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- JANUS 2007 -



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A política externa do Vaticano de Bento XVI

Bruno Cardoso Reis *

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O cardeal Joseph Ratzinger foi eleito como 256.º papa em 19 de Abril de 2005. Sucede assim a João Paulo II, o carismático protagonista do segundo pontificado mais longo da História, o que não será tarefa fácil. Tanto mais que não sendo Ratzinger uma escolha inesperada nos meios romanos – o prelado alemão era apontado como um dos favoritos pelos «vaticanólogos» – teve, no entanto, um acolhimento ambíguo da opinião pública global (1). E isto, fundamentalmente, por duas razões. Por um lado, por Ratzinger ser o teólogo conservador responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé – antes chamada de Santo Ofício – com uma função disciplinadora que tende a criar animosidade e um certo problema de imagem. Por outro lado, porque havia uma forte expectativa de ver um papa de fora da Europa, que reflectisse o peso crescente dos fiés não-europeus na Igreja Católica: por exemplo, a América Latina representa c.46% do total dos católicos face a cerca de 28% da Europa.

A eleição do cardeal conservador alemão reflecte, no entanto, o equilíbrio actual de poder no catolicismo, com a elite dos bispos – aqueles que são elevados a cardeais, os únicos com voto na eleição papal – dominada por europeus, que constituíram 46% do total dos cardeais votantes no conclave de Abril de 2005, face, por exemplo, a 18% desse total para a América Latina. O esforço de internacionalização da elite cardinalícia até pode ser visto como significativo para o ritmo normal numa igreja milenar – em 1939, os cardeais europeus representavam 86% do total– mas não foi ainda evidentemente suficiente para alterar este predomínio europeu. Uma organização que se afirma universal – é esse o sentido da palavra grega de onde deriva o termo católico – dificilmente poderá, no entanto, depois de quebrado o monopólio italiano de cinco séculos do trono de S. Pedro, continuar a resistir à expectativa de ver eleito um papa de fora do Velho Continente. Este será um marco decisivo duma real internacionalização do poder no catolicismo. Um ponto relevante é a probabilidade de que o reforço do poder dos prelados não-europeus, talvez contrariando as expectativas dos menos atentos, reforce o campo conservador na cúria, pois o catolicismo extra-europeu tende a ser mais tradicionalista.

Para já importa observar até que ponto a acção de Bento XVI irá mostrar atenção a este peso cada vez maior do catolicismo não-europeu. Os textos e livros de Ratzinger apontam, no entanto, no sentido contrário, de alguém ainda muito centrado na identidade europeia original da Igreja Católica (2). E as suas primeiras nomeações importantes também foram pouco prometedoras: o seu sucessor como prefeito da Congregação da Doutrina da Fé é um arcebispo norte-
-americano de origem portuguesa, o cardeal Levada, e o novo secretário de Estado é um italiano, o cardeal Bertone. Elas parecem reflectir sobretudo o desejo de Ratzinger de contar com colaboradores de confiança: ambos são conservadores, ainda que relativamente moderados, que tinham trabalhado antes sob as suas ordens. Mas qual é afinal o peso internacional do papado e em que medida ele depende da pessoa do papa?

 

Vaticano: micro-Estado e poder global

O Vaticano é, dependendo da perspectiva, ou um dos Estado mais recentes, ou um dos mais antigos. A cidade-Estado do Vaticano foi reconhecida pelos acordos de Latrão entre a Itália e o papado apenas em Fevereiro de 1929; mas, desde pelo menos o século VIII que existiu alguma forma de Estado papal. O Vaticano é sobretudo interessante porque mostra que não há uma relação directa entre poder material e capacidade de acção no campo internacional. Sendo o Estado mais pequeno do mundo – pelo que em termos de todos os tradicionais indicadores de poder tem números ridiculamente pequenos –, no entanto, poucos questionarão que é uma potência com enorme peso internacional, de que o exemplo mais dramático nas últimas décadas foi o papel de João Paulo II no final da Guerra Fria. A Santa Sé é um micro-Estado, mas é também um poder global com uma política externa correspondente ao estatuto de sede da igreja mais numerosa e mais global do mundo: com cerca de 1,08 mil milhões de fiéis por todos os continentes.

Mas como é que uma Igreja é também um Estado? O papado esteve «presente na criação» do sistema internacional e a doutrina católica sempre recusou que a soberania ou o envio de embaixadores fosse algo exclusivo dos Estados seculares. A Roma papal foi o primeiro local onde se fixaram embaixadas mais ou menos permanentes, e os papas estiveram entre os primeiros soberanos a enviar núncios (embaixadores). Sobretudo, o Estado papal sempre foi concebido como essencial para a missão religiosa do papa, que tinha de ser visivelmente independente de toda e qualquer interferência externa. Esta imunidade soberana, este poder negativo ou de resistência tem sido amplamente usado pelo papado.

Em suma, o papado nunca aceitou o suposto corolário do Tratado de Vestefália, de 1648, de que as religiões não deveriam ter um papel internacional, subordinando-se inteiramente a cada Estado. O que se percebe, pois tal levaria à sua extinção. Nesse sentido, o contínuo peso internacional do papado é um argumento adicional para os críticos de uma visão demasiado linear do chamado modelo de Vestefália, ainda antes do aparecimento de Khomeini e bin Ladin vir acrescentar urgência a esta discussão. O Vaticano é a sede de uma rede global muito antiga, facto comum a outras correntes religiosas, que, tal como as empresas multinacionais ou as ONGs, mostram que a vida internacional não é só feita de Estados (3). Mas o Vaticano é também a sede de uma rede que tem muito de estatal, não só pelo estatuto soberano da sua cabeça, o papa, como também pela hierarquização e centralização do catolicismo a que preside.

Uma faceta importante do peculiar poder papal é, portanto, captada pela noção de poder suave ( soft power ) popularizada por Joseph Nye, o qual apresenta o Vaticano como um exemplo paradigmático da relevância desse seu conceito (4). Pois sem dúvida que o papa exerce um poder de atracção – afinal a adesão ao catolicismo é voluntária. Parece-nos, no entanto, que o poder da Santa Sé não pode ser reduzido a este aspecto. Seria um erro ignorar que o papa exerce uma autoridade normativa – ética e religiosa – muito importante. Mas seria igualmente um erro esquecer que detém um poder institucional bem duro. A permanência na Igreja pode ser actualmente voluntária, mas a organização hierárquica do catolicismo, centrada no papa, não o é. O carácter peculiar desta combinação entre igreja e Estado, jogando em dois tabuleiros ao mesmo tempo – com o prestígio e poder normativo de um líder religioso e com a imunidade e a capacidade de acção independente de um líder estatal – pode ser traduzida em termos do Vaticano como um Estado de poder suave, e do catolicismo como uma igreja de poder duro.

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A estratégia internacional do Vaticano e o papa Ratzinger

Tendo em conta estas dinâmicas, o que trará de diferente Bento XVI? Num ponto a sua eleição foi típica: a idade. Depois de um pontificado longo é tradicional ser eleito alguém particularmente idoso, garantindo um reinado curto e, portanto, essencialmente de transição. O seu perfil de disciplinador parece representar o desejo de evitar grandes mudanças e agitações imediatas, sem desiludir definitivamente expectativas reformistas. No entanto, os avanços da medicina moderna vieram complicar estas lógicas tradicionais, que aliás João XXIII já tinha confundido ao mostrar que mesmo em poucos anos (1958-1963) se podem iniciar grandes reformas. Isso seria, no entanto, inesperado no caso de Ratzinger. Os principais indicadores serão, em todo o caso, os seus discursos e encíclicas, assim como as suas nomeações.

Quanto a discursos e encíclicas é duvidoso que haja grandes novidades: o seu pensamento é bem conhecido. Foi assim com a anódina encíclica Deus caritas est , de Dezembro de 2005, que, em todo o caso, pareceu querer mostrar uma face mais suave de Ratzinger. Já a nomeação sistemática de figuras claramente conservadoras para grandes dioceses, para o cardinalato, e para a cúria, poderá tornar o próximo conclave ainda mais previsível e acirrar tensões internas. O respeito pela sensibilidade dominante em cada diocese confirmaria o seu perfil como uma figura de transição. Para já, foi significativa a escolha de um italiano para novo secretário de Estado papal. A nomeação de um cardeal do Terceiro Mundo para este cargo fundamental – simultaneamente chefe do governo e da diplomacia do papa – poderia ter dado um peso adicional no campo internacional ao Vaticano. Pois se um papa polaco como João Paulo II tinha uma autoridade especial para lidar com o problema das relações entre Leste e Oeste no contexto da Guerra Fria, um secretário de Estado papal não-europeu teria um peso acrescido numa questão, a relação entre o Ocidente e o resto do mundo, que promete ser fundamental na dinâmica internacional presente e futura por via dos problemas criados pelo dispersão do poder durante séculos concentrado na Europa. Teria significado também um desejo de atender à importância crescente do catolicismo de fora da Europa. Não foi assim.

O perfil do cardeal Ratzinger – documentos como a Dominus Jesus de 2000, ou as suas dúvidas públicas relativamente à pertença da Turquia à Europa– levantaram desde logo questões sobre se ele, como papa, teria um empenho semelhante ao de João Paulo II nas relações com outras religiões. Sendo de particular importância no actual contexto internacional o relacionamento com o islão, novas palavras pouco diplomáticas – desde Paulo VI que o Vaticano não tem um pontífice com alguma experiência prévia na diplomacia – como as que Bento XVI proferiu na visita à Alemanha, em Setembro de 2006, serão muito mal recebidas. Mas neste, como noutros aspectos fundamentais, não é claro que Bento XVI deseje introduzir rupturas. Daí o esforço que se seguiu para desvalorizar e contextualizar a polémica citação escolhida por Ratzinger sobre o profeta Maomé. Mas é no mínimo incerto que o novo papa mostre vontade de retomar, por exemplo, os encontros pela paz de líderes religiosos de todo o mundo em Assis. Em todo o caso, a ideia de uma espécie de papa neoconservador – de um promotor de cruzadas – parece-nos errada. Afinal o jovem Ratzinger viveu os horrores da Segunda Guerra, e qualquer ruptura neste campo levantaria grandes resistências no seio do catolicismo. O seu apelo a soluções pacíficas na crise no Líbano, em Agosto de 2006, correspondeu ao padrão esperado. A proximidade, a existir, com a polémica administração Bush, será provavelmente mais ao nível de uma agenda moralizadora com alguns reflexos internacionais no que diz respeito, por exemplo, à questão do planeamento familiar; mas nisso ele continuará a diplomacia de João Paulo II.

No campo social, e logo na sua primeira homilia, Bento XVI indicou querer manter o empenho no combate à pobreza, que tem sido um elemento central na estratégia internacional do Vaticano. E que se manifestou aliás recentemente, em aliança com outros actores internacionais estatais e não-estatais, no empenho papal bem sucedido no perdão das dívidas dos países pobres aquando do Jubileu do ano 2000. Resta saber que grau de prioridade e forma exacta tomará com Ratzinger.

O duplo mote – justiça e paz – é, realmente, recorrente nos textos e instituições do catolicismo no último século. O empenho nestes dois objectivos traduz o compromisso com aspectos essenciais da fé cristã. Mas cabe também notar – para o campo que nos interessa das RI – que ele resulta num reforço da tendência para limitar o poder dos Estados seculares: seja pelo lado dos direitos sociais e de associação, seja pelo lado da ideia de uma ética internacional desafiando a discricionaridade da sua acção externa.

A eleição de Ratzinger – um papa velho da Velha Europa, conservador, aparentemente pouco carismático – representa um teste interessante à natureza da influência internacional do Vaticano. É certo que ele já quebrou uma tradição milenar: no novo escudo da Santa Sé substituiu a tradicional tripla coroa papal pela simples mitra de bispo. Mas entre as reformas menos prováveis de um papa Ratzinger estará qualquer diminuição do poder duro papal. O seu passado indica que Bento XVI valoriza o centralismo católico: a capacidade de intervenção da cúria romana em qualquer diocese ou instituição católica no mundo. Particularmente importante para Ratzinger será ainda a noção do papado como um poder soberano, que não se deixa determinar por pressões externas. Se algum receio existe é mesmo o inverso: o de um papa excessivamente imune aos sinais dos tempos. No entanto, a eleição de Bento XVI é ainda demasiado recente para permitir respostas taxativas quanto ao que serão as suas grandes opções na vida interna e externa do catolicismo.

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1 - “Choice Accentuates the Divide”. The Washington Post. 20 de Abril de 2005, p. 16.
2 - Joseph Ratzinger — Europa: Os seus fundamentos hoje e amanhã . Lisboa: Paulus, 2005, 2.ª ed.
3 - O argumento mais desenvolvido neste sentido é o de Barry Buzan e Richard Little — International Systems in World History: Remaking World History . Oxford, OUP, 2000. Ainda que a importância das redes religiosas nem sempre seja tão desenvolvida como consideramos possível.
4 - Joseph Nye — The Paradox of American Power. Oxford: O.U.P., (10) 2002.

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* Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre na área de História das Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge. Doutoramento em fase de conclusão no Departamento de Estudos da Guerra do King's College em Londres. Investigador associado do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, onde desempenhou funções de editor da respectiva revista. Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Foi recentemente publicado pelo ICS o seu estudo “Salazar e o Vaticano” que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes.

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Bibliografia

Allen, J. — The Rise of Benedict XVI... . Nova Iorque: Doubleday, 2005.

Graham, R. — Vatican Diplomacy... . Princeton: Princeton UP, 1959.

Hanson, E. — The Catholic Church in World Politics. Princeton NJ: PUP, 1987.

Reese, T. — No Interior do Vaticano. Mem Martins: Europa-América, s.d. .

Shelledy, R.B. — The Vatican's Role in Global Politics. SAIS Review 24 (2) 2004: 149-162.

COLONNA-CESARI, C. — Urbi et Orbi: A Geopolítica do Vaticano. Lisboa: Caminho, 1993.

DUQUESNE, J.; ZIZOLA, G. — Benoît XVI... . Paris: Desclée de Brouwer, 2005.

NICHOLS, A. — The Thought of Pope Benedict XVI: An Introduction to the Theology of Joseph Ratzinger. London: Continuum, 2005.

RATZINGER, J. — Europa: Os seus fundamentos hoje e amanhã. Apelação: Paulus, 2005.

REIS, B. — “Temos Papa! Bento XVI, o Vaticano e o Mundo”. Relações Internacionais: (6) 2005, pp. 143-153.

Idem — “Religiões, Estados e Relações Internacionais: os casos da Santa Sé, Irão, e Tibete”. Política Internacional: (21) 2000: 195-228.

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