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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Movimentos religiosos contemporâneos > [ Muçulmanos ismailis na projecção internacional ] | |||
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Sendo uma comunidade muçulmana menos conhecida, por ser minoritária no islão, mas também por ter sofrido de propaganda histórica inverosímil, considero importante que, em primeiro lugar, se faça uma brevíssima apresentação dos ismailis.
Os ismailis no islão A formação da comunidade de interpretação muçulmana ismaili ganha solidez desde o tempo de Muhammad ibn Abd Allah, o profeta do islão, e vai adquirindo os contornos de uma comunidade com especificidade interpretativa a partir do momento em que reconhece Ali ibn Abu Talib como o primeiro imam. Ali era primo e genro de Muhammad, marido de Fátima – única filha do profeta, e de acordo com alguns dos seus seguidores, com Ali estava resolvido um problema crítico de sucessão na liderança da Ummah . O Imam do Tempo, de acordo com os Shia ismailis, é o líder religioso a quem se reconhece autoridade máxima na interpretação e adequação mais correcta e fidedigna da mensagem revelada – o Alcorão – aos tempos, lugares e contextos situacionais. O reconhecimento de uma instituição anunciada pelo próprio fundador do islão designada como imamato (‘imamat) que é liderada pelo descendente do Profeta, por via hereditária e numa linhagem tradicionalmente masculina, constitui o elemento principal de diferenciação entre xiitas e sunitas muçulmanos. No xiismo imamita os ismailis demarcam-se dos xiitas duodécimanos por terem reconhecido a autoridade de Ismail, o filho mais velho do imam Jafar-e-Sadiq, como imam , enquanto estes últimos reconheceram o filho mais novo Musa al-Kazim, de quem descenderia Muhammad al-Mahdi, o décimo segundo imam nesta linhagem, permanecendo oculto para estes crentes até hoje, esperando-se que um dia reapareça para repor a ordem e a perfeição. Os duodécimanos são a comunidade xiita maioritária no Irão e representam a maior parte da população iraniana. Presentemente, o imam dos ismailis é Sua Alteza o Príncipe Shah Karim al-Husseini Aga Khan IV. O título de alteza foi oferecido pela realeza britânica e o título de Aga Khan foi concedido pelo rei da Pérsia quatro gerações antes do actual imam ismaili. Os ismailis encontram-se espalhados pelos continentes africano, asiático, europeu e América do Norte, estimando-se em 15 milhões o seu número. Estão organizados em comunidades com estruturas de gestão dos assuntos internos e, embora mantendo a lealdade espiritual ao Imam do Tempo, vivem as suas vidas e encontram-se perfeitamente integrados nas sociedades em que coexistem. São comunidades que participam nas actividades cívicas dos seus países e contribuem sempre que possível para o desenvolvimento e progresso das mesmas, com a obrigatoriedade de serem leais cumpridores da lei dos governos que regulam as vidas dos cidadãos nos seus países.
Os ismailis nos contextos português e europeu Os ismailis na Europa estão maioritariamente situados em Portugal, no Reino Unido, França e Espanha, podendo encontrar-se pequenos núcleos comunitários noutros países da Europa, mas menos significativos. A sua proveniência é maioritariamente de países da costa oriental africana, e anteriormente, do estado do Gujarat na Índia. São portanto, ismailis Khoja , ou seja, de matriz étnica indiana. Importa referir esta particularidade, uma vez que os ismailis, como de resto o mundo muçulmano em geral, têm raízes culturais e manifestações de fé das mais variadas, dependendo da forma como povos locais foram aculturando e integrando o islão nesta vertente de interpretação que é o ismailismo. Assim, para dar um exemplo apenas, os ismailis da Ásia Central, nomeadamente os ismailis do Tajiquistão, que têm uma herança cultural persa e tendo recebido e mantido a fé em circunstâncias sociais, políticas e ideológicas específicas, desenvolveram práticas, formas de expressão religiosa e tradições muito diferentes das que apresentam os muçulmanos ismailis de origem indiana. A diversidade e o pluralismo entre as várias sociedades muçulmanas são uma factualidade evidente, contudo, geralmente ignorada. Para se compreender melhor esta realidade é preciso reconhecer que o impacto da chegada do islão aos vários povos do mundo se fez em circunstâncias históricas, psicológicas, e situacionais que tiveram influência na forma como os povos integraram diferentemente os elementos desta fé e depois as reinterpretaram e readaptaram aos seus contextos. A pluralidade e a diversidade cultural das sociedades muçulmanas, ao contrário do que se possa pensar, são muito apreciadas entre os ismailis por reflectirem a riqueza das expressões humanas e estéticas face ao divino e ao transcendental, e porque nessa multiplicidade de expressões se aprende a compreender e a integrar a diferença. Os muçulmanos ismailis portugueses vieram da ex-colónia portuguesa de Moçambique. Emigrantes da Índia, e nomeadamente da Índia Portuguesa, depois de contactos feitos em Goa, Damão ou Diu e com redes de interajuda já estabelecidas, adolescentes e jovens do sexo masculino foram chegando a África e depois trazendo os seus familiares, constituindo família, casa e comércio durante pouco mais de sete décadas, desde os anos de 1900 até à data do processo de descolonização e de guerra de independência deste país. Entre 1970 a 1976, com a progressiva emigração para Portugal, os ismailis passaram a representar uma parte nova do mosaico cultural e económico deste país e de outros da Europa. No processo de integração numa nova realidade, homens e mulheres empenharam-se em actividades comerciais centradas inicialmente na área da restauração, mobiliário e comércio, e aqui em Portugal, essencialmente de móveis e decorações de interiores. A educação, a maior das prioridades da comunidade e das famílias, passa sempre pelas escolas seculares, ficando a família e a comunidade responsáveis pela transmissão de valores e educação religiosa. Estabelecidos e integrados há já mais de três décadas em Portugal, e também pelo resto da Europa, os interesses económicos dos membros desta comunidade foram evoluindo para áreas de comércio, restauração e negócios a nível internacional, com especial incidência para países africanos, alguns de origem, e os mais jovens, de ambos os sexos, agora com formação superior e com especializações académicas de vária ordem, têm vindo a investir nas áreas profissionais mais diversas, como a medicina, engenharias, informação e tecnologias de ponta, marketing , arquitectura, ciências sociais e humanas. Projecção internacional e influência na situação mundial Conhecidos em primeiro lugar, como “retornados” das ex-colónias, depois como “indianos”, a seguir como “comunidade ismaelita” (mas não tanto como muçulmana!) e só há pouco tempo como xiitas, os ismailis foram gradualmente ganhando visibilidade social e política na realidade portuguesa. Em Portugal, a comunidade ganha visibilidade e projecção pelo reconhecimento da capacidade para um crescimento económico e social próspero e acompanhando a modernidade. Essa projecção tomou proporções de relevo ainda mais significativo quando a comunidade construiu o Centro Ismaili na zona das Laranjeiras. O Centro Ismaili é um edifício com características únicas no cenário arquitectónico português, que pretende ser representativo da integração multicultural desta comunidade muçulmana em Portugal, conjugando elementos de engenharia e arte com padrões artísticos, arquitectónicos e históricos inspirados nas heranças culturais árabo-islâmica, indiana e portuguesa. O Centro Ismaili de Lisboa está desenhado para a realização de actividades em três áreas específicas: de um lado encontra-se a Fundação Aga Khan, do outro a gestão do Conselho Nacional para assuntos da comunidade e área de ensino e aprendizagem da religião, e finalmente, a sala de orações, que para os ismaili Khoja é a Jamat Khana , ou seja, Casa da Comunidade – uma herança religiosa de tradição Indiana. Os Centros Ismaili que vão sendo construídos (há mais três em construção, no Dubai, no Tajiquistão e mais um no Canadá) são edifícios que se pretendem embaixadoriais, ou seja, que reflictam através da sua arte e arquitectura, através da engenharia e materiais utilizados, uma harmonia e integração da herança cultural e patrimonial da realidade onde estão integradas as comunidades de crentes, ao mesmo tempo que pretendem passar a mensagem de abertura e vontade de desenvolver iniciativas no âmbito da sociedade civil. A Rede para o Desenvolvimento Aga Khan representa o pólo institucional a partir do qual os ismailis e o seu imam exprimem a ética muçulmana da consciência social e as acções que aí se desenvolvem contribuem para a projecção internacional da comunidade e para o seu posicionamento face aos problemas no mundo. O quadro organizacional da AKDN que vemos permite ter uma ideia das mais variadas áreas do desenvolvimento social, económico e cultural, em que actua e se consultarmos o seu sítio na Internet (2) poderemos conhecer mais e melhor sobre as áreas do mundo em que intervém. O Imamato e a AKDN confiam grande parte do serviço da AKDN aos membros da comunidade ismaili residentes ou não nos países em causa. O profissionalismo, os valores que veicula, e a excelência na concretização das várias iniciativas promovem uma imagem de marca de mérito internacional e permeiam uma saudável parceria com outras instituições nacionais ou internacionais, também essas de prestígio e mérito reconhecidos. A projecção a nível nacional e internacional da comunidade a partir de Portugal também se fez notar através das acções levadas a cabo pela Fundação Aga Khan, a qual tem desenvolvido um conjunto de acções vocacionadas para fora da comunidade religiosa e servindo os interesses da comunidade portuguesa e africana nas áreas da educação, da solidariedade social, saúde e cuidados primários, bem como do desenvolvimento rural. Conjuntamente com as instituições governamentais, o Centro Ismaili também tem um gabinete da AKDN denominado Focus Humanitarian Assistance – uma instituição internacional, criada por Sua Alteza o Príncipe Aga Khan, que visa responder atempada e eficazmente a situações de crise ou de catástrofes naturais nas áreas da jurisdição de Portugal, que incluem países dos PALOP e Espanha. Os fundos que servem para muitas das acções institucionais dependem de donativos dos ismailis que contribuem regularmente para as instituições oferecendo os seus préstimos numa tradição de voluntariado. O trabalho realizado pela Fundação Aga Khan neste país e o interesse sempre presente de elevar a consciência social através do trabalho institucional, levou a que se criasse um protocolo entre a AKDN e o governo português, celebrado em Dezembro de 2005, para efeitos de colaboração em parceria na resolução de alguns problemas sociais, económicos e educacionais no país e, a partir daqui, para outros de língua oficial portuguesa. Entre outros, a AKDN está empenhada em projectos de atribuição de microcrédito, creches, lares para idosos, academias de excelência e outras acções na área da cultura. A nível da Europa, muitas outras acções e acordos têm sido levados a cabo pelas instituições da Rede para o Desenvolvimento (3) conjuntamente com outros governos europeus, nomeadamente com o da Alemanha, do Reino Unido e de Portugal, com os quais se têm desenvolvido um número considerável de iniciativas de âmbito social, económico e cultural, em diversas zonas do mundo em desenvolvimento, incluindo o Afeganistão, Egipto, alguns países da Ásia do Sul e Ásia Central e noutras zonas de África. Para além da preocupação sobre as questões do desenvolvimento económico e social em inúmeras realidades carenciadas, os ismailis têm-se dedicado também a algum desenvolvimento intelectual e produção académica e literária. Concluiremos este artigo com algumas considerações do que na Europa se tem vindo a fazer nesta área em concreto. Durante muitos séculos e até muito recentemente, os ismailis viveram numa cultura de secretismo e dissimulação, tendo sido alvos de propaganda anti-ismailita e de perseguições históricas com vista ao seu extermínio. A disseminação de lendas, como a dos Assassinos, em grande parte fruto das histórias exóticas e fabulosas trazidas pelos Cruzados nas suas passagens pelo Oriente, bem como toda uma propaganda anti-ismailita produzida por outras correntes do islão, e a ausência de produção literária da própria comunidade (4) , promoveram imagens distorcidas e falsas sobre esta comunidade muçulmana. A recuperação de muitos textos e outros materiais que escaparam à destruição massiva de bibliotecas como a de Al-Azhar no Cairo, aquando da queda do império Fatimida, ou das fortalezas de Alamut, na Síria, e a compilação de materiais vindos da Ásia Central e do subcontinente indiano, têm permitido a muitos estudiosos e intelectuais de renome internacional, o estudo e a pesquisa, bem como a produção de trabalhos e obras publicadas com o patrocínio do Instituto de Estudos ismailis em Londres. O Instituto de Estudos ismailis foi criado por Sua Alteza o Aga Khan em 1977, e “com o objectivo de promover o estudo e a aprendizagem sobre as culturas e sociedades muçulmanas, tanto as históricas como as contemporâneas, e a compreensão da sua relação com outras sociedades e credos”, e “encorajando uma abordagem interdisciplinar, tem colaborado com várias outras instituições de aprendizagem a nível internacional, incluindo a Universidade de McGill no Canadá, a Universidade do instituto de Educação de Londres, com a SOAS ( School of Oriental and African Studies ), com a Universidade da Jordânia, e com membros de outras universidades do Reino Unido” (5), incluindo Cambridge, Oxford e Edimburgo. Desta instituição têm resultado trabalhos realizados por equipas multidisciplinares de renome internacional na área de estudos islâmicos, do passado e do presente, e concretamente sobre o xiismo e o ismailismo, depois publicados e traduzidos nas mais diferentes línguas. Daqui tem saído também um vasto número de especialistas em estudos islâmicos, que passam por um processo de aprendizagem interdisciplinar e multicultural, com trabalhos de campo nas mais diversas zonas do mundo muçulmano, e com formação nas mais variadas áreas de intervenção profissional. O IIS tem sido consultado como referência importante e credível no mundo muçulmano pelos órgãos decisores de muitos países e por outras instituições seculares e religiosas. Conciliando o equilíbrio da vida material numa perspectiva religiosa, levando a cabo iniciativas que reflictam a ética da consciência social institucionalizada, os ismailis que já trazem a sua própria sensibilidade e experiência de povo de diáspora, orientados pela autoridade carismática do seu Imam do Tempo, esforçam-se pelo seu progresso material e intelectual, mas também como parte da sociedade civil, para o progresso e bem-estar das sociedades onde se integram.Informação Complementar A consciência social através da acção institucional O que há de “islâmico” num hospital para leprosos construído a partir de restos de azulejos encontrados numa lixeira abandonada na Índia? O que há de “islâmico” na construção de sanitários e água potável para cada grupo doméstico? O que há de “islâmico” numa casa de férias construída por dois irmãos que queriam descansar em total harmonia e paz com o ambiente, com o clima e com o formato da paisagem local? Este é o tipo de desafio intelectual e social que o Prémio de Arquitectura Aga Khan coloca aos interessados e aos próprios ismailis. No fundo, o desafio de revisitar a ética muçulmana de consciência social à luz dos tempos e das necessidades de uma época é a leitura que os ismailis fazem do islão a partir das orientações do seu líder espiritual, a quem cabe a última palavra quanto à interpretação mais adequada do Alcorão aos tempos e circunstâncias de vida. Povos de diáspora, com sensibilidades culturais e sociais para diversos contextos e realidades e fazendo parte de uma comunidade mundialmente espalhada, os ismailis vivem as suas vidas procurando a sua própria prosperidade mas sempre com a premissa de valorizar a sua passagem pelo mundo deixando algo mais do que aquilo com que chegaram, e que esse algo seja o seu contributo como parte da sociedade civil.
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