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“Saint-Simon é o introdutor daquilo que pode ser designado por reli-giões seculares – ou seja, a primeira pessoa a perceber que não podemos viver apenas da sabedoria tecnológica; que é necessário fazer algo para estimular os sentimentos, as emoções, os instintos religiosos da humanidade. É a primeira pessoa – não de forma calculista, porque o fez com grande entusiasmo e fervor, naturais dele – a inventar esse substituto para a religião, essa variante secularizada, humanizada, sem teologia, do cristianismo, do qual tantas versões começaram a circular no século XIX e depois – algo como a religião da humanidade de Kant; algo como todas as pseudo-religiões, todas as moralidades com o mais ténue aroma religioso, consideradas como um substituto, nos homens racionais, para a obscuridade teológica cegamente dogmática e anticientífica do passado. Isso é suficiente para conferir a Saint-Simon o mérito de ser considerado um dos pensadores mais importantes, mais originais e influentes – se não mesmo o mais influente – do nosso próprio tempo; e como outros pensadores que tenho vindo a tratar, é mais relevante para o nosso próprio século do que foi para o século XIX, como me proponho demonstrar” (1). Deste longo excerto de Berlin, quero salientar dois aspectos: toda a comunidade política digna desse nome está sempre integrada no contexto geral da experiência humana do mundo e do sagrado; o declínio dos fundamentos religiosos mundividenciais que acompanhou a formação da modernidade ocidental implicou a procura de algum sucedâneo para o papel que a esfera dos sentimentos e dos instintos religiosos desempenha na constituição da comunidade enquanto expressão de um domínio de experiências e de características próprias dos seres humanos. No fundo, Berlin, demonstrando que não amalgamava o seu liberalismo com o mecanicismo e o racionalismo utilitarista, chama a atenção para a importância de não cedermos a uma imagem do ser humano fechada numa suposta auto-suficiência que nos tornaria incapazes de criar laços simbolicamente significativos com o outro. Mais ainda, acrescenta que a “sabedoria tecnológica” não consegue fundar uma experiência constituinte da comunidade, passando ao lado dos aspectos afeccionais, religiosos e carismáticos. A transcendentalização de certas expressões da vida mundana e a glorificação de determinadas ocorrências históricas são processos através dos quais é promovida a identidade e a coesão de uma comunidade. Os seres humanos vivem numa sociedade política com todas as especificidades do seu ser, incluindo nestas evidentemente as espirituais e religiosas. Destacando a figura de Saint-
Religiosidade secular: elementos de definição Para um entendimento rigoroso da religiosidade secular, devemos começar por não confinar o elemento religioso às religiões redentoras e às entidades religiosas historicamente estabelecidas, devendo abranger outras experiências relativas a actividades tipicamente seculares, para além das que acompanham o desenvolvimento dos Estados e da política, como as económicas, científicas, tecnológicas, artísticas, desportivas e outras, que constituem cada uma por si uma esfera de acção diferenciada. Em particular, no domínio político devemos ter em consideração que o conceito de Estado não se limita aos domínios organizacionais tipicamente seculares e sem qualquer elo com a esfera religiosa. As religiosidades seculares não são na realidade uma actividade secular, nem propriamente uma actividade religiosa, caracterizando-se antes por um balanceamento permanente entre menções religiosas e seculares, segundo diversas formas sincréticas de sobreposição, absorção ou permuta de predicados e rituais de cariz religioso e valores da actividade secular. Nutrindo-se das representações religiosas tradicionais, as religiosidades seculares conformam uma situação de ambivalência que se abre a uma dupla tradução em trâmites religiosos e seculares. Podem funcionar ou como sucedâneos das religiões historicamente existentes, compondo tácita ou abertamente uma doutrina alternativa ou concorrencial com a visão substituta, ou ainda segundo um sistema de complementaridade entre a religiosidade secular e as religiões universais. No novo contexto moderno de enfraquecimento dos fundamentos transcendentais tradicionais, o modo político de formação da sociedade acaba por não prescindir do reconhecimento das faculdades ligadas aos afectos, às crenças e à moralidade, em paralelo com a racionalidade cognitiva e científica. Rousseau compreendeu bem esta questão, tendo teorizado o pacto entre o religioso e o político através do conceito de “religião civil”. É adequado inscrever nesta tradição, com matizes diversos, pioneiros da sociologia como o referido Saint-Simon, Auguste Comte, e teóricos canónicos dessa disciplina, como Emile Durkheim e Talcott Parsons, todos absorvidos pela indispensabilidade de sentimentos elevados e valores morais sólidos que pudessem contrapesar o pragmatismo e o utilitarismo associados ao mundo moderno. A corrente saintsimoniana procurou promover uma religião imanente e fraternal em que o princípio do sentimento deveria moderar o princípio do interesse; a procura da fraternidade era encontrada não pela caridade, mas pelo trabalho, e a redenção não em Deus, mas nas realizações da indústria e da ciência. Largamente sob a influência deste panteísmo, Comte prosseguiu a procura do equilíbrio entre a vida temporal e a espiritual, tendo pugnado por uma sociedade política que deveria confiar-se menos a um sistema económico ou mesmo político, e mais a uma religião secular que organizasse a modernidade industrial. O trabalho de Durkheim sobre o papel de representações colectivas e normas institucionalizadas para a integração social e a persecução por Parsons de grandes sistemas de valores universais situam-se no interior dessa preocupação. Religião civil e sociedade política Retomando o conceito de “religião civil”, no quadro de uma reflexão de fundo sobre as relações entre carisma e razão na modernidade ocidental, e actualizando as observações que Bellah fizera em “ Civil Religion in America ” de 1967, o sociólogo Salvador Giner (2003: 67-113) ofereceu-nos recentemente um luminoso ensaio onde sustenta que a tradição da religião civil se encontra sobretudo associada ao espírito republicano, aos cultos, virtudes e condutas cívicas. Bellah reconheceu a presença nos EUA do quadro que Rousseau cunhara de religião civil. Esta tinha como suporte o emprego de símbolos religiosos na vida pública. Na Declaração da Independência, os chamamentos à divindade têm um papel relevante, assim como são fulcrais ao longo da história dos EUA outras invocações ao seu papel mais ou menos messiânico no mundo moderno, apelações essas que foram engrandecidas com episódios compostos por uma visão trágica, sacrificial e gloriosa, como a vida e a morte de Lincoln e a Guerra Civil. Vínculo entre o nível do Estado e o da sociedade civil, fundada na tradição moral e religiosa preponderante durante as duas primeiras centúrias dos EUA, a religião civil americana aparecia a Bellah, um teórico comunitarista, como uma construção delicada perante as transformações e a crise moral da sua história recente. A vitória da técnica e do grande capitalismo poderia ter deteriorado os alicerces primordiais do individualismo liberal dos EUA (2). Tendo como pressupostos a transformação do elemento religioso no mundo actual, contrariando a tese do seu ocaso, e a necessidade de apelar ao transcendente – não confundido com o sobrenatural – para alcançar uma comunidade de convivência, pois as relações contratuais não são suficientes, Giner entende a religião civil como um processo constituído por um semblante de venerações populares, rituais políticos e cultos públicos orientados para proporcionar identidade e coesão a uma comunidade através da exaltação sagrada de certos aspectos mundanos da sua existência e da concessão de grandeza heróica a alguns acontecimentos da sua história (3). As características gerais que Giner apresenta da religião civil seguem vários dos traços que referi anteriormente sobre a religiosidade secular, vincando que, apesar de existirem manifestações de religiosidade civil que precedem o desenvolvimento da autonomia relativa da sociedade civil face à sociedade política, a emergência da religião civil propriamente dita confunde-se com a modernidade. Na medida em que não existe sociedade política sem que os conteúdos do mundo a que dizem respeito as suas experiências sejam mediados por êxtases transcendentais, não se constata antinomia, numa era secular, entre religião civil e sociedade civil autónoma (4). Em coerência com esta concepção, a constituição de uma comunidade política, a legitimação do poder e da autoridade, implicam formas de religião civil que não se compadecem com outras modalidades de cultos políticos que procuram o controlo total da população, dissolvendo a sociedade civil, através do facciosismo ideológico, da supressão do pluralismo político e da própria vida privada. A assunção da ordem transcendental e carismática não foi, como se sabe, universalmente admitida no decurso da modernidade, mesmo quando muitos dos pressupostos da teologia deslizaram para o âmbito dos princípios e da prática político-jurídica do Estado ou ainda quando ocorreu a dinâmica inversa. Nos exemplos mais excessivos, a defesa de uma sociedade autónoma e a procura secular das fontes do poder foram coligadas com a recusa de todo o elemento religioso. A racionalidade científica apareceu a muitos como um marco de uma evolução cognitiva mais elevada e que suplantaria a fé religiosa. Por paradoxal que pareça, estas tendências extremas foram declinadas em outras formas religiosas, ainda que seculares, muitas das quais tendo dado origem a correntes de fanatismo ideológico e político. O poder político na ex-URSS, que se colocou integralmente em antagonismo à religião, ao seu teor simbólico e ao poder clerical, o nazismo e o culto de Hitler são exemplos muitas vezes recordados de religiões políticas, embora nem sempre se faça a destrinça necessária entre estas formas específicas de religiosidade e outras como a religião civil. Todavia, a sacralização do mundano através da conversão das expectativas escatológicas das religiões redentoras em cultos seculares não se circunscreve às religiosidades da esfera política stricto sensu . A ideologia do progresso oitocentista é decerto o mais óbvio e marcante exemplo de uma crença revestida de um significado espiritual e redentor, encontrando-se no seu núcleo doutrinal a existência ilusória de uma razão imanente ao mundo e um presumível homem racionalmente autónomo e com plena aptidão para dirigir o seu destino. O contágio mútuo entre o inevitável e o ambicionado fez a sua aparição no mundo moderno através do valor prospectivo das nossas quimeras milenaristas. Este conteúdo central resistiu mais tempo do que as formas particulares que foi albergando até ao seu esmorecimento com as desilusões das guerras mundiais, os campos de extermínio da Alemanha nazi, os gulags da ex-URSS e o reconhecimento da crise ambiental global produzida pelo rumo de crescimento económico e o género de ciência e tecnologia aplicadas na modernidade.
Religião política: variantes e matizes Há quem descubra fortes vestígios daquele velho sortido doutrinal oitocentista no entusiasmo de hoje pela “economia de mercado livre” dos neoliberais e pela inovação tecnocientífica indiscriminada, podendo esta chegar ao controlo e modificação da genética humana e à manipulação da própria vida. Esse é o caso notório, mas não único, do professor de Pensamento Europeu da London School of Economics , John Gray. Este percebe bem que nas sociedades ocidentais contemporâneas se fazem sentir vibrações religiosas sob a forma de cultos seculares e é aguda a sua observação de que “aumentando o poder humano, a ciência criou a ilusão de que a humanidade pode ser senhora do seu destino” (5). A este respeito, de forma perspicaz discute e contesta vários dogmas associados aos positivismos. Por um lado, o positivismo oitocentista, com o seu afinco no modelo das ciências naturais e da matemática para todas as ciências, o seu optimismo na ciência e tecnologia como produtoras de novas formas sociais, em prol do objectivo de um mundo unificado por um único sistema económico e cujo grande resultado seria a criação de uma civilização universal governada por uma moralidade laica. “A tecnologia – a aplicação prática do conhecimento científico – produz uma convergência de valores. É este o principal mito moderno, que os positivistas propagaram e que hoje todos aceitam como um facto”, sustenta Gray (6). Por outro lado, Gray desdiz o positivismo lógico de inícios do século XX no que toca à desqualificação de todo o conhecimento não verificável pela ciência, como a religião, a metafísica e a moralidade. Nesta sequência, mostra como a ideologia de que o mercado livre é o único sistema económico racional não passa de uma nova religião veiculada com a ajuda da “ciência apenas nominal da economia” (7). No entanto, Gray estabelece energicamente um vínculo linear e apressado entre a tradição oitocentista de Saint-Simon e Comte e religiões políticas como o comunismo e o nazismo, estendendo inclusivamente tal conexão ao islão radical e à Al-Qaeda, tomando assim como idênticas todas as religiosidades mundanas. É inegável que a interpretação de Gray se revela muito estimulante quando recorda, a propósito do islão radical, que “as grandes experiências de terror revolucionário do século XX não foram ataques contra o Ocidente”, mas sim “ambições que eram alimentadas apenas no Ocidente” (8). Não valoriza, porém, que a tradição de Saint-Simon e Comte estivesse sustentada em valores centrais como a virtude pública, a solidariedade e a fraternidade entre os homens, e nunca mostrou simpatia por qualquer tipo de violência revolucionária. A ser correcta a hipótese de que o islão radical é um híbrido que bebe em aspectos centrais da cultura moderna ocidental, podendo não ser então totalmente descabido estabelecer algum tipo de conexão com o nazismo e o comunismo, seria necessário lembrar que estas ideologias se situam nos antípodas da tradição da religião civil no que diz respeito à afirmação da sociedade política e das virtudes cívicas contra os processos de dominação política, estando ligadas, isso sim, às formas grosseiras e autoritárias próprias das religiões políticas fanáticas. Esta parece ser uma precisão importante, pois a ideologia quase-religiosa do mercado livre e da tecnologia desregulada é hoje de facto o principal credo que acompanha a expansão da civilização tecnológica e competitiva dos EUA e da Europa, convicção que partilha sem dúvida com o positivismo oitocentista o trabalho de transformação da ciência e da tecnologia em mito. Contudo, na tradição da religião civil de Saint-Simon e Comte propunha-se uma sociedade fraterna na qual o altruísmo era a base da vida social, o que constitui um princípio fundamental da religião civil republicana. Já a divinização da economia de mercado livre e da tecnologia integra o stock doutrinário que concebe o mercado como instituição absolutamente central, o homo economicus como padrão humano, o interesse próprio como razão primordial da acção e o egoísmo como modelo de comportamento, descuidando-se os aspectos virtuosos necessários a uma vida pública solidária e decente. Na medida em que impulsiona a subjugação da sociedade ao determinismo económico e tecnológico, corroendo as fundações e os esteios de uma sociedade autónoma e aberta, a ideologia quase-religiosa da economia de mercado livre e da tecnologia desregulada apresenta sobretudo uma ampla afinidade com os cultos mundanos impostos por credos políticos que acarretam a dissolução da sociedade civil. Tal ideologia, que Bellah tinha intuído, apresenta-se afinal como sinal do ocaso do consenso cultural sobre o progresso e do próprio enfraquecimento da ciência tal como ela hoje é enquanto fonte de legitimação. 1 - Isaiah Berlin (2005) — Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade. Lisboa: Gradiva, p. 141.
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