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- JANUS 2007 -



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Senegal: confrarias, contrato social e modernidade

Eduardo Costa Dias *

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As confrarias muçulmanas ( turuq ; singular: tariqa [“a via”]) fazem parte do universo de manifestações místicas colectivas do islão e são, de forma estruturada, a mais antiga e importante expressão de espiritualidade muçulmana, o sufismo. O sufismo, que se caracteriza globalmente pela interpretação contemplativa do islão, pela centralidade dada à exegese do Alcorão e à glosa da Sunna (compilação de usos e costumes imputados a Maomé), pelo carácter iniciático do acesso ao conhecimento religioso, pela grande importância atribuída aos dons ditos sobrenaturais dos fundadores das confrarias e dos seus sucessores ( baraka ) e por práticas de cariz sincrético, está hoje, por intermédio de múltiplas confrarias, espalhado por todo o mundo muçulmano.

Todavia, embora mantenham o cunho iniciático e místico característico do sufismo, muitas dessas confrarias atribuíram-se, ao longo dos tempos, capacidades de intervenção económica, social e política não negligenciáveis, como é o caso da maioria das actualmente presentes na África subsaariana.

De facto, para além do papel proeminente que tiveram na expansão do islão e na sua “adaptação” às culturas africanas, sendo os principais centros produtores de saber religioso, desde há muito tempo que desempenham papéis sociais e políticos destacados. As confrarias estiveram, por exemplo, nos séculos XVIII e XIX, na origem de algumas importantes teocracias muçulmanas e na primeira linha de combate à conquista colonial; desde finais do século XIX, os seus dirigentes tornaram-se, em inúmeros casos, os principais intermediários entre as populações muçulmanas e o Estado.

As confrarias encontram-se hoje presentes em todos os países africanos onde o islão tem expressão e, independentemente das formas de intervenção que assumem, a sua presença é particularmente importante em países como o Sudão, a Somália, a Tanzânia, a Nigéria, a Mauritânia ou o Senegal.

 

Senegal, país das confrarias e dos marabouts

No Senegal, as confrarias têm desempenhado desde o início do século XIX, para além de um papel incontornável na expansão e formatação do islão, um indiscutível papel de primeira ordem na maquetagem do tecido económico e social e, inclusive, da cultura politica e administrativa subjacente ao Estado colonial e, ao herdeiro deste, o Estado pós-colonial.

A história do Senegal foi sendo, em grande parte, construída por referência aos fluxos e refluxos das relações tecidas pelo Estado com as confrarias muçulmanas e os marabouts (ou marabus), termo que de uma forma genérica desde o tempo colonial designa no Senegal e nos países vizinhos os dirigentes das confrarias (califas, serignes , xeiques), e são hoje, como no passado colonial, uma referência essencial no jogo político senegalês. Os marabouts , seja através do seu exemplo moral e intelectual, seja por intermédio das inúmeras redes de interesses que polarizam, são os elos mais eficazes e indispensáveis de ligação entre o Estado e as populações senegalesas.

Aliás, a antiga e fortíssima presença no tecido económico, social e politico senegalês das confrarias – a maioria do muçulmanos senegaleses não dissocia a sua identidade muçulmana da pertença a uma confraria e à filiação pessoal a um marabout – é mesmo uma marca distintiva do Senegal em relação a outros países africanos igualmente islamizados da região. O Senegal é o país das confrarias e dos marabouts!

De entre as várias confrarias actualmente presentes no Senegal, três, qadriyya , mouridiyya e tijâniyya , destacam-se pelo número de membros e pela importância religiosa, económico-social e política que desde o século XIX foram adquirindo. (ver informação complementar ).

Estas três confrarias, que se dividem em vários ramos mais ou menos rivais, são estruturas hierarquizadas nas quais a relação genealógica com o fundador da confraria ou do ramo opera como elemento central na colocação dos indivíduos no topo da cadeia de dependências.

A maioria dos mais importantes marabouts são descendentes dos fundadores das confrarias ou dos seus ramos locais e assentam a sua dominação sobre os discípulos ( taalibe , singular: taalib ) no facto da baraka se transmitir predominantemente no interior das famílias de marabouts e de todo o conhecimento religioso dos taalibe ser adquirido através de uma cadeia de transmissão de autoridade espiritual e intelectual iniciada pelo fundador e controlada pelos seus sucessores ( silsila ).

Aliás, a força deste islão confrariático advém em grande parte das relações muito personalizadas entre os marabouts e os taalibe e da relação de submissão destes em relação aos primeiros. Uma relação que é quotidianamente vivida, por exemplo, pela recitação, em momentos precisos do dia, de um certo número de versículos do Alcorão e de orações específicos a cada confraria ( wird ) e ciclicamente reavivada nas datas comemorativas das confrarias que reúnem nas zawiya (sedes das confrarias ou dos seus ramos) milhares de taalibe .

Este sistema relacional religiosa e socialmente desequilibrado, foi indirectamente reforçado no tempo colonial, pelos reconhecimentos simbólicos e pelas sucessivas benesses materiais prodigalizados pela administração aos marabouts (concessão de grandes extensões de terras para cultivo de amendoim, garantia de preços e de comercialização da totalidade da produção) e por estes, em parte, redistribuídos aos taalibe e, no essencial, em pouco foi alterado com as mudanças sociopolíticas decorrentes da independência e da progressiva urbanização da sociedade senegalesa.

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Contrato social senegalês

As relações entre marabouts e Estado que indirectamente reforçaram as desigualdades no interior das confrarias, estabeleceram-se por conveniência de ambas as partes e corresponderam a necessidades derivadas de insuficiências de cada uma, patentes no século XIX e, continuadas, com contornos diferentes, até aos nossos dias: do lado do Estado, dada a fragilidade do seu controle sobre as populações, a necessidade de se servir dos marabouts para impor a todo o território a sua dominação económica e política; do dos marabouts , num quadro militar e politicamente desfavorável, a necessidade de se “acomodarem” com a administração para poderem beneficiar tanto de recursos materiais encaminhados a partir do Estado, como de liberdade de proselitismo religioso.

De facto, a partir de finais do século XIX, se por um lado a França, confrontada com os limites do seu projecto assimilador, teve necessidade de mobilizar recursos políticos, sociais e económicos para tornar aceitável a sua dominação, por outro lado, as confrarias, dada a impossibilidade de continuar as guerras santas lançadas pelos líderes muçulmanos durante as décadas anteriores ( jihad ) e a inexequibilidade do desencadeamento de emigrações maciças para outras regiões ( hijra ), tiveram de optar pela acomodação com o Estado, isto é, pela aceitação da coabitação com o poder colonial ( muwalat ).

No essencial, não só a alternância entre confrontação e coexistência pacífica estruturou o percurso de acomodação que seguiram as autoridades coloniais e as confrarias muçulmanas do Senegal, desde finais do século XIX, como ainda, o triunfo da ordem colonial permitiu a consolidação das confrarias e abrir um espaço político aos dirigentes das confrarias no seio da própria administração que perdura até aos nossos dias.

Esta relação assente na confluência de interesses entre dirigentes das confrarias e Estado estabeleceu o que se pode considerar, utilizando a terminologia de um dos principais responsáveis pela sua concepção e implementação no interior da administração colonial (Paul Marty, 1882 – 1938), a base de um contrato social ligando a sociedade com o poder político central do Estado e estabelecido entre as confrarias e os governadores e mais tarde os presidentes do Senegal: o Estado assegurou o apoio ou pelo menos a neutralidade benevolente dos dignitários, estes receberam garantias tácitas de que os seus interesses religiosos e não religiosos seriam devidamente salvaguardados.

A independência do Senegal em 1960, nesta matéria, não só não rompeu com o statu quo colonial, como ampliou a colaboração entre confrarias e Estado.

O Estado nunca deixou de conceder aos marabouts recursos materiais adequados às suas necessidades enquanto “cabeças” de pólos redistributivos; os marabouts foram progressivamente acrescentando à sua antiga condição de grandes empresários agrícolas produtores de amendoim a de empresários de todos os ramos e à sua faceta de (simples) mediadores entre o Estado e as populações a de verdadeiros sustentáculos do próprio poder do Estado, como o demonstra, por exemplo, o facto de os “partidos políticos de poder” procurarem ainda hoje ganhar as boas graças dos marabouts para obterem deles a (boa) indicação de voto dada aos taalibe , o célebre ndigel (literalmente, em wolof, “ordem”).

 

Montras da modernidade e do dinamismo identitário das confrarias

Em meados dos anos 1980, num quadro de recorrente impossibilidade de o Estado satisfazer compromissos assumidos com os dirigentes das confrarias (queda do preço do amendoim no mercado mundial, crise económica, primeiras medidas de ajustamento estrutural) e num contexto de grandes mutações sociopolíticas (êxodo rural, contestação social, multipartidarismo), apareceram as primeiras brechas no relacionamento pós-colonial entre os marabouts e o Estado e gradualmente dois projectos passaram a confrontar-se: um projecto de modernização e centralização da administração, outro de autonomia organizacional das confrarias.

A progressiva divergência destes dois projectos, mesmo que ambos convirjam tacitamente num objectivo comum – ficar no poder, guardar intacta a hegemonia – vai retirar pouco a pouco ao Partido Socialista e a Abdou Diouf o voto cartelizado dos taalibe e a qualidade de interlocutores quase exclusivos das confrarias e permitir, com a vitória de Abdoulaye Wade – um taalib da mouridiyya – nas eleições presidenciais de 2000, a alternância política.

Aliás, este processo de descartelização do voto tem também muito a ver com lutas de poder no interior das confrarias, de tal forma que, por exemplo, não só na actualidade raramente existem indicações de voto dadas pelo califa de uma confraria ou de um ramo de confraria, como ainda vários marabouts de um mesmo ramo de confraria dão indicações de votos diferentes e, por vezes, apadrinham novos partidos políticos.

Todavia, apesar das sucessivas alterações do contexto económico, social e político do Senegal, das suas divisões internas e da perda de parte da antiga eficácia do ndigel , as confrarias não perderam a sua importância e continuam a marcar profundamente a política senegalesa e a enquadrar boa parte da população. De facto, não só os marabouts diversificaram e aumentaram as suas fontes de rendimentos, como ainda o dispositivo organizativo das confrarias, criando nos aglomerados urbanos e na diáspora novos círculos confrariáticos ( dahira ), foi-se adaptando com sucesso à progressiva urbanização da sociedade senegalesa e ao ganho de importância da emigração.

A extensão do controlo “territorial” das confrarias às cidades senegalesas e às comunidades na diáspora e a reconversão económica dos marabouts , são nos tempos mais recentes a prova do vigor das confrarias no Senegal: construindo à volta das dahira , centros de sociabilidade e solidariedade e lugares de poder e de emergência de novas elites religiosas, reforçaram a sua capacidade de enquadramento e alargaram o recrutamento de taalibe a novos grupos sociais (funcionários, profissionais liberais, empresários, jovens, intelectuais, emigrantes). E embora alguns marabouts e respectivos discípulos continuem implicados na actividade agrícola, muitos tornaram-se dinâmicos empresários (comércio, banca, telecomunicações, obras públicas) que reinvestem parte dos lucros nos circuitos económicos das confrarias e em obras de carácter social ou em construções de prestígio religioso (mesquitas, mausoléus, centros religiosos).

Estes empresários são, a par da diversificação da origem social dos taalibe e das novas formas de intervenção política, uma das montras de modernidade das confrarias e do dinamismo da sua construção identitária.

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Informação Complementar

As três grandes confrarias muçulmanas do Senegal

Qadriyya , a mais pequena das três grandes confrarias, foi fundada no século XII no actual Iraque por Abdoul Qadir al-Djilani (c.1080-c.1170) e está presente no Senegal desde o início do século XIX.

Introduzida no Senegal no seguimento do movimento de reforma lançado, no século XVIII, no então Sudão Ocidental por Mactar-al-kabir Kounta, importante erudito de Tombouctou (Mali), está dividida em vários ramos independentes, cada um com os seus mausoléus e lugares santos, tem a sua zawiya principal em Ndiassane, no Cayor, região onde se fixou o fundador do ramo senegalês Bounama Kounta (c.1780-c.1830), e a sua área de influência reduz-se actualmente às regiões de Thiès, de Louga e da Grande Dacar e a algumas localidades da Casamansa.

A qadriyya senegalesa, que no século XIX iniciou vários futuros marabouts de outras confrarias (“deu o wird ”) e desempenhou um importante papel na divulgação dos conhecimentos produzidos pelos grandes centros religiosos da África Ocidental e do Magrebe, tem ainda hoje, por via da suposta origem sérifiana (descendentes do profeta) dos Kounta e do renome intelectual de alguns dos seus membros, grande prestígio religioso e importantes conexões na Gâmbia, no Mali e na Mauritânia.

Mouridiyya , actualmente a mais notória das confrarias senegalesas, fundada em Mbacke-Baol, nos finais do século XIX, por Ahmadou Bamba Mbacke (1850-1927), foi, durante os primeiros tempos o exemplo mais patente das alianças tecidas pelas antigas formações políticas wolof com as confrarias e o seu fundador, tomado pela administração colonial como propagandista da jihad .

Todavia, apesar da desconfiança inicial das autoridades, esta confraria de base étnica predominante wolof, graças em grande parte à férrea disciplina interna imposta pelo preceito mouride do jebelu (literalmente, obediência absoluta) e à glorificação do trabalho, acabou por se tornar, do ponto vista económico, desde os anos 1920, a principal confraria beneficiária do contrato social e, nas décadas mais recentes, uma organização dotada de grande capacidade de atracção religiosa, de bastante influência política e, à escala senegalesa, de colossal poder económico.

A cidade de Touba, situada na principal região produtora de amendoim, fundada em 1887 por Ahmadou Bamba e sede da mouridiyya desde 1926, tornou-se não só o mais importante centro religioso muçulmano senegalês, como também um território dotado de prerrogativas únicas no Senegal, inclusive económicas.

Tijâniyya , a confraria senegalesa com maior número de membros, foi fundada, em 1781-1782, no oásis argelino de Abou Samghoum por Ahmadou-al Tijani (1737-1815), está presente no Senegal desde os anos 1820-1830 e recruta preferencialmente entre as populações das regiões ocidentais do Senegal e do Fouta Toro, região de origem do seu primeiro grande dinamizador no Senegal, Oumar Tal (1794-1864).

Importante esteio da jihad conduzida, nos anos 1850 e 1860, por Oumar Tal contra a ocupação colonial, dividiu-se após a sua morte em vários ramos autónomos e rivais.

Globalmente menos presentes no cultivo do amendoim do que a mouridiyya , cada ramo tem as suas estratégias económicas e políticas, as suas peregrinações e mesmo, em alguns casos, expressão territorial e étnica próprias (Tal na região fula do Fouta Toro, Sy na wolof de Tivaouane, Ba na fula de Medina-Gonasse).

Às divisões ocorridas após a morte de Oumar Tal acrescentaram-se mais tarde outras, como foi, por exemplo, o caso do ramo dos Niasse de Kaolak. Fundado, nos anos 1870, por Abdoulaye Niasse (c.1884-1922), no seguimento de disputas sucessórias entre dois dos seus filhos, cindiu-se em finais da década de 1930 em dois ramos, um dos quais, o fundado por Ibrahim Abdoulaye Niasse (1902-1976), possui actualmente importantes ramificações na Gâmbia e no Norte da Nigéria e forte implantação nas comunidades de emigrantes africanos na Europa e nos Estados Unidos.

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* Eduardo Costa Dias

Doutor em Antropologia Social e coordenador dos Programas de Mestrado e de Doutoramento em Estudos Africanos do ISCTE. Tem desenvolvido trabalhos sobre as relações entre os dignitários muçulmanos e o Estado e as formas de transmissão do saber religioso nas sociedades islamizadas da Senegâmbia (Gâmbia, Guiné-Bissau, Senegal).

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
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