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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > As religiões no mundo > [ Economia e religião ] | |||
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O debate em torno destas questões reacendeu-se nas duas últimas décadas, por duas ordens de razões aparentemente opostas. Por um lado, o estádio de maturidade e expansão a que chegou a modernidade fez emergir valores correlativos que se tornaram autónomos em relação às crenças religiosas, fenómeno que está associado também ao enfraquecimento da prática religiosa que, de modo geral, caracteriza a vida urbana na sociedade globalizada. Dir-se-ia que a pós-modernidade dispensa a religião. Por outro lado, sobretudo depois da implosão do sistema socialista, isto é, a partir dos anos noventa do século passado, ganhou peso na mundividência cultural a afirmação do mercado global com suas leis, rituais e símbolos, que fazem dele uma quase religião. O modelo económico de mercado globalizado surge como sucedâneo da religião na sua função de legitimação social. Dir-se-ia que o fenómeno da secularização que conheceram – e conhecem – as sociedades contemporâneas vem sendo acompanhado por um retorno ao religioso, mas em que este já não depende, como outrora era regra, de uma Revelação de transcendência.
A tese weberiana e outras Foi no começo do século XX que o conhecido autor alemão Max Weber divulgou a sua tese de que existe uma relação entre religião e sistema económico. (1) Referia-se, especificamente, ao capitalismo industrial da época. Segundo este autor, a emergência do capitalismo industrial está fortemente correlacionada com o protestantismo, designadamente com os valores morais por aquele defendidos. Na tese weberiana, a acumulação capitalista foi possível, graças a uma ética individual, que valoriza a austeridade e a poupança e incentiva o desejo individual de maior riqueza e prosperidade material. Segundo o mesmo autor, a evolução da sociedade no sentido do capitalismo e da modernidade conduziriam a uma diminuição de religiosidade. Subjacente a estas teses, está um duplo pressuposto. O primeiro: a religião é influenciada não só pela doutrina como também pelas condições socio económicas em que se desenvolve. O segundo: a economia não é independente dos valores e das crenças por que se movem os indivíduos. Weber não foi o único cientista a debruçar-se sobre esta problemática. O próprio Adam Smith, conhecido sobretudo pelo seu livro A Riqueza das Nações , tem uma obra consagrada a esta temática. Refiro-me ao Tratado sobre os Sentimentos Morais . Posteriormente a Weber, não têm faltado investigações que procuram testar as teses weberianas. Seguem-se alguns exemplos. • Para Werner Sombart a religião judaica é um dos principais factores explicativos do bom desempenho económico do povo judeu. Segundo a teologia judaica, Deus abençoa quem trabalha e tem sucesso material nesta terra. (2) • Para John Stuart Mill, o impacto da religião na economia exerce-se, sobretudo, pelo lado dos valores e sua maior ou menor influência nos comportamentos humanos. Referindo-se ao cristianismo, sublinha a importância que tiveram as escolas confessionais, nomeadamente no que respeita à educação da infância. • No pensamento marxista, a relação entre religião e economia é tema recorrente. Marx preocupou-se com o lado mais negativo da religião (subentenda-se cristã), vendo nela um entrave à emancipação das classes trabalhadoras e dos povos: “o ópio do povo”, legitimador de uma ordem económica e social assente na exploração e na desigualdade. • Um autor mais recente, Kurt Samuelson, rejeita a tese weberiana, sustentando que o espírito capitalista não é apanágio do protestantismo; já se encontra muito antes nos mercadores italianos, que eram católicos. • Rachel McCleary ressalta da sua investigação que o budismo e o hinduísmo incluem nas suas doutrinas princípios que acabam por atrapalhar o desenvolvimento do capitalismo, enquanto a religião islâmica não. Para não alongar, direi, em síntese, que há convergência entre os autores que se debruçam sobre o tema da relação entre religião e economia, designadamente no que diz respeito ao capitalismo, na medida em que o comportamento individual influencia a racionalidade económica e aquele não é indiferente ás crenças e valores dos indivíduos. Esta influência depende, todavia, do carácter da própria religião e do seu maior ou menor grau de institucionalização e do poder efectivo que tem no mundo secular. O desacordo surge quando se trata de subscrever a tese da relação entre protestantismo e capitalismo.
A teologia da libertação e a opção preferencial pelos pobres A visão totalizadora do mercado globalizado segrega, entre outros, o pressuposto ideológico de que, no longo prazo, o funcionamento do mercado mundial liberalizado conduzirá não só a uma eficiência máxima da economia como a uma maior equidade, pondo termo à escassez e eliminando as causas da exclusão. Esta visão optimista das virtualidades do mercado não serve, porém, para esconder as disfunções sociais entretanto produzidas, designadamente a grande desigualdade de oportunidades de acesso ao progresso material e a persistência, quiçá agravamento, da pobreza mundial e da exclusão social nos países desenvolvidos. A Igreja católica não tem ficado indiferente a esta problemática. O sinal de partida veio do continente latino--americano onde, e não é por acaso, existe uma forte penetração das Igrejas cristãs, católica e evangélicas. O reconhecimento das situações de grande pobreza, a par com uma identificação crítica das causas socio económicas que lhe são subjacentes, levaram os bispos católicos da América Latina a pronunciarem-se colectivamente, em 1968, fazendo uma vigorosa denúncia da injustiça social vigente em todo o continente e comprometendo os católicos na busca de caminhos de desenvolvimento socio económico, mais consentâneas com os princípios cristãos de justiça social. Dez anos mais tarde, em Puebla (1979), e já com o suporte de uma considerável experiência das comunidades eclesiais de base, entretanto criadas, a mesma Hierarquia reafirma a doutrina que deve servir de enfoque a uma economia consentânea com os valores cristãos e cunha a expressão opção preferencial pelos pobres. (3) Sobre este pronunciamento se foi construindo toda uma teologia que não ficou confinada às fronteiras daquele continente, ainda que nem sempre se tenha afirmado sem contestação por parte de correntes doutrinais adversas. É a própria realidade económica que, na sua dinâmica própria, interfere, pelos seus efeitos, com crenças e valores de índole religiosa, provocando reacção por parte da religião. Por outro lado, a religião oferece plataformas de intervenção singulares, como sucedeu com a acção das comunidades eclesiais de base, que se mobilizaram no sentido da viabilização de alternativas à economia dominante. Ficará por demonstrar se um tal impacto virá a ter maior alcance futuro e, sobretudo, se irá repercutir-se no plano da economia mundializada. Quando se fizer a história do Fórum Social Mundial e das forças que alimentaram esta corrente, poder-se-á talvez descobrir a quota-parte de protagonismo devido aos sectores cristãos e católicos, em particular em viabilizar alternativas ao mercado global desregulado. Seja como for, o vigor da teologia da libertação é considerado, já hoje, um dado incontornável na evolução da economia latino-americana, tanto no plano das realizações concretas, como na evolução do próprio pensamento económico e socio político. Gustavo Gutiérrez fala da força histórica dos pobres cujas raízes vai beber às fontes das Escrituras e, em particular, ao Novo Testamento. Na perspectiva da teologia da libertação, o pobre não é o desvalido que depende da nossa ajuda, mas sim “ aquele que desafia a história e a empurra para a frente ”. (4) Empresas de economia de comunhão à procura de uma nova racionalidade económica Ainda dentro do horizonte da religião cristã e católica, (5) não faltam exemplos de iniciativas inovadoras em contracorrente do modelo dominante que foram ditadas por critérios relevantes do foro ético dos seus promotores. Entre outros exemplos, quero referir-me às empresas ditas de economia de comunhão. Sem pôr em causa o modelo da empresa capitalista ou as leis do mercado em que vai operar, a empresa de economia de comunhão procura alterar os parâmetros da própria racionalidade económica que lhe serve de alicerce. A uma racionalidade do eu-individualista contrapõe uma racionalidade do nós. O empresário da economia de comunhão realiza o seu objectivo de eficiência máxima quando maximiza os objectivos de satisfação de todos os actores: trabalhadores, capitalistas, fornecedores e clientes. A empresa não responde apenas perante os accionistas, como é a situação paradigmática da empresa capitalista, mas responde, igualmente, perante todos os seus stakeholders , os actores em presença. Por outro lado, a empresa de economia de comunhão assume a sua quota-parte de solidariedade na erradicação da pobreza no mundo, partilhando uma dada fracção dos seus resultados que é destinada a promover iniciativas empreendedoras por parte de quem não tem acesso a meios de produção. O conceito de empresa de economia de comunhão foi lançado, em São Paulo, em 1991, por Chiara Lubich, a fundadora de um movimento católico, o Movimento dos Focolares, de origem italiana, mas actualmente com expressão em todos os continentes. Presentemente, existem mais de sete centenas destas empresas em distintos países. A experiência tem sido acompanhada de alguma investigação teórica em sede académica, dirigida à crítica dos fundamentos da racionalidade económica prevalecente e proposta de alternativas, numa lógica de fundamentação holística e solidária. No dizer de Luigino Bruni (Universidade de Pádua), “enriquecendo a ideia do agir racional, experiências como a da economia de comunhão podem ser olhadas não como “irracionais”, mas como animadas por uma ideia diferente de racionalidade, igualmente válida e, talvez, mais eficaz.” (6)
Na economia mundializada, que lugar para a religião? Temos assistido nos últimos 20 anos a uma crescente globalização das economias, a ponto de as grandes opções de investimento ou gestão empresarial serem, cada vez mais, determinadas por uma lógica imposta pelo mercado global e os seus actores principais, as grandes empresas transnacionais, cujo poder ultrapassa, por vezes, o dos Estados onde operam. Acresce que, num aprofundamento sistémico da globalização, vêm ganhando peso crescente as transacções financeiras, que já constituem uma parcela que ronda mais de 90% do total do valor das transacções efectuadas no plano mundial. Por outro lado, são conhecidas as fragilidades deste sistema de economia capitalista globalizada, de que são indicadores a excessiva concentração da riqueza e do poder económico, em detrimento do poder democrático, o empobrecimento de grande parte da Humanidade, as grandes desigualdades em termos mundiais e no interior dos vários países, os riscos crescentes de desequilíbrio ecológico, a debilidade do sistema financeiro e elevado risco de rupturas indesejáveis, etc. Isto para não falar de possíveis efeitos colaterais, como sejam as crises e os conflitos sociais emergentes em vários países ou o terrorismo internacional mais ou menos relacionado com alguns fundamentalismos religiosos. Neste quadro de economia globalizada, também foram alterados os fundamentos éticos, Se no capitalismo industrial do século XIX e XX prevalecia uma ética e cultura do trabalho e do esforço individual de ascensão pessoal, presentemente é a cultura do consumo e do prazer imediato que adquire supremacia e constitui fundamento de legitimação da economia e da sociedade. Neste quadro de mutação acelerada, vêm inscrever-se dois outros fenómenos de âmbito mundial: os fluxos migratórios e o desafio ecológico. Ao primeiro, respondem os governos dos países ricos com medidas cada vez mais repressivas, mas que se têm revelado ineficazes. Quanto aos segundos, pesem embora os esforços realizados de concertação e entendimento a nível internacional no sentido de prevenir e remediar os desequilíbrios ecológicos, não se têm registado os resultados esperados. A mundialização da economia trouxe uma cultura dominante e uma organização socio política padronizada, que tem servido de base de sustentação do sistema. Porém, face às grandes disfunções sociais geradas pelo sistema, está aberta uma crise de legitimação socio ideológica. Terão as religiões uma palavra a dizer? Para alguns, a questão é irrelevante, já que o sistema, crêem, encontra em si mesmo a respectiva legitimação. O mercado surge como uma nova religião, a religião da pós-modernidade. Não é questionável. Se há lugar a sacrifícios para alguns, aqueles são aceites e justificados em função do bem supremo que permitem alcançar. Mas há uma outra posição, a daqueles que, embora assumindo a dramaticidade das consequências da globalização desregulada, fazem apelo às religiões para legitimarem intervenções mitigadoras dos efeitos e fomentar o nível de confiança nas instituições. Para estes autores, a religião é um refúgio de virtudes e um recurso necessário à própria eficiência económica, sob condição de se adaptar às novas realidades e estar ao serviço do statu quo . Um dos textos mais conseguidos na matéria é o do brasileiro Jung Mo Sung. Em Economia e religião: desafios para o cristianismo no século XXI , este autor procura extremar as águas. Segundo ele, a religião é antes de mais nada uma tentativa humana de viver no interior da história um mistério que está além, que é transcendente. (...) Mesmo numa sociedade moderna, que se crê secularizada, e até mesmo dentro dos parâmetros da razão crítica moderna, há uma tarefa fundamental para as religiões: anunciar a transcendência de Deus para que os seres humanos não se esqueçam da sua condição humana e para que não se absolutize nenhuma instituição social. (...) A teologia é – expresso-me conscientemente com prudência – a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se a última palavra . É esta, também, a doutrina da Igreja católica que, com particular acuidade e insistência depois do Concílio Vaticano II, encoraja os cristãos a uma participação responsável na economia e na sociedade. Informação Complementar O contributo da análise empírica Com os progressos feitos no domínio da recolha estatística, e graças à disponibilidade de dados para um elevado conjunto de países, têm-se desenvolvido os estudos de correlação empírica entre um conjunto de variáveis definidoras da religião e da economia. A investigação nesta área tem sido desenvolvida sobretudo por cientistas da Universidade de Harvard, de que é expoente o PRPES – Project on Religions, Politics, Economy and Society, do Weatherhead Center for International Affairs. Outra das iniciativas a mencionar é a publicação da World Values Survey que teve origem remota num projecto europeu, em 1981 e, presentemente, resulta do trabalho de uma rede internacional de parcerias de diferentes universidades, com destaque para o trabalho do Prof. Ronaldo Inglehart da Universidade de Michigan. Merece igualmente referência o contributo do CESR - Center for the Economics Study of Religion, sediado na George Mason University onde decorrem não só projectos de investigação como conferências, seminários e cursos académicos. Para este Centro, a economia da religião não se limita à economia comercial ou aos aspectos monetários da religião, antes compreende uma vasta gama de domínios que vão desde o papel histórico da religião no avanço ou atraso do desenvolvimento económico aos aspectos de crítica que as teologias fazem à teoria e à política económica, passando pela análise dos impactos de atitudes e comportamentos dos crentes das diferentes religiões no desempenho económico. Incluem-se também estudos sobre as implicações das crenças em matérias tão distintas como a liberdade religiosa e a regulação pública relações Igreja-Estado.
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