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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Violência e pacifismo > [ Violência e religião ] | |||
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Por ironia do destino, com o soçobrar das experiências comunistas e o renascimento do “religioso”, parece reescrever-se a frase célebre introdutória ao Manifesto Comunista (de Marx e Engels) “Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo”, trocando este por essa realidade emergente, o fundamentalismo islâmico. O proletariado transformou-se, as experiências comunistas implodiram e em seu lugar floresce hoje o espírito revolucionário no campo do que era ontem perseguido como “ópio do povo”. A ameaça à ordem estabelecida produz reacções contraditórias. O recurso às armas pelos governos é denunciado nas ruas por manifestações contra a guerra. A condenação da violência indiscriminada encontra pela frente apoio camuflado de quem valoriza a coragem dos revoltosos. Até que ponto, neste contexto, a religião surge como factor determinante, ou como sucedâneo passageiro de uma ideologia ocidental esgotada?
Clarificar os conceitos 1. Pouco mais se pode fazer, nos limites de um artigo desta dimensão, do que enunciar algumas questões a reflectir. A primeira é a da necessária clarificação a operar dos conceitos que usamos; a começar pelo de “religião”. Note-se que o utilizamos para falar de duas dimensões distintas de um mesmo fenómeno. Antes de mais, a pulsão indiferenciada que se observa nos indivíduos e comunidades humanas de integrarem num todo com sentido as múltiplas dimensões da realidade. Depois, e de forma complementar, a estrutura orgânica que a comunidade crente segrega, na qual se conserva, apura e transmite a concretização histórica da sua mundividência. O estudo das religiões mostra que a cada momento a sabedoria e doutrina herdadas se debatem com a irrupção de experiências religiosas selvagens, potencialmente destrutivas, com as quais se têm de medir. Seria demasiado simples introduzir logo um critério universal do género: a verdadeira religião e a violência são incompatíveis. Com efeito, “definir todos os actos de ‘violência sagrada' como, por isso mesmo, não-religiosos é não compreender a religião e subestimar a sua capacidade para subscrever um conflito mortífero nos seus próprios termos ” (R. Scott Appleby — The Ambivalence of the Sacred . Nova Iorque: 2000, p. 30). Os que se lançaram sobre as Torres Gémeas, no 11 de Setembro, deixaram por escrito a sua motivação religiosa e, por muito que se ponha em causa o fundamento objectivo das suas razões na tradição islâmica, não há dúvida de que, para eles, era a vontade de Deus que cumpriam. Isto conduz-nos, então, ao conceito de violência. Deparamo-nos, antes de mais, com um véu que envolve a nossa consciência cultural. Em nome de que princípio havemos de erradicar a conflitualidade da natureza e da condição humana? Filhos de uma tradição judaico-cristã secularizada, oscilamos entre o mito das origens de Rousseau e a visão messiânica de Marx: o “bom selvagem”, em paz com a natureza, que recorre à violência quando esmagado por um sistema impessoal de interesses económicos e políticos; o sonho de uma futura paz universal, superada uma luta de classes mais ou menos violenta. «Há que não hesitar em dar a própria vida para não matar, a fim de sair, assim fazendo, do círculo do assassínio e da morte. É, portanto, literalmente verdadeiro, no seio do confronto dos doubles , que aquele que quer salvar a sua vida a perderá; ser-lhe-á necessário, com efeito, matar o seu irmão e assim morrer no desconhecimento fatal do outro e de si próprio. Aquele que aceita perder a sua vida, preserva-a para a vida eterna, porque é o único que não mata, o único que conhece a plenitude do amor.» (René Girard — Des choses cachées depuis la fondation du monde . Paris: 1978, p. 238) Tributários também do Iluminismo, uma terceira narrativa insinua-se na nossa apreciação do real. A violência seria aqui sintoma de questões por resolver: emoções descontrolas, interesses económicos e sociais desregulados. O campo religioso não é estranho a este ambiente. As grandes tradições desen-volveram “estratégias hermenêuticas que visam identificar o sagrado de forma cada vez mais completa – nalgumas tradições se diria, exclusivamente – com o seu aspecto benevolente e gerador de vida... As vozes alternativas de vingança e retaliação, que continuam a reclamar o estatuto de expressão religiosa autêntica, são gradualmente identificadas como ‘demoníacas'” (Appleby, p. 31). Nem sempre foi assim. E há que perguntar, sem ascender de imediato a uma reflexão ética, até que ponto esta exaltação unilateral da paz terrena, própria de estratos importantes da cultura contemporânea, não traduz uma fuga à realidade? A agressividade, a afirmação contundente da identidade própria, a luta por um espaço vital não farão parte integrante daquilo a que chamamos vida? Quando é que começam ou deixam de ser violência? Quando é que ultrapassam a violência “razoável”? O choro insistente da criança nos seus primeiros anos, que se encontra fora ainda de uma qualificação ética, desliza subtilmente de sintoma a apelo e de apelo a violência, na medida em que o desejo agride com eficácia o bem-estar dos pais. É aqui que intervêm a razão, a ética e a religião. Emergem como instâncias inte-gradoras da realidade, gerindo, com maior ou menor sabedoria, as várias formas de conflito humano em ordem a bens que as transcendam.
Razão, emoção e «conversão» 2. Como a proverbial pedra na origem de uma avalanche, uma citação feita por Bento XVI na universidade de Ratisbona desencadeou uma onda de protestos no mundo muçulmano, culminando, nalguns casos, em actos de violência contra bens e pessoas de cristãos. O texto do papa era essencialmente um apelo, densamente argumentado, em favor de uma reflexão de nível universitário sobre a religião. Sem isso, em seu entender, não haveria verdadeiro diálogo entre culturas. Insurgia-se também contra a violência na expansão da fé, por ser contrária à procura autêntica da verdade. Esta requer o exercício livre da razão, pois a “natureza de Deus é da ordem da razão ( logos )”. Na agitação que se seguiu à palestra, em muitos casos prevaleceu a emoção. A intenção do conferencista, como ele próprio confessou, não foi entendida. Um parágrafo soou a agressão. O discurso era intelectual-mente exigente e o papa parece não ter tido em conta que a crença religiosa não é inteiramente racional. «Ao desenvolver o satyagraha , Gandhi recorreu a conceitos de ordem espiritual e a princípios éticos fundamentais das grandes religiões: a santidade da vida; o ahimsa , condição interior da não-violência, no sentido em que a compreendem as tradições orientais do jainismo, budismo e hinduísmo; o cultivo da interioridade pela prática da oração, da meditação, da experiência do amor divino e do arrepen-dimento; a prática da ascese, disciplina do corpo sem a qual não se alcança o ahimsa ; e o entendimento cristão da construção da paz.» (Appleby, p. 141) Um estudo recente sobre a adesão ao discurso político, referido na Scientific American (p. 20), em Julho de 2006, pode servir-nos de comparação. Michael Shermer escolheu para epígrafe do seu comentário uma citação do filósofo Francis Bacon: “O entendimento humano quando adopta uma opinião... orienta tudo para a apoiar e concordar com ela. E embora haja um maior número de provas em sentido contrário, estas são esquecidas ou desvalorizadas... para que, por esta grande e perniciosa predeterminação, a autoridade das suas primeiras conclusões permaneça inviolável.” ( Novum Organum , 1620). Analisando, com as técnicas da ressonância magnética, os cérebros de intervenientes e eleitores numa campanha eleitoral norte-americana, o estudo confirma a constatação de Bacon. “Não vimos uma activação acrescida das partes do cérebro normalmente utilizadas durante o raciocínio. Vimos, em vez disso, activar-se uma rede de circuitos associados à emoção, incluindo circuitos que se pensa estarem envolvidos na regulação das emoções e circuitos que sabemos estarem envolvidos na resolução de conflitos... No fundo, tudo indica que os partidários giram o caleidoscópio cognitivo até alcançarem as conclusões que pretendem, e beneficiam então de um reforço poderosíssimo, com a eliminação de estados emocionais negativos e a activação de outros de sinal positivo.” Não é só na política que somos vítimas deste « confirmation bias », conclui Shermer. Também no sistema judicial, na gestão das empresas, na vida das instituições religiosas e até mesmo no mundo científico os intervenientes estão sujeitos a pressões que activam esse mecanismo mental. A procura da verdade, portanto, mesmo entendida na sua formulação mais simples como adequação da inteligência ao real, requer processos interiores e exteriores que facilitem o que, no campo religioso, se apelida de “conversão”. E, na gestão da violência, implica cultivar uma atitude propícia a acolher o olhar do outro. Mas as tradições religiosas não são sistemas simples, logicamente estruturados, permeáveis de forma linear a estímulos exógenos. São organismos vivos em constante evolução. A cada momento, a alteração do contexto suscita um debate interno que recapitula, ignora, ou avança em relação a momentos anteriores. Recorrendo sempre às mesmas fontes sagradas, cada geração procura restabelecer um nexo vital entre a sabedoria herdada e as circunstâncias envolventes. E cada religião desenvolveu processos próprios para o fazer, que é obrigada a respeitar sob pena de perder a adesão dos fiéis.
A relevância de mundividências diferentes 3. O modo como, em cada religião, se justifica ou recusa a violência terá que ver, sem dúvida, como apontou Bento XVI em Ratisbona, com a questão metafísica do fundamento último do real, ou do Deus, em que acredita. Mas tem também a ver com modos de proceder e mundividências espirituais que o tempo sedimentou. Vale a pena recordar brevemente como podem ser distintas. Uma perspectiva clássica do hinduísmo, por exemplo, é a do Baghavad Gita , o «Cântico do Senhor». Arjuna, armado para a batalha, hesita antes da refrega. «Porquê esse desânimo, na hora / do perigo?», pergunta Krishna, seu cocheiro e avatara do deus Vishnu. Ao que Arjuna responde que antevê as mortes em combate e o sofrimento que daí advirá. Mas Krishna tranquiliza-o, apelando para uma atitude de «suma indiferença» perante as consequências de uma actuação pautada pela fidelidade ao seu dharma . «Concentra-te somente na acção / e jamais nos frutos: não permitas / que os frutos da acção sejam teu móbil / nem causa de ficares inactivo. / Realiza todos os teus actos, em Yoga [grande disciplina]. / Aos apegos renuncia, ó Dhanandjaya, / e, na perda ou no ganho, permanece sempre o mesmo» (II, 47-48). Diverso é o «princípio de Esperança» que caracteriza as tradições abraâmicas. A história humana destaca-se, nestes casos, das leis inexoráveis da natureza. A liberdade humana e divina podem alterar o curso dos acontecimentos. O esforço espiritual, a missão e até o combate armado podem acelerar o advento de uma paz universal. Para o judaísmo, a violência e a guerra são aspectos inevitáveis, no tempo presente, queridas ou permitidas por Deus. Mesmo o combate para alargar fronteiras em ordem a fortalecer um poder legítimo, é aceitável em determinadas circunstâncias. A paz entre os povos ocorrerá só com o advento do Messias. «Reconhecer que os crentes activamente empenhados na não-violência como um modo de vida constituem uma minoria em cada tradição religiosa sublinha a neces-sidade de identificar estes protagonistas religiosos, assegurar apoio logístico e finan-ceiro para os seus programas formativos, treiná-los nas competências necessárias à resolução de conflitos e integrá-los em iniciativas de construção da paz... [Mas] está demonstrado que os militantes religiosos funcionam com maior eficácia como cons-trutores da paz quando beneficiam de uma certa independência do Estado... Por fim, “ religious peacebuilding ” tem de passar a ser vista não só como competência especializada mas também como uma expressão proeminente de compromisso religioso... especialmente reconhecida e apoiada, talvez através de uma celebração litúrgica ou a entrega de “mandato” pela comunidade» (Appleby, p. 306) As Cruzadas, Francisco de Assis, o intenso debate teológico que acompanhou a conquista da América Latina, as reduções do Paraguay e as polémicas de António Vieira são facetas contraditórias da tradição cristã católica na Europa Ocidental, que continua hoje a professar o princípio da legítima defesa com a sua extensão no conceito de guerra justa. A tradição islâmica, por seu lado, defronta-se com passagens aparentemente con-traditórias do Alcorão no que diz respeito ao recurso ou não à violência na relação com os não crentes. A doutrina tradicional do naskh , pela qual se entende que alguns versículos revelados foram posteriormente ab-rogados por Alá, não resolve a questão que hoje se coloca às comunidades radicadas nas sociedades plurais do Ocidente, uma vez que os versículos mais agressivos são também dos mais tardios. O 11 de Setembro não pode deixar de ser visto, neste contexto, como ataque cirúrgico contra alvos de valor simbólico cuja destruição visava um objectivo religioso: abalar o sistema materialista e idolátrico que representavam.
Satyagraha , resistência não-violenta 4. Os tempos que vivemos não serão mais violentos que no passado. Mudaram as armas, aumentou a população, tornou-se instantânea a comunicação, mas a nobreza e miséria humanas pouco se alteraram em termos globais. Ao nível moral, talvez haja lugar para o poético pessimismo de Qohélet: «Vaidade das vaidades, tudo é vaidade... O que foi, será; o que se fez se tornará a fazer. Nada há de novo debaixo do sol!» (Ecl 1, 2.9). Uma coisa, porém, mudou nos últimos cem anos. O advento da democracia, a globalização e o desenvolvimento exponencial dos meios de comunicação abriram caminho a um novo modo de gerir a conflitualidade humana: a resistência não-violenta. Mais do que o recurso às armas, a resistência não-violenta requer qualidades espirituais de particular clarividência e coragem. Confia que o espírito humano, devidamente interpelado, romperá a tirania dos interesses materiais e ideológicos, e colocado perante a evidência existencial da verdade e da justiça, tornar-se-á um motor de mudança social e política bem mais poderoso que a violência ou o medo. São já numerosos os protagonistas que deram corpo a essa tradição inovadora. Gandhi, Luther King, Nelson Mandela, os movimentos populares na Europa de Leste, a resistência final em Timor, o ayatolah Sistani, no Iraque, provaram aos olhos do mundo a sua eficácia no confronto com a violência institucionalizada. Muito se faz e tem feito, nas últimas décadas, em favor da paz por via da interpo-sição de forças militares, das contribuições financeiras, das negociações políticas, do trabalho capilar de organizações não-governamentais. Mas muito está ainda por fazer para mudar o coração dos violentos e sarar as feridas psicológicas e espirituais das suas vítimas. É toda uma área de sabedoria, património em grande parte das religiões, que o Ocidente tem sido renitente em reconhecer e explorar. Enquanto não o fizer, continuará por algum tempo ainda a contemplar demónios, que em tempos expulsou, no espelho de um outro cujo sagrado lhe é estranho.
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