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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Violência e pacifismo > [ Manipulação dos textos sagrados e violência ] | |||
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A violência e o sagrado A relação dos textos sagrados com a violência não é simplesmente fruto de uma manipulação posterior, externa e ilícita. Esta questão está estabelecida, e com enorme complexidade, no interior do próprio fenómeno religioso. Naquela que é porventura a última grande teorização do sagrado realizada no século XX, René Girard (2) recorda que, na experiência sacra ancestral, há uma violência fundadora transferida simbolicamente para a transcendência, e que não existe construção identitária crente que não integre ou se debata com aquilo que, na linguagem do mito, é o homicídio fundador, as pulsões vitimárias e os traços sacrificiais. Mesmo quando a religião se coloca do lado da vítima, e torna inviáveis todos os postulados violentos e sacrificiais, a violência tem sempre um papel referencial e os sistemas religiosos confrontam-se com ela a partir do seu fundo mais residual. Passar de expressão violenta à proposição irénica não acontece por um automatismo, pois nenhum discurso religioso está, na sua formulação, totalmente isento de violência. O mesmo é válido para as culturas (3). Rejeitar o sagrado em nome de uma ideal recusa da violência, apontando as religiões como bodes expiatórios das convulsões civilizacionais e epocais, é ocultar à consciência uma ferida bem mais difícil: o pensamento que se distancia indefinidamente da origem violenta reaproxima-se facilmente dela (4). A violência que, no presente histórico, se abate sobre as sociedades, não já em surdina, mas em formas onde se amalgamam o inimaginável e o espectacular, impele-nos, em vez do terror fantasmagórico, a pensar o lugar que teve e, de facto, tem a violência nas sociedades humanas. Como resolvem as religiões a violência que as marca? Escreve o teólogo Alfredo Teixeira: tal «só é possível a partir da fixação de um ponto macro-hermenêutico que vai determinar toda a micro-hermenêutica» (5). E que ponto é esse? Em Girard é um processo de desvelamento que decompõe a pretensa unidade do texto, reconstruindo um cânone dentro do cânone. Os textos, também aqueles sagrados, são plurais. Configuram-se como redes múltiplas de sentidos que jogam entre si, não como universos unidimensionais. O exercício interpretativo deve “apreciar o plural de que o texto é feito” (6). O texto é textum : têxtil, textura, trama, tecelagem, tecido. Esta pluralidade é, estamos em crer, o único antídoto que previne contra as leituras fundamentalistas, unívocas e violentas. Michel Certeau fala justamente da violência como uma doença da linguagem , que transforma o texto em mercadoria e mero sintoma num sistema controlado de trocas. O texto é destituído de qualquer potencial transformador, e como, alojado num horizonte de insignificância, já nada diz, deixa assim todo o campo livre e legitimado para a afirmação prepotente e agastada dos vários poderes (7). É o plural do texto que funda e estimula a diversidade hermenêutica, e assim garante, contra todas as presunções absolutistas, o lugar da alteridade. O paradoxo de um texto transformante Em que medida o texto religioso pode escapar ao “adoecer” programado que a violência impõe? Com certeza que a vigilância de instâncias exteriores e reguladoras terá a sua importância (e a história das comunidades crentes demonstra-o bem), mas interessa-nos sublinhar aqui aquele contributo que só uma consciência de que o texto religioso é um texto transformante pode fornecer. Tal como em outros textos, também aqui a linearidade do discurso, da primeira à última palavra, é apenas aparente. Como explica Todorov, a mera relação de factos sucessivos não constitui uma narrativa. Também internamente, a unidade dinâmica que as acções constituem é ordenada em vista da transformação. Há narrativa quando há transformação (8). Transformação de situação, carácter e ideologia, visto a narrativa não respeitar regras de desenvolvimento contínuo: a sua é uma mecânica da inversão, da ruptura e da surpresa. E isto porque só uma linguagem aberta e orgânica pode dizer o indizível, e aceder assim ao campo profundo da experiência religiosa. O objectivo do texto religioso não é representar, como se se tratasse de um tipo de taxidermia. Ele constitui um espectáculo que permanece em grande medida enigmático e cuja realidade não está na sequência natural das acções que o compõem, mas na lógica que expõe e a que se arrisca. A marca impressiva do texto é esse sentido, a sua forma íntima, uma espécie de latência e respiração que ele possui, onde se tornam nítidas emoções, dicções, caminhos. A palavra religiosa é uma palavra que aspira impacientemente à categoria de não-palavra, ou não-apenas-palavra. Essa abertura é igualmente um modo de contornar a contingência do dispositivo verbal e das suas reduções positivistas. Penhorada que está ao silêncio, àquele “silêncio eterno dos espaços infinitos”, de que Pascal falava, busca o vislumbre. É essencial que as interpretações ecoem esta tensão original, que é a poética do texto religioso. A sua tangibilidade não desfaz, antes sublinha a sua intangibilidade.
A dramática da leitura O estatuto do texto sagrado confirma-o como geneticamente plural: ele junta o elemento histórico com a intencionalidade ampla e descontínua que é necessário perscrutar. O sujeito desta perscrutação é o leitor, elemento requerido, suposto e esperado pelo próprio texto. O acto da leitura é uma espécie de pacto selado entre ambos. Por um lado, o leitor (não um qualquer, mas aquele dotado de competência) activa a mecânica textual, preenchendo os espaços vazios e indeterminados que vão depois permitir compreender o texto. Há uma história do texto que o leitor é chamado a explorar com o auxílio de instrumentos diversificados e complementares. Ele não pode ignorar a proveniência, a cultura, a linguagem, a composição ou a finalidade do texto. Sem esse levantamento dificilmente se pode chegar à compreensão. Mas, por outro lado, compreender é compreender-se. O texto não é apenas uma janela: é um inesperado e fundamental espelho. Revisitando o texto, potenciamos a entrada dentro de nós próprios, num processo de autodecifração. Como explica Paul Ricoeur, «não se trata de impor ao texto a nossa capacidade finita de compreensão, mas de se expor ao texto e de receber dele um eu mais vasto» (9). Isto solicita do leitor uma grande competência em relação ao texto, mas também na direcção de si próprio. Ler estes textos separando-os da sua situação cultural de origem ou ocultando perante ele os nossos desejos é uma ingenuidade, quando não uma perversão.
O único saber no qual podemos ter esperança Se tomarmos assim o texto, talvez não nos soe tão pessimista a provocação de Tzetan Todorov quando diz que, no confronto hermenêutico com o texto, os exegetas foram quase sempre derrotados (10). Ela poderá mesmo ganhar uma quase naturalidade. Pois as diversas aproximações ao texto são caminhos que se abrem e nos permitem aceder a um sentido, ou às margens de um sentido. O texto, porém, continua vivo, imperscrutável, desafiante. As leituras não anulam a sua vitalidade. Num ensaio intitulado Contra a Interpretação (11), Susan Sontag reclamava, em vez da hermenêutica dominante, que empobrece e esvazia o mundo do texto para instaurar, em vez dele, um mundo espectral de significados, o que ela chama uma erótica da leitura , que sirva (amorosamente, para permanecer no âmbito da metáfora) o objecto literário sem se substituir a ele. Há uma espécie de arrogância por parte da interpretação, que reduz e obscurece, quando o mais necessário a uma prática da leitura seria simplesmente aprofundar os nossos sentidos, aprendendo a ver melhor, a sentir melhor, a escutar melhor. Num mundo em que se assiste ao cego confronto de histórias fechadas na sua própria lógica de significação, e em que a preocupação dominante parece ser a veiculação impositiva de modelos, importa repetir o verso de T. S. Eliot: “O saber da humildade/ é o único saber no qual podemos ter esperança”. Informação Complementar Liberdade de expressão e respeito pelo religioso Acontecimentos diversos, num breve tempo, voltam a colocar o Ocidente perante a necessidade de um debate que se julgava resolvido: o da justa articulação de valores como a liberdade de expressão, por um lado, e o respeito pelo religioso, por outro. Na homilia de abertura da Quaresma (01/03/06), o Cardeal Patriarca de Lisboa afirmava: «Apesar do apregoado respeito pelas religiões e pela fé de quem acredita, alguns não hesitam em brincar com o sagrado; chegou-se mesmo a apregoar, em nome da liberdade, o direito à blasfémia.[…] O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade». No espaço de opinião que mantém no Jornal Público (03/03/06), Vasco Pulido Valente manifestava uma opinião diferente. E levantava uma questão para o interior do âmbito religioso, no caso o cristão: «A exegese bíblica é ou não é blasfematória? […] A exegese bíblica acaba sempre por ser blasfematória. A exegese bíblica, mais do que qualquer outra coisa, criou a civilização secular do Ocidente». No debate que se abre, as questões hermenêuticas, em torno aos textos sagrados das três religiões monoteístas, voltam a ganhar preponderância. Quais são as possibilidades e os limites da sua interpretação? Como se inscrevem os textos na construção das várias identidades crentes? E como dialoga a leitura do texto religioso com os parâmetros e valores de uma cultura secular? Seria, de facto importante, que não se ficasse apenas pela delimitação de fronteiras, mas se sondassem caminhos favoráveis ao mútuo conhecimento.
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