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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Movimentos religiosos contemporâneos > [ A influência das espiritualidades orientais no Ocidente ] | |||
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No entanto, a par desta representação do Oriente, desde Os Persas de Ésquilo e As Bacantes de Eurípedes, existiram momentos em que as culturas orientais influenciaram mais directamente o Ocidente, como na época helenística, iniciada com a expedição de Alexandre, o Grande. Muito semelhante à nossa, pela miscigenação cultural e cosmopolita, ela permitiu um contacto entre filósofos gregos e sábios indianos, os “gimnosofistas” ou “sábios nus”, tendo estes impressionado os primeiros, por praticarem aquilo que muitos deles mesmos recomendavam: a vida segundo a natureza, indiferente às convenções humanas, como via para a “paz interior” (3). Discute-se se houve então um decréscimo das preocupações políticas da filosofia, em prol da espiritualidade, como uma consequência das influências orientais (4).
O Oriente visto do Ocidente A representação ocidental do “Oriente” obedeceu, desde os gregos, ao longo da Cristandade medieval e até aos Descobrimentos, à convicção, enraizada no espírito ocidental, de deter o paradigma ideal da humanidade, sendo as demais culturas e civilizações avaliadas pelos seus desvios ou atrasos relativamente a uma norma supostamente universal que deveriam imitar. Daí que os primeiros contactos com os povos orientais não hajam resultado logo num real encontro e diálogo intercultural livre de preconceitos. Estes contactos, todavia, em que os portugueses foram por vezes pioneiros e notáveis protagonistas, acabaram por exercer uma progressiva erosão sobre o autocentramento ocidental. E se as culturas chinesa, indiana e tibetana, por exemplo, começam por interessar os missionários na expectativa da conversão e das cristandades orientais perdidas, em breve se convertem em focos de questionamento da suposta universalidade do paradigma ocidental e cristão. É o que acontece desde 1641, em que La Mothe le Vayer, no Traité de la Vertu des Païens , se socorre das figuras do Buda e de Confúcio, comparado com Sócrates, para contestar o monopólio cristão da virtude. Ainda sem interessarem pela sua alteridade intrínseca, a China, primeiro, e a Índia, depois, convertem-se em horizontes onde o europeu, ao procurar soluções para as suas questões próprias, acaba por encontrar a inviabilização de muitos dos seus supostos tradicionais, como a validade universal da história bíblica, que Voltaire mostra impossível de conciliar com a maior antiguidade e o rigor histórico da civilização chinesa, que passa a ser modelar em termos religiosos, morais e políticos. Como diz Marc Crépon, sobre este descentramento: “A história da humanidade não começa com a do povo judeu e não está centrada no Próximo Oriente e na Europa. Nada autoriza a privilegiar o Ocidente no quadro histórico das diversas nações que povoam a terra. Pelo contrário, numerosas razões incitam a inverter a ordem da prioridade” (5). Se na obra de Leibniz e na época das Luzes, até à Revolução Francesa, a China está no centro das atenções da Europa culta, por vezes já em parceria com a Índia, esse lugar será doravante por esta ocupado, redescoberta na sua espiritualidade pelas traduções francesas e inglesas de finais do século XVIII, pois as primeiras, dos jesuítas portugueses, entre elas “considerável parte” da Bhagavadgîta , encontram-se até hoje perdidas em Roma e Évora. Apaixonando a Europa romântica, sobretudo alemã, não tanto ainda por si própria, mas por nela se vislumbrarem as “origens perdidas da civilização ocidental” (6), ou mesmo a “fonte” comum de todas as “línguas” e de toda a cultura, a Índia substitui-se mesmo, em Schlegel, Schopenhauer e outros, ao paradigma greco-latino e cristão como único fundamento de um verdadeiro Renascimento (7). O desenvolvimento da filologia sânscrita e a abundante produção literária que ocasiona suscitam duas reacções opostas: a “indofilia” e a “indofobia”, incarnadas respectivamente por Friedrich von Schlegel e Hegel. A partir daí, a atitude perante a “figura Índia” define no mundo ocidental diferentes “famílias de espírito” e “tipos de escolha”, éticos, políticos e religiosos. Numa hipótese demasiado esquemática, a Índia tenderia a ser “a pátria espiritual” de todos os que de algum modo se sentiriam “estrangeiros”, “marginais” ou “contestatários” no interior da civilização ocidental, enquanto, por outro lado, ela seria sentida como um “perigo” por aqueles que se sentem plenamente nela integrados ou missionados para a sua defesa. Sendo a indofilia movida quer por uma “exigência radical de liberdade individual” face ao poder das instituições, quer pela busca de uma “ordem” mais orgânica e metafísica que a do Estado e mentalidade burgueses, ela geraria orientações tão diversas como a libertária, de Michelet a Herman Hesse e aos hippies , e a tradicionalista, em autores como Julius Evola, René Guénon e Alain Daniélou (8). A conspiração do silêncio Todavia o entusiasmo do século XIX, a riqueza espiritual e filosófica dos textos indianos e a sua crescente acessibilidade não lograram, na primeira metade do século XX, extravasar dos círculos eruditos, verificando-se ainda na academia ocidental em geral uma conspiração do silêncio ou “amnésia filosófica”, extensiva a outras culturas orientais, que anacronicamente se arrasta até ao presente (9). O profundo encontro entre Ocidente e Oriente, secularmente adiado, teria de ser, segundo Mircea Eliade, efectuado fora da domesticação académico-comercial das culturas orientais, que substitui a vivência fruitiva da sua diferença pela objectivação descontextualizadora e museificante ou pela reprodução consumista e vulgarizadora. Esse encontro só poderia nascer de um contacto histórico, efectivo e criativo entre povos e pessoas (10). É isso que parece estar a acontecer, desde a segunda metade do século XX e hoje cada vez mais. Naturalmente pelos efeitos gerais da mundialização, mas sobretudo por razões específicas. Por um lado, pelo surgimento de figuras como Mahatma Gandhi e o XIV.º Dalai Lama que, pela fidelidade às suas tradições, hindu e budista, de não-violência ( ahimsa ), em domínios habitualmente separados para a mente ocidental, como a política e a religião, bem como pela não dogmática promoção dos valores humanos e do diálogo intercultural e interreligioso, se convertem em modelos e referências não só para o Ocidente como para todo o planeta. Por outro, por novas viagens físicas e mentais ao Oriente, sobretudo de sectores consideráveis da juventude ocidental, que não se reconhece nos paradigmas da sua cultura tradicional ou busca complementaridades. Este movimento conjuga-se com a crescente vinda de mestres orientais para o Ocidente, onde criam centros de estudo e prática, universidades e mosteiros, originando desde movimentos védicos, como os Hare Krishna, até ao grande surto do budismo, que se ocidentaliza (11), primeiro na vertente zen e hoje tibetana, também pela grande comunidade exilada após a invasão chinesa de 1959. Esta difusão do budismo suscita um curioso diálogo com a tradição cristã, estando em voga os estudos comparativos de Cristo e Buda, bem como do cristianismo e do budismo, que por vezes se conciliam nos mesmos praticantes (12). Num outro sentido verifica-se um crescente interesse pelo esoterismo – em boa medida resultado de uma leitura ocidental de tradições orientais, como na teosofia, ou de uma leitura oriental de tradições ocidentais – e por disciplinas, terapias e práticas orientais como a meditação, o ioga, o tai chi chuan , o reiki , o chi kung , as diversas artes marciais, a acupunctura, o shiatsu , a medicina chinesa, ayurvédica e tibetana, etc. A atitude da chamada New Age , sincrética e não-dogmática, no domínio religioso e filosófico, também reflecte uma influência oriental. O mesmo acontece com rumos da psicologia, na linha de Jung e dos desenvolvimentos transpessoais, bem como da epistemologia, ao estudarem a mente humana a partir de estados diferenciados de consciência e ao privilegiarem o paradigma holístico. A crescente sensibilidade às questões ecológicas e aos direitos dos animais, assim como o progresso do vegetarianismo e do veganismo, também reflectem influxos do ideal oriental de não-violência extensiva à natureza e aos seres vivos. Refiram-se igualmente perspectivas orientais em obras de muitos escritores e artistas, a inspiração budista de grandes sucessos cinematográficos como Star Wars e Matrix e a adesão de figuras públicas a vias orientais, desde os Beatles até Richard Gere, Leonard Cohen, Tina Turner e Roberto Baggio, entre muitos outros (13). Entre nós renasce em Agostinho da Silva a ideia da união Oriente-Ocidente e Norte-Sul com a visão da lusofonia como espaço ecuménico multicultural e multirreligioso (14).
Da religião à ciência De todos estes factores um outro se deve destacar, pois se nos demais assistimos à busca e recepção, na cultura ocidental, de elementos exógenos, já na convergência da investigação ocidental de vanguarda em várias áreas científicas, como a física e as ciências cognitivas, com as espiritualidades orientais, se verifica um encontro entre Ocidente e Oriente movido por aquilo que o primeiro tem de mais específico: a busca do conhecimento experimental, rigoroso e objectivo. Desde a obra pioneira de Fritjof Capra, O Tao da Física , em que se mostra a afinidade da nova visão quântica do mundo com os princípios das tradições orientais, até aos encontros regularmente organizados, desde 1985, pelo Mind and Life Institute , entre o 14.º Dalai Lama e alguns dos mais eminentes neurocientistas e psicólogos contemporâneos, como Richard Davidson, Francisco Varela, Paul Ekman, Daniel Goleman, Allan Wallace e outros, e até às experiências laboratoriais que desde há alguns anos decorrem no Massachusetts Institute of Technology (MIT), mostrando os efeitos da meditação no funcionamento cerebral, é notável que a ciência ocidental confirme hoje, pelos seus processos de verificação, os supostos, efeitos e vantagens milenarmente atribuídos pelas tradições orientais aos seus exercícios espirituais. Num momento de crise dos paradigmas ocidentais dominantes, em que a Europa parece não poder sustentar mais o seu mito constitutivo, desde o Império Romano, de centro do mundo destinado à totalização planetária, a prática por um crescente número de ocidentais de disciplinas como a meditação, mesmo sem implicar uma conversão integral às vias orientais, pode ser hoje um factor de imponderável alcance na metamorfose daquela definição que Paul Valéry deu do espírito europeu: “Por toda a parte onde o Espírito europeu domina, vê-se aparecer o máximo de necessidades , o máximo de trabalho , o máximo de capital , o máximo de rendimento , o máximo de ambição , o máximo de modificação da natureza exterior , o máximo de relações e de trocas. “[…] É notável que o homem da Europa não seja definido pela raça, nem pela língua, nem pelos costumes, mas pelos desejos e pela amplitude da vontade […]” (15). Num Ocidente em encruzilhada, a descoberta da meditação, ou seja, da harmonia mental como o factor fundamental da felicidade, se num sentido pode instrumentalizá-la nessa “mobilização” geral para o aumento da produção que caracteriza a modernidade (como mostra a sua actual introdução em grandes empresas norte-americanas), pode ao mesmo tempo gerar uma já pós-moderna desmobilização , pressentida nos impasses a que o produtivismo conduz (16), com significativas camadas da população a procurarem reorientar mais para a vida interior e para uma transformação ética do mundo muitos dos investimentos até hoje dirigidos sobretudo para a obtenção do bem-estar e da riqueza materiais ou para o combate político. O que, a verificar-se, realizaria o paradoxo de ser afinal pelas influências orientais que o Ocidente reencontraria hoje o que já foi a sua tradição sapiencial própria, presente, de modo diverso, nos exercícios espirituais e contemplativos das tradições grega, romana e cristã (17). Informação Complementar Meditação e ciência Na sequência dos encontros “Mente e Vida”, realizados anualmente, desde 1985, entre o Dalai Lama e um grupo de cientistas ocidentais, foram feitas experiências recentes, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), com um grupo de praticantes de meditação no budismo tibetano, com 15 a 40 anos de prática, e um grupo de controlo de estudantes voluntários, praticantes apenas durante uma semana. Escolheram-se quatro tipos de meditação: 1 – o amor e a compaixão universais e imparciais; 2 – a atenção focada num único objecto, clara, calma e estável, sem torpor ou agitação mental; 3 – a presença aberta, em que a mente está consciente e atenta, mas sem se focar em nenhum objecto particular; 4 – a visualização de imagens mentais. Enquanto alternavam repetidas vezes períodos neutrais de trinta segundos com períodos de noventa segundos em cada um destes estados meditativos, os praticantes foram submetidos a electroencefalogramas, que permitem captar alterações na actividade cerebral em milésimos de segundos, e a imagens de ressonância magnética funcional, que localizam com rigor a actividade cerebral. Os resultados mostraram espectaculares diferenças entre os praticantes experientes e os noviços, que provam a plasticidade do cérebro e a possibilidade de transformar e desenvolver o seu funcionamento mediante a prática regular da meditação. Por exemplo, na meditação sobre o amor e a compaixão, houve um aumento da actividade cerebral de alta frequência, as chamadas “ondas gama”, “de um tipo nunca antes relatado na literatura científica”, no dizer de Richard Davidson, coordenador da experiência. A actividade cerebral concentrou-se também no córtex pré-frontal esquerdo, a sede de emoções positivas, geradoras de bem-estar, como alegria, entusiasmo e altruísmo. Outras constatações, nos praticantes experientes, foram a capacidade de regular voluntariamente a sua actividade mental, concentrando-se exclusivamente numa tarefa, sem distracções; a identificação de emoções em rostos que aparecem num ecrã durante um quinto de segundo, mostrando um superior poder de empatia; e a inédita e espantosa neutralização do reflexo do susto, mesmo perante o disparo de uma arma: uma vez que esse reflexo depende da predisposição para o medo, a raiva e a repugnância, os resultados sugerem “um nível de serenidade emocional impressionante”. Perante este quadro, não admira que o Dalai Lama tenha aberto, em 2005, os trabalhos do Neuroscience , o mais prestigiado congresso de neurocientistas do mundo, em Washington. E que se fale hoje da meditação budista como alternativa ao Prozac. Segundo declarações recentes do biólogo Eric Lander, membro do Projecto Genoma Humano, numa conferência no MIT: “Não é inconcebível que, dentro de 20 anos, as autoridades americanas de saúde recomendem 60 minutos de exercício mental cinco vezes por semana”.1 - Cf. Carlos João Correia — “Variações sobre uma ideia de Oriente”, Revista Internacional de Língua Portuguesa , v. 1, n.º 3 (Lisboa, Novembro de 2004), pp.169-177, pp.169-170.
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