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- JANUS 2007 -



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Castigos corporais contra crianças. O princípio do fim?

Catarina de Albuquerque *

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Nos dias de hoje deparamo-nos com casos de violência contra crianças nas escolas, em instituições (tais como orfanatos e outros centros de acolhimento de crianças), nas ruas, no local de trabalho ou ainda em prisões. As crianças são vítimas de violência em casa, no seio da família e ainda de violência perpetrada por outras crianças. Uma pequena percentagem destes casos de violência conduz à morte, mas na maior parte das vezes trata-se de violência que não deixa marcas físicas visíveis.

Muita desta violência está escondida e frequentemente nem a criança nem o autor dos abusos vêem qualquer mal no facto de aquela ser vítima de violência – podendo encarar estes actos como uma forma necessária de castigo ou de disciplina. Muitas vezes a criança vítima sente-se simplesmente envergonhada ou culpada pela “asneira” que terá praticado, evitando por isso falar sobre o assunto.

A violência pode ter implicações sérias no desenvolvimento da criança, efeitos imperceptíveis na saúde, capacidade de aprendizagem ou vontade de frequentar a escola. A violência doméstica pode conduzir a que as crianças fujam de casa – o que as expõe a riscos acrescidos. A violência destrói a confiança e auto-estima da criança, podendo colocar em perigo as suas capacidades de ser bons pais no futuro. As crianças vítimas de violência têm um maior risco de depressão ou de cometerem suicídio na vida adulta.

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) cerca de 40 milhões de crianças com menos de 15 anos sofrem abusos e negligência.

 

Violência contra crianças e a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança

O ponto de partida inevitável nesta matéria é a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança. O artigo 19.º da convenção aborda directamente a questão da violência contra a criança e determina que os «Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.» Existem, além desta, outras disposições que abordam formas específicas de violência e exploração de crianças e situações especiais (como na escola, em instituições, no âmbito do sistema de justiça penal, etc.). Aquando da análise de relatórios dos Estados Partes na convenção, o comité exprimiu preocupação com a realidade verificada em diversos países em matéria de violência contra crianças, tendo também dirigido aos Estados recomendações com vista a melhorarem as suas práticas neste âmbito.

 

Jurisprudência do Comité dos Direitos da Criança sobre a questão da violência

Violência doméstica e familiar – o comité tem mostrado preocupação com as seguintes matérias:

O facto de os castigos corporais serem legais e continuarem a ser utilizados como método disciplinar;

A inexistência de legislação e programas específicos e apropriados com vista a prevenir e combater os abusos sexuais;

A inexistência de uma estratégia global com vista a pôr termo à violência contra crianças no seio da família;

A prática da mutilação genital feminina;

O facto de não haver uma proibição legal de castigos corporais razoáveis no seio da família;

Violência doméstica e familiar – recomendações do comité:

Assegurar que todas as formas de violência física e mental, maus tratos e abusos, incluindo castigos corporais e abusos sexuais no seio da família são proibidos por lei;

Adoptar medidas e políticas que contribuam para a mudança de atitudes em matéria de violência física e mental no seio da família;

Rever a legislação relativa ao limite etário abaixo do qual é garantida uma protecção especial contra todas as formas de violência;

Ter em conta as recomendações do comité adoptadas nos Dois Dias de Debate Geral sobre Violência.

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Violência nas escolas – o comité tem mostrado preocupação com as seguintes matérias:

Maus tratos de crianças, incluindo abusos sexuais, nas escolas e em instituições;

Protecção inadequada de crianças contra abusos, incluindo abusos sexuais, em instituições de cuidados de dia;

Falta de estratégias completas;

Continuação da utilização de métodos de disciplina desadequados, incluindo castigos corporais, em instituições de ensino;

Falta de proibição legal da utilização de castigos corporais nas escolas;

Violência nas escolas – recomendações do comité:

Sejam proibidas todas as formas de violência física e mental contra as crianças, incluindo castigos corporais e abusos sexuais e que sejam promovidas formas positivas de disciplina;

Sejam adoptadas medidas e criados mecanismos com vista a evitar as brigas entre alunos;

Adoptar as medidas necessárias com vista a assegurar que pessoas anteriormente condenadas pela prática de crimes contra crianças não possam trabalhar em instituições destinadas a crianças;

Assegurar que a educação em matéria de direitos humanos é incluída nos curricula escolares;

Assegurar uma proibição de castigos corporais nas escolas e em outras instituições;

Na adopção de medidas destinadas a pôr termo às brigas entre alunos, prestar uma atenção especial à situação das crianças com deficiência e das crianças de origem estrangeira.

Violência em instituições de cuidados alternativos, destinadas nomeadamente a crianças em conflito com a lei – o comité tem mostrado preocupação com as seguintes matérias:

As grandes discrepâncias entre a legislação nacional em matéria de justiça juvenil e os princípios e disposições da convenção;

O elevado número de alegações de maus tratos e tortura de crianças por parte de agentes da polícia durante a fase que antecede o julgamento, como em prisões e outras instituições;

O número crescente de pessoas com menos de 18 anos que se encontram detidas;

A inexistência de medidas adequadas alternativas à prisão;

A inexistência ou falta de clareza da idade de responsabilidade penal;

O facto de por vezes as crianças serem detidas ou presas em estabelecimentos destinados a adultos;

O tratamento desumano de crianças em hospitais psiquiátricos;

O número proporcionalmente elevado de crianças de origem étnica, religiosa, linguística e cultural diversa envolvido em processos na área da justiça juvenil.

Violência em instituições de cuidados alternativos, destinadas nomeadamente a crianças em conflito com a lei – recomendações do comité:

Adoptar uma estratégia preventiva contra a violência institucional;

Ter em consideração as recomendações adoptadas no Dia de Debate Geral em matéria de administração de justiça juvenil;

Assegurar que todas as pessoas com menos de 18 anos beneficiam de medidas especiais e de protecção em matéria de administração de justiça juvenil;

Aumentar a idade de responsabilidade penal para um limite internacionalmente aceitável, através da revisão da legislação e assegurando que todas as crianças com menos de 18 anos beneficiam de uma protecção especial no âmbito do sistema de justiça juvenil;

Estabelecer ou reforçar, a nível local, os mecanismos destinados a assegurar cuidados alternativos no âmbito do sistema de segurança social e adoptar medidas efectivas com vista a facilitar, aumentar e fortalecer as famílias de acolhimento, casas de tipo familiar e outras alternativas de tipo familiar, e diminuir a institucionalização de crianças;

Assegurar que as crianças com deficiência, em particular aquelas que estão institucionalizadas, são protegidas contra todas as formas de negligência, abuso ou tratamentos desumanos ou degradantes;

Descriminalizar a mendicidade quando praticada por crianças e adoptar medidas com vista a assegurar que as crianças não são exploradas por adultos com aqueles fins;

Melhorar os cuidados psiquiátricos, por forma a assegurar que as crianças com problemas de índole psiquiátrica são tratadas humanamente. Proibir explicitamente o internamento de crianças em hospitais psiquiátricos destinados a adultos;

Adoptar todas as medidas necessárias com vista a alcançar uma implementação efectiva da proibição de castigos corporais em todas as instituições;

Adoptar medidas para prevenir e reduzir a utilização da prisão preventiva e outras formas de detenção de crianças.

 

O Estudo do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Violência contra Crianças

O Comité dos Direitos da Criança dedicou, em 2000 e 2001, dois dias de Debate Temático à questão da violência contra crianças. Um dos resultados destes dois dias de debate temático consistiu na recomendação do Comité para que fosse realizado um estudo internacional sobre a violência contra crianças. Em 2003 foi nomeado, pelo Secretário-Geral da ONU, o Professor Paulo Sérgio Pinheiro (Brasil) como Perito Independente para a Elaboração do Estudo sobre Violência contra Crianças. O estudo está presentemente em fase de finalização e será apresentado, no Outono de 2006, à Assembleia Geral das Nações Unidas. Esperamos que o estudo do Professor Paulo S. Pinheiro inquiete consciências, obrigue a mudanças legislativas e sobretudo transforme mentalidades. Nas palavras da Global Initiative to Stop Violence Against Children , «é feio bater em pessoas e as crianças também são pessoas!»

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Informação Complementar

Duas queixas contra Portugal no Conselho da Europa devido ao (ab)uso de castigos corporais

Portugal foi alvo, em 2003, de uma queixa apresentada no âmbito do Conselho da Europa por não estar alegadamente a adoptar as medidas necessárias com vista a proteger as suas crianças contra todas as formas de violência (Queixa 20/2003, OMCT vs. Portugal) . A Organização Mundial contra a Tortura, autora da queixa, alegou que a nossa legislação estava em desconformidade com o artigo 17.º da Carta Social Europeia Revista. Invocou ainda um estudo por si levado a cabo, de acordo com o qual cerca de 80% dos pais e mães portugueses acha legítimo dar bofetadas ou açoites nas crianças como forma de as educar. Os agentes do Estado português invocaram que a legislação em vigor em Portugal (nomeadamente os Códigos Penal e Civil) considerava ilegais e proibia quaisquer tipo de castigos corporais contra crianças. Prova disso era, na opinião dos agentes do Estado, a jurisprudência – designadamente do Supremo Tribunal de Justiça – que corroborava esta tese. Assim, a 26 de Janeiro de 2005 Portugal foi absolvido, tendo o Comité dos Direitos Sociais do Conselho da Europa considerado não estar Portugal a praticar qualquer violação à Carta Social Europeia nesta matéria.

Contudo, a 5 de Abril de 2006, o mesmo Supremo Tribunal de Justiça vem, através de um acórdão, legitimar os castigos corporais contra crianças afirmando que “[n]a educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados.”. O referido acórdão menciona ainda que os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos e que nos podemos mesmo deparar com um “negligenciar educativo” quando os pais não dão uma palmada no rabo ou umas bofetadas a um filho que não se porta convenientemente.

Cerca de dois meses mais tarde, a 31 de Maio de 2006, a mesma Organização Mundial contra a Tortura apresentou uma nova queixa contra Portugal junto do Conselho da Europa (Queixa 34/2006, OMCT vs. Portugal) alegando novamente que a legislação nacional não protege adequadamente as crianças contra todas as formas de castigos corporais, o que consubstancia uma violação da Carta Social Europeia Revista. Na queixa apresentada a OMCT invoca o Acórdão do STJ de 5 de Abril de 2006, como prova de que a actual legislação em vigor em Portugal não basta para proteger as crianças contra castigos corporais, uma vez ser passível de interpretações diametralmente opostas. A 12 de Junho de 2006 a queixa foi declarada admissível, esperando-se nos próximos meses desenvolvimentos quanto à mesma.

 

Um caso exemplar: a Suécia

Na Suécia – o primeiro país abolicionista nesta matéria que proibiu, em 1979, através do seu Código da Família, os castigos corporais contra crianças –, em finais dos anos 60, cerca de metade dos suecos eram da opinião que os castigos corporais eram necessários para educar uma criança. Em 1981 (dois anos após a entrada em vigor da proibição legal) essa percentagem desceu para 26% e, em 1994, para 11%. Há também indicações de que os números de abusos de crianças diminuíram significativamente desde a entrada em vigor da lei e que as taxas de disciplina física, abuso de crianças e de morte de crianças devido a abusos na Suécia decresceu significativamente.

Para mudar mentalidades não basta mudar uma lei e, no caso sueco, a alteração legislativa foi acompanhada por uma campanha de educação pública. Além de mensagens veiculadas através da comunicação social, o governo assegurou a distribuição de um panfleto de 16 páginas a todos os lares suecos, explicando a razão de ser da nova lei e sugerindo alternativas aos castigos corporais. Durante dois meses foi ainda impressa, nos pacotes de leite, informação sobre a lei. Esta lei ainda é hoje em dia ensinada, nomeadamente nas aulas de preparação dos futuros pais e mães.

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* Catarina de Albuquerque

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Internacional pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales (Genebra). Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e Presidente do Grupo de Trabalho da ONU encarregue de redigir um Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

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Link em nova janela A (i)legalidade dos castigos corporais contra crianças na Europa

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