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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Influência política das religiões > [ Áreas e fronteiras religiosas em África ] | |||
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“Invenção religiosa” versus “renovação religiosa” Antes de mais porque o conceito de animismo é bastante redutor: por exemplo, não permite distinguir experiências tão diferentes como as dos Mossi do Burkina Faso, cuja visão cosmológica e cujos cultos estão centrados no nam , quer dizer, a força que autoriza certos homens a dominar outros, e as dos Diola do Senegal ou dos Maka dos Camarões que perfilham uma visão dispersa da sociedade e que desconfiam do poder forte. Por outro lado, o conceito de animismo tende a fixar as sociedades africanas numa tradição eterna, imutável, quando afinal as análises históricas e antropológicas mais sérias sublinham o carácter movediço destas religiões ditas “tradicionais”. Assim, as relações entre comunidades religiosas que aqui nos interessam devem ser vistas neste contexto dinâmico. Dinâmicas ligadas ao que Jean-Pierre Chrétien chamou “a invenção religiosa” (Chrétien, 1993). Dinâmicas igualmente associadas às perturbações sociais, económicas e políticas que atravessaram a África e que fazem da religião um dos elementos que exprimem a mudança social, sem necessariamente a traduzirem de modo directo e imediato. Insisto neste ponto porque me parece muito problemático ver na importância do religioso, em África e fora dela, uma simples resposta a uma situação de crise (é o tema do facto A esta luz deve ser interpretado o que se designa como renovação religiosa em África e o aparecimento de novos movimentos religiosos, quer sejam muçulmanos, cristãos, proféticos ou outros. Estas renovações são portadoras de mobilizações, nalguns casos susceptíveis de implicar rivalidades e conflitos entre comunidades. Do lado dos cristãos, as campanhas de evangelização de certos grupos muito activos assumem a forma de “cruzadas”, por vezes conduzidas por grandes pregadores internacionais, como o pastor alemão Reinhard Bonnke. Tais “cruzadas”, como pude constatar no Quénia, chegam a suscitar problemas de ordem pública na medida em que afectam outras comunidades religiosas, digamos mais “tradicionais”, onde se manifestavam em “ hapennings ” dificilmente controláveis. As daw'a são a versão muçulmana destas novas formas de evangelização. A palavra daw'a significa “apelo” e designa as formas de pregação e de propagação da fé defensoras de um activismo religioso na vida de todos os dias. Tal como nos grupos cristãos, a daw'a assenta na acção de pregadores cuja retórica e estilo são bastante similares aos dos pastores evangelistas. Também aí se encontra a mesma crítica aos quadros da religião estabelecida (contra os ulemas “pervertidos”) e a mesma preocupação por criar uma nova liderança religiosa no seio da comunidade. Num país como a Nigéria estas campanhas redundaram em violência entre as confrarias sufis (Qadiriyya, Tijanyya) e os “fundamentalistas” do movimento Izala (exactamente Bida Yan Izala: “os que rejeitam a inovação”). Inclusivamente provocaram verdadeiros motins entre muçulmanos e cristãos, nomeadamente nos campos do Norte do país. Deve ainda acrescentar-se que estas novas mobilizações se apoiam, tanto num caso como noutro, em redes internacionais que financiam as suas actividades de propagação da fé e que formam os seus quadros. Esta nova globalização da actividade religiosa é um elemento que merece ser considerado na geopolítica complexa da renovação religiosa, onde se cruzam dinâmicas internas e estratégias globais. Mas a situação é tanto mais difícil de destrinçar quanto os “centros” são múltiplos e rivais entre si. No caso muçulmano, estamos em presença de uma grande diversidade de “agências” ou de “fundações” que se articulam, não tanto em função das diferentes interpretações do islão, como sobretudo em função das competições políticas entre Estados, partidos ou alianças, correspondentes a interesses políticos e estratégicos internacionais específicos. Em suma, as recomposições religiosas, que põem em causa as fronteiras entre comunidades religiosas, são ao mesmo tempo reflexo de mudanças sociais internas e expressão localizada de rivalidades políticas mais largas, numa dialéctica entre o global e o local, entre o interno e o exterior.
A politização do religioso Há enfim um elemento que participa plenamente destas recomposições e que é o vínculo entre o campo religioso e o campo político. A politização das religiões é uma dimensão importante destes problemas. Claro que isto não é novo e foi abundantemente sublinhado por historiadores e antropólogos, como prova o estudo dos fundamentos sagrados do poder ou das rebeliões religiosas, por vezes ritualizadas, na África pré-colonial. Quanto à colonização, sabe-se que ela esteve na origem de um novo mapa das religiões em África e da formação de novas elites, embora as conversões, talvez mais do que rupturas, fossem modalidades inéditas de inscrição – contraditória – dos africanos num novo universo. Acrescente-se porém que depois das independências as construções políticas puderam interferir nas referidas dinâmicas religiosas. Podemos constatar que é quando estas interferências se produzem que, frequentemente, se perturbam as relações entre comunidades. Examinemos rapidamente alguns cenários do encontro entre o religioso e o político. Comecemos pela natureza do Estado. A maior parte dos Estados africanos declaram-se laicos, logo, são em princípio neutros do ponto de vista religioso. Existem certamente excepções: a Etiópia imperial cristã, antes da revolução de 1974, e os Estados oficialmente islâmicos (Sudão, Mauritânia, Comores, Djibuti). Obviamente, nestas situações em que há uma religião de Estado, cria-se um contexto portador de tensões quando existem “minorias” importantes e activas, caso do Sudão. Todavia, a laicidade do Estado nem sempre se pode entender à letra. Com efeito, ela não impede que as autoridades tentem dominar o campo religioso ou instrumentalizar certos grupos ou autoridades religiosas para reforçar a sua legitimidade e assegurar mediações e ligações sociopolíticas. O caso do Senegal é particularmente interessante, com as suas estreitas relações entre as confrarias sufis e o poder político. A laicidade oficial articula-se com uma crescente islamização do campo político e do Estado, de tal maneira que não é certo que o Senegal possa ter de novo um presidente não muçulmano, como Senghor. Isto não quer dizer que a minoria cristã senegalesa (6% da população) esteja em dificuldade, mas esta situação conduz, apesar de tudo, à marginalização política desta comunidade. O Quénia seria um caso inverso: as minorias muçulmanas da costa do oceano Índico e do Norte (8% da população) não se reconhecem no populismo de ressonância cristã e bíblica do Presidente Arap Moi. Houve quem falasse a este respeito de neoconstantinismo, susceptível de levar a fecharem-se sobre si mesmos os grupos religiosos que não se sentem a participar neste pacto. Dito isto, em nenhum destes países se verifica opressão religiosa. Democratização e não-secularização Das transições democráticas em África não resultou uma secularização do político. Inversamente, contribuíram para introduzir de maneira ainda mais visível o religioso no campo político. Partidos e homens políticos procuraram apoios políticos e financeiros junto de tal ou tal igreja ou grupo religioso, o que provocou instrumentalização de alguns deles. O pluralismo político não reproduz de modo claro o pluralismo religioso, mas as tentativas de utilização do religioso pelo político são evidentes e podem contribuir para criar clivagens entre comunidades e grupos religiosos, embora as Constituições da maior parte dos Estados africanos proíbam partidos políticos de base religiosa (mas também étnica ou regional). Foi o caso, por exemplo, de Moçambique onde nas eleições após os acordos de paz a RENAMO beneficiou largamente do voto muçulmano, enquanto a FRELIMO estava mais identificada com as igrejas cristãs (pentecostais, católicos). Num outro país lusófono, a Guiné-Bissau, as rivalidades entre as duas grandes confrarias muçulmanas (a Qadiriyya e a Tijaniyya), com perfil social bastante distinto, exprimem-se fortemente no terreno político através de afinidades partidárias bem diferenciadas. Em suma, a democratização não é estranha à politização e à radicalização das clivagens religiosas quando estas tendem a confundir-se com clivagens partidárias e étnicas – basta ver o caso da Costa do Marfim. A crescente importância das religiões na vida social assegura-lhes um lugar privilegiado na sociedade civil e na esfera pública. A diminuição dos recursos estatais e, portanto, dos campos de intervenção das instituições públicas favoreceu esta situação, na medida em que as instituições religiosas estão cada vez mais presentes em sectores como a saúde, o trabalho social, o desenvolvimento local (papel das ONG's), a educação. É evidente que esta presença social e esta politização das confissões e grupos religiosos podem conduzir a exigências específicas de tal ou tal comunidade religiosa (ou dos seus representantes) para que algumas das suas particularidades tenham reconhecimento oficial. Existe nomeadamente, na maior parte dos países onde as comunidades muçulmanas são suficientemente numerosas e activas, um lobbying islâmico que critica o carácter ocidental e cristão das instituições públicas e que luta pelo respeito da herança islâmica. Estas reivindicações reportam-se sobretudo às questões da educação, do direito (o problema da introdução da shari'a no direito privado e por vezes no direito penal) e dos dias feriados... Muitas vezes estas exigências provocaram ásperas controvérsias e alimentaram debates políticos exaltados (como em Moçambique e no Quénia) e por vezes, mais raramente, arrastaram confrontações violentas entre comunidades religiosas.
Radicalização da pluralidade religiosa Estas reflexões levam assim a concluir que a pluralidade religiosa tão característica de numerosos Estados africanos é susceptível de se radicalizar, sobretudo em situações onde se assiste à instrumentalização recíproca do religioso e do político e onde as fidelidades religiosas coincidem com as identidades territoriais ou étnicas. Todavia, convém não exagerar esta tendência. Se há violências e guerras em África, elas não se confundem, na maioria dos casos, com guerras de religiões. Basta ver que países como a Somália, o Ruanda ou o Burundi são relativamente homogéneos do ponto de vista religioso. Em muitos Estados africanos reinam a tolerância e a coabitação religiosas, as quais derivam não tanto do progresso da laicidade, como sobretudo do hábito da diversidade cultural, do carácter impreciso das identidades e do sentido pragmático da religião. Pode acontecer que as mudanças e as decomposições que atravessam as sociedades africanas contemporâneas modifiquem esta situação e que a inflação das mobilizações religiosas – que está longe de ser uma especificidade africana – provoque uma radicalização das diferenças religiosas. No actual estado de coisas, temos sobretudo dois exemplos destas situações de violência religiosa: a Nigéria e o Sudão. Apesar de merecerem análises específicas, terei de as abordar sumariamente. Na Nigéria, os conflitos inserem-se numa cultura de violência que se instaurou sobretudo por causa da explosão urbana, da guerra do Biafra, da corrupção da classe dirigente, da ausência de regulação política. Esta cultura da violência alimentou-se da segmentação territorial com a criação de 36 Estados federados, em que cada um pretende estabelecer as suas fronteiras e afirmar a sua identidade num contexto onde prevalece a pluralidade religiosa e étnica, embora certos grupos exerçam uma certa hegemonia. Mas convém desde logo sublinhar que estas confrontações religiosas não opõem forçosamente cristãos e muçulmanos. Os três pólos do islão nigeriano (as confrarias, os reformistas/fundamentalistas, o islão messiânico e populista) estão longe de ter entre si relações pacíficas. E a estigmatização do adversário é regra. Conheço menos o caso do Sudão, mas parece-me ser bastante mais complexo que a simples clivagem habitualmente apresentada entre o Norte muçulmano e o Sul cristão. Se é incontestável que esta clivagem, saída da colonização britânica, tem algum fundamento e produziu histórias e culturas diferentes, os especialistas explicam que as coisas não são assim tão simples. Do ponto de vista confessional, o Sul é muito mais diversificado do que se poderia pensar (católicos, protestantes, animistas) e o Norte também não é um bloco monolítico (diversidade e rivalidade das confrarias, oposição entre confrarias e fundamentalistas). Um tal pluralismo religioso complexo é propício a alianças a priori contra natura, como o apoio do Sudão à guerrilha dos integristas cristãos do Uganda… ou os ataques governamentais contra os grupos armados muçulmanos do povo nuba. Os choques de interesses parecem menos religiosos que políticos e territoriais, com os recursos petrolíferos como pano de fundo. As religiões são sobretudo formas de mobilização e catalisadores de paixões (Marc-Antoine Pérouse de Montclos, 2002). Todavia, as paixões religiosas, tal como as paixões étnicas, colocam uma questão de fundo: por que é que os homens se deixam tanto mobilizar ou manipular por estas categorias de pertença?Informação Complementar O papel social das religiões Insistir na análise dinâmica das religiões africanas a fim de compreender o seu papel social e a evolução das relações entre comunidades diferentes não significa que a densidade do facto religioso em África não deva ser considerada. Com efeito, ao contrário do que postula uma visão desenvolvimentista muito ocidental – supostamente universal – da evolução das sociedades humanas, a secularização não constitui o horizonte inelutável da modernização. Quer dizer que a ausência de secularização não significa necessariamente consciência alienada ou mau desenvolvimento. Julgo que Achille Mbembe tem perfeitamente razão ao explicar que “o campo religioso representa em África um horizonte inapagável e portanto incontornável na análise e na compreensão das sociedades actuais”. E prossegue: “Os factos que o atestam não podem ser reduzidos a um simples ensaio infantil para controlar a vida (…). O religioso participa de uma dimensão constitutiva da vida. Importa tomá-lo a sério tanto quanto as outras determinantes que estruturam de maneira aberta a vida presente e futura dos africanos” (Mbembe: 1988, 18). Neste sentido, as religiões participam plenamente nas construções sociais de que elas são um elemento importante e até crucial. Alguns autores explicaram mesmo que elas eram em certos contextos um elemento central da estruturação da sociedade civil. Eduardo Villalon demonstrou-o para o Senegal onde, segundo explica, as confrarias sufis exercem um papel de mediação entre o Estado e a sociedade (Villalon, 1995). A um nível mais cultural e simbólico, pode dizer-se que os movimentos religiosos são uma tentativa para dar sentido à mudança e mesmo para a tornar possível, através do que alguém chamou “uma nova ordem moral de autoridade” (Otayek, 2000). J. L. Amselle — Branchements. Anthropologie de l'universalité des cultures. Paris: Flammarion, 2001. J. P. Chrétien (dir) — L'Invention religieuse en Afrique. Paris: Karthala, 1993. A. Mbembe — Afriques indociles : christianisme et pouvoir d'Etat en société postcoloniale. Paris: Karthala, 1988. F. Constantin ; C. Coulon (dir) — Religion et transition démocratique en Afrique. Paris: Karthala, 1997. Otayek (R) — Identité et démocratie dans un monde global. Paris: Presses de Sciences Po, 2000. M. A. Pérouse de Montclos — «Le Soudan, une guerre de religions en trompe-l'oiel». In C. Coulon (dir.) — L'islam africain branché, Année politique africaine 2002. Bordeaux: CEAN. Paris: Karthala, a publicar. E. Villalon — Islamic Society and the State. In Senegal: Cambridge University Press, 1995.
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