou referendária, a essência normativa do Tratado Constitucional, para salvaguardar o mais importante: a definição da Europa como um espaço aberto, assente nos valores da diversidade, da cidadania democrática e dos direitos humanos.
1 - Stefan Zweig — Le Monde d’Hier. Souvenirs d’un européen. LGF – Livre de Poche, 1993.
2 - UE — Education and Training: Socrates – Erasmus. Disponível em: http://ec.europa.eu/education/programmes/socrates/erasmus/erasmus_en.html
3 - No quadro do processo de estabilização e de associação com os países dos Balcãs Ocidentais, a UE criou parcerias europeias com a Albânia, a Bósnia-Herzegovina, a Croácia, a antiga República Jugoslava da Macedónia e a Sérvia e Montenegro, incluindo o Kosovo. O objectivo destas parcerias consiste na preparação destes países para uma maior integração na UE, visto serem reconhecidos como possíveis candidatos à adesão. A Croácia abriu formalmente as negociações de adesão com a UE em Outubro de 2005. Em 9 de Novembro de 2005 a Comissão emitiu um parecer sobre o pedido de adesão da antiga República jugoslava da Macedónia à UE, e em Dezembro, o Conselho Europeu decidiu conceder o estatuto de candidato a este país, sem dar ainda início a negociações de adesão.
4 - Ver Eurobarómetro 65, Junho de 2006.
5 - Philip H. Gordon — «The End of the Bush Revolution». Foreign Affairs, Julho/Agosto de 2006.
6 - Tratado de Nice, n.º 3, Art 7.º.
7 - Álvaro de Vasconcelos — «A Europa e o novo mandato de Bush: um triunfo de Vénus?». Política Externa Vol. 14 n°1 Junho/Julho/Agosto 2005.
8 - Relatório EUROMESCO — Barcelona Plus, Towards a Euro-Mediterranean Community of Democratic States. Abril de 2005. Disponível em http://www.euromesco.net
* Álvaro de Vasconcelos
Director do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais.
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