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Porém, não bastam factos para abalar um paradigma teórico: são necessários argumentos. Um momento de viragem na forma como as RI viam o papel da religião foi por isso o debate, desde 1993, em torno da tese do «choque de civilizações» então avançada pelo prestigiado professor de Harvard Samuel Huntington. Ele afirmava que à Guerra Fria – com um sistema internacional dividido em blocos ideológicos – iria seguir-se um sistema internacional dominado por choques entre blocos civilizacionais definidos essencialmente em termos religiosos. O polémico artigo – o mais citado da Foreign Affairs desde o famoso texto de Kennan de Julho de 1947, em que tinha esboçado as ideias que dominaram a Guerra Fria – deu uma visibilidade ao religioso no campo internacional que levou a ter de considerar seriamente a importância das religiões nas teorias das RI, mesmo que fosse para criticar o impacto do 11 de Setembro de 2001 veio reforçar esta tendência.
Choque de religiões e violência religiosa, crise do Estado e abertura teórica Nesta década e meia as discussões sobre o papel internacional das religiões raramente têm escapado a tomar posição face à tese de Huntington. Ela tem sido repetidamente criticada em três vertentes: a dos que contestam a ideia de blocos civilizacionais bem definidos como efectivos actores internacionais; a dos que contestam esta nova importância do religioso; a dos que contestam a ideia de que factores culturais têm mais peso nos conflitos. Huntington tem insistido que nunca afirmou que as civilizações substituiriam os Estados como actores internacionais, mas sim que estes agiam em função de determinadas percepções de ameaça em que as linhas de fractura civilizacional pesariam cada vez mais. Mas não recuou na afirmação do papel fundamental do religioso. Para ele a grande falácia da tese do «Fim da História» de Fukuyama era pensar que a única alternativa ao comunismo seria o liberalismo, quando no “mundo moderno a religião é uma, talvez mesmo a força fundamental que motiva e mobiliza as pessoas” (1). Uma série de artigos recentes tem, portanto, procurado testar empiricamente a polémica tese do «Choque de Civilizações». Russet, O'Neal e Cox olharam para os anos 1950-1992. Mas Huntington recusou valia ao estudo, porque este se limitava às guerras convencionais enquanto a sua tese se referia ao período pós-1990. O problema é saber quanto tempo será preciso esperar depois dessa data para que a tese se possa considerar testável, e a que tipo de conflitos se deverá aplicar. Textos muito recentes referem-se já, efectivamente, ao período pós-Guerra Fria e a conflitos não-convencionais. Andrej Tusicisny insiste que os conflitos entre Estados a partir de 1989 mostram poucos sinais de se conformar com as teses da crescente intensidade e frequência de choques nas linhas de divisão entre civilizações. Já Jonathan Fox estudou as numerosas guerras civis e encontrou um peso crescente de elementos identificados como religiosos a partir de, pelo menos, 1980. Monica Toft reforça estas conclusões afirmando que desde o ano 2000 uma média de 43% das guerras civis teria um eixo religioso face a uma média de 25% para a década de 50 (2). O que é indiscutível é que se há campo que se tem desenvolvido é o do estudo do impacto das religiões na segurança internacional. Pois a estes estudos há que acrescentar ainda os que se debruçam sobre o terrorismo de inspiração religiosa (ver caixa de texto). O lado por vezes bem pragmático do fundamentalismo religioso foi ainda profusamente documentado e discutido pelos cinco volumes dirigidos por Marty e Appleby do ambicioso Fundamentalisms Project (Projecto dos Fundamentalismos), da Academia das Ciências dos EUA, publicados entre 1991 e 1995. A complexidade do tema das relações entre religiões e conflitos – o seu potencial para a violência, mas também para a promoção da paz – é tratado no livro recente de Appleby, The Ambivalence of the Sacred , que dedica amplo espaço ao “ religious peacebuilding ”, ou seja, ao papel na promoção da paz dos activistas e das organizações religiosas. E defende a tese de que os conflitos sangrentos são mais prováveis em zonas do que ele designa como “religião fraca”, i.e., pouco enquadrada e em crise, pois mais facilmente qualquer pessoa pode reclamar uma autoridade religiosa para recorrer à violência sem enfrentar uma contestação bem organizada. Todos estes debates são representativos de uma renovação e maior abertura temática das RI que têm contribuído para dar espaço à consideração da religião na política internacional para além de questões de guerra e paz. Desde logo, no seio da própria corrente dominante nas RI – o realismo –, pelo questionar de uma visão materialista e unitária do Estado, há uma tendência crescente para ter em conta a importância do impacto, no campo externo, seja de factores culturais como as percepções, seja de pressões resultantes da política interna. Ambas as tendências – em que nomes como Stephen Walt, Fareed Zakaria ou Jack Snyder se destacaram – tendem a valorizar o papel das religiões como grupos de pressão capazes de influenciar percepções populares e opções governamentais, como mostram volumes colectivos como The Influence of Faith: Religious Groups and U.S. Foreign Policy . Este foi também o tema do dossier principal de um número recente – o de Setembro/Outubro de 2006 – da revista de referência Foreign Affairs. Esta tendência viu-se reforçada pela emergência – por via do trabalho de Nye, no seio do neoliberalismo, rival tradicional do neo-realismo – da noção de soft power (poder suave) como uma forma de poderio não simplesmente material e potencialmente violento, mas fundamentalmente cultural e de atracção e em que portanto as religiões têm um lugar importante. E importa ainda assinalar o crescimento da corrente construtivista, que defende que as questões de identidade e o papel das normas daí derivadas são fundamentais na forma como os Estados e outros actores constroem o sistema internacional e agem nele. Dois exemplos mostram como o lugar do religioso nas RI se consolidou como resultado destas mudanças. Um dos porta-vozes do construtivismo, Peter Katzenstein, acabou de dirigir um volume sobre a forma como o processo complexo de reconstrução da identidade religiosa interagiu com uma opção externa fundamental numa série de países europeus: a integração na União Europeia. E Daniel Philpott olhou para a forma como as religiões ajudaram a construir o próprio sistema de Vestefália, que ele defende ter sido, inicialmente pelo menos, bem menos secularizado do que aquilo que se pensava.
Não haverá “regresso ao passado” O religioso foi em grande parte ignorado no campo das RI até ao início dos anos 90. Um texto contabiliza, num total de 1.600 artigos publicados entre 1980 e 1999, em quatro das principais revistas de RI – International Organization , International Studies Quarterly , International Security e World Politics – apenas 6 que concentram a sua atenção no papel internacional das religiões (3). É verdade que a tendência era mais acentuada no caso dos EUA. Era menos assim no caso da escola inglesa – com autores como Herbert Butterfield a promoverem uma noção de sociedade internacional muito devedora da teologia. Ou no caso da França, em que as RI estavam menos autonomizadas e teorizadas, mas em que se manteve um maior interesse pela relação entre religião e política, como mostram os influentes estudos pioneiros sobre o islamismo, de Keppel e outros. No entanto, estas questões tiveram um impacto marginal numa disciplina que foi e continua a ser dominada por norte-americanos, até serem promovidas por alguém como Samuel Huntington. É certo que a tendência para ignorar o religioso nas RI não surgiu do nada, pois tem-se tornado cada vez menos aceitável um Estado adoptar uma justificação religiosa para a sua política externa. Mas parece-nos haver no secularismo tradicional das RI um risco duplo. Por um lado, o de sobrestimar o peso exclusivo do religioso em períodos anteriores a 1648, em que sem dúvida a religião tinha grande importância em sociedades oficialmente estruturadas em torno de uma determinada fé, mas onde tal facto estava longe de anular outras considerações (políticas, económicas, etc.) Por outro lado, o de subestimar o papel da religião depois de 1648, quando, estando menos visível, não deixou de ter importância em fenómenos fundamentais como a expansão colonial ou as guerras entre grandes potências, em que não faltaram missionários ou capelães militares. O religioso tinha um peso tão grande no passado e estava tão intimamente relacionado com o Estado que inevitavelmente qualquer evolução apenas poderia ser no sentido de perder peso relativo. Mas é apressado concluir que tal levará à sua total irrelevância. O processo de modernização tem oferecido fértil campo para o crescimento de comunidades religiosas que respondem aos anseios de quem se sente alienado por ele. As religiões não poderão voltar ao passado, nem que seja pelo facto de o contexto à sua volta ser outro. Mas isso não significa que novas ou renovadas religiões não tenham futuro como importantes mecanismos de mobilização em sociedades cada vez mais fragmentadas e menos capazes de motivar os seus cidadãos. Ou que não sejam capazes de um protagonismo importante numa sociedade internacional em que crescentemente os Estados convivem com outros actores. Parece, portanto, difícil que se voltem a fechar as portas das RI ao estudo do papel do religioso. Informação Complementar Terrorismo religioso Bruce Hoffman é o director de estudos de terrorismo no maior instituto de RI – a norte-americana Rand Corporation – e foi um dos principais promotores do conceito de terrorismo religioso. Dedica precisamente a este tema o capítulo mais extenso da sua obra de referência, recentemente revista e reeditada, Inside Terrorism . Hoffman sublinha que nenhum grupo terrorista se identificava em termos religiosos até 1983, mas que em 1996 já metade do total dos grupos terroristas activos algures no mundo reclamavam essa etiqueta. A importância do fenómeno resultaria ainda, segundo Hoffman, não apenas da sua crescente relevância quantitativa, mas também da mudança qualitativa que representariam. Pois o terrorismo religioso estaria mais disposto a provocar mais vítimas e seria menos permeável a ofertas de negociação devido à sua visão maniqueísta do mundo – dividido entre bons e maus, fiéis e infiéis – e aos seus objectivos frequentemente messiânicos. Este é um tema desenvolvido por outros autores de referência: Mark Juergensmeyer, por exemplo, cuja obra, Terror in the Mind of God , contém uma discussão do risco adicional que resultaria de grupos religiosos eivados de crenças apocalípticas passarem a estar dispostos a recorrer à violência; ou, de forma ainda mais exaustiva, por de John Hall, Apocalypse Observed , e Catherine Wessinger, How the Millenium comes Violently . Há, no entanto, quem questione a propriedade deste tipo de análise com distintos argumentos. Num texto já clássico sobre religião e terrorismo, David Rapaport chamava a atenção para o facto de que, historicamente, o milenarismo tanto tem levado a uma recusa da ordem existente pelo autofechamento na espera confiante do seu fim divinamente ordenado e do mundo melhor que se seguirá, como a reacções violentas face ao statu quo . E Jean-François Meier, num artigo recente, vem chamar a atenção para o facto de as ocasionais explosões de violência em cultos religiosos totalitários – ou seja, que funcionam como comunidades completamente fechadas – tendem a vitimar quase sempre membros do próprio grupo e não um alvo externo. Algo como o ataque ao metro de Tóquio pelo Aum Shinrikyo, em 1995, seria portanto, estatisticamente, a excepção e não a regra. Mas há quem coloque questões ainda mais fundamentais. Questionando mesmo a própria noção de terrorismo religioso, Charles Townshend, no seu livro de referência Terrorism , nega que se possa considerar como terroristas grupos que não terão objectivos propriamente terrenos. Pois não implica a noção de terrorismo o recurso à violência com um fim instrumental e não ritual? (4) Este é um argumento interessante, mas que parece falho àqueles que, pelo contrário, insistem que estes grupos terroristas não se limitam a ter fé em Deus; querem promover a sua causa neste mundo mediante acções violentas. Os estudiosos do mais importante de todos estes grupos, a al-Qaida, tendem a apontar, por exemplo, para o facto de bin Laden e os seus seguidores terem, a par de uma determinada leitura activista e violenta do islão – por sinal minoritária no seio dos mil milhões de muçulmanos –, uma série de fins estratégicos bem concretos, que vão desde a retirada das tropas norte-americanas da Arábia Saudita (que, talvez não por acaso, já se verificou), até à restauração de um Estado islâmico unificado, ou califado, no Médio Oriente. Objectivos que não serão, afinal, muito mais utópicos do que os programas dos grupos terroristas anarquistas do final do século XIX, ou marxistas da década de 70. Há ainda quem insista nesta linha, no quadro da escola realista das RI, argumentando, que mesmo as formas mais radicais de terrorismo, nomeadamente os ataques suicidas, têm uma lógica bem terrena. São uma forma radical de resistência a uma invasão estranha. E são uma táctica extremamente eficaz. Por ambas as razões grupos terroristas seculares – sobretudo os Tigres Tamil do Ceilão – recorrem também ao terrorismo suicida. Este é o tema central da obra recente – Dying to Win – do prestigiado analista estratégico da Universidade de Chicago, Robert Pape. Ele argumenta nomeadamente que, ao eliminar a necessidade de planear uma retirada, os ataques suicidas aumentam substancialmente a precisão, e portanto o sucesso do recurso à violência por grupos com um poder armado reduzido. Retoma assim e dá dignidade académica ao velho argumento do líder do Hezbollah, que explicava os ataques suicidas de que este grupo foi um dos pioneiros, em 1983, como a “arma de precisão dos pobres” face ao poderio militar esmagador dos EUA, da França e de Israel. O Hezbollah é aliás apontado como um exemplo pelos críticos da noção de um terrorismo religioso como necessariamente apocalíptico e descontrolado, pois tendo sido um dos pioneiros do terrorismo religioso, entretanto tornou-se um importante partido libanês disposto a disputar eleições e negociar com outras forças políticas desse país. Parece, portanto, que o recurso ao terrorismo por organizações que se reclamam religiosas não nos liberta da ambiguidade característica do papel das religiões na vida internacional, a qual continuará a alimentar os estudos e debates sobre estas questões. Nada ambígua, no entanto, é a tendência crescente para o recurso a formas de violência assimétrica; ou para o crescimento exponencial da capacidade destrutiva potencial de um simples indivíduo ou de um grupo reduzido em virtude dos avanços da tecnologia. Mas esse é um fenómeno que vai para além do terrorismo religioso. 1 - Huntington , Samuel – ‘If Not Civilizations, What?' The Clash of Civilizations? The Debate (Nova Iorque: CFR, 1996): 63. APPLEBY, S. – The Ambivalence of the Sacred... (Lanham: Rowman & Littlefield, 2000). DARK, K. (ed), – Religion and International Relations . (Londres Macmillan, 2000). FOX, J. – ‘The Rise of Religious Nationalism and Conflict', Journal of Peace Research [ JPR ] 41 (6) 2004: 715-731. HOFFMAN, B. – ‘Religious Terror', Inside Terrorism (Londres: Victor Gollancz, 2006): 81-130. HUNTINGTON, S. – O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial , (Lisboa: Gradiva, 1999). Idem et al . – O Choque das Civilizações? O Debate sobre a Tese de Samuel P. 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