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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Violência e pacifismo > [ O sagrado, a religião e a violência ] | |||
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1 – A violência contida nas escrituras , livros e ensinamentos sagrados das tradições religiosas (2), a qual justifica os conflitos religiosos por meio de “mandatos divinos”, dando assim uma natureza sagrada e transcendente à violência religiosa e todos os tipos de “guerras santas”; 2 – A perspectiva psicológica que vê a violência legitimada religiosamente como servindo necessidades críticas de psicologia social e funções colectivas (3) e que foi tratada por nomes como S. Freud e R. Girard e que vê uma “discrepância entre as justificações manifestadas da violência religiosa e as realidades latentes subjacentes ao conflito religioso (as quais têm a ver com) vingança, honra e poder”. Este aspecto será tratado no presente texto; 3 – A perspectiva civilizacional que analisa a violência religiosa como uma arma de um grupo religioso, político ou cultural, o qual entende estar física ou existencialmente ameaçado por grupos mais poderosos, apelando assim para o fervor religioso para proteger o que ele pensa ser a sua legítima posição civilizacional e histórica; 4 – A violência apocalíptica estuda a morte, o suicídio e o terrorismo como actos religiosos destinados a fornecer a redenção e a salvação aos indivíduos e às comunidades religiosas (4), transcendendo assim as “limitações do mundo material”; 5 – A violência religiosa na sua relação com a sexualidade e o corpo , trata da autoflagelação e mutilação e do martírio.
A redescoberta do poder da religião Cabe, pois, perguntar porque é que a redescoberta do poder da religião – neste regresso da religião a um mundo contemporâneo que se julgava já não precisar dela, segundo a “teoria da secularização” – se faz de um modo tão violento e sangrento? Muitos interrogam-se sobre se a violência religiosa em geral e o terrorismo religioso em particular (nas suas manifestações modernas e “pós-modernas”), não serão mutações – “aberrações resultantes de uma forma mutante da religião – o fundamentalismo” (Juergensmeyer) – anómalas das grandes tradições religiosas, essas sim pacíficas e convidando ao amor fraterno entre os homens. Outros dirão que a violência e o terrorismo religiosos são apenas o resultado de uma ideologia política extremista que reage contra as condições socioeconómicas opressoras (situando-se na perspectiva positivista da “teoria social”, ou mesmo seguindo a doutrina da “vulgata” marxista da prevalência da “infra-estrutura” sobre a “superestrutura”). De facto, paralelamente aos veementes apelos à paz e à fraternidade e à superação moral do homem, a origem da violência religiosa (pelo menos simbólica) “reside nas próprias raízes da super-estrutura religiosa e do seu imaginário, particularmente nas imagens de morte que estão no cerne das religiões” (5). Assim, a violência existente em muitos textos religiosos é indesmentível e mesmo a história de algumas religiões está semeada de episódios violentos, desde o seu início, incluindo “mandatos divinos de destruição” (6). O regresso em força, no final do século passado e neste começo de século, do religioso – e do espiritual e, também, do mágico –, embora sob novas formas (algumas das quais “efervescentes”), é um fenómeno global que muito dificilmente se poderia prever, há cerca de 30 anos. Após um diagonóstico feito a partir dos anos 60-70, explicitado numa “teoria da secularização” que afirmava que a religião institucional em crise, face à modernidade e ao Estado democrático laico, continuaria a perder a sua posição na “praça pública”, verifica-se um regresso em força do religioso mas agora sob novas formas, por vezes “efervescentes”, naquilo a que hoje se chama uma “des-secularização do mundo” e um “reencantamento do mundo”; a este propósito, é interessante notar o caso de Peter Berger que, após ter defendido a “secularização”, veio agora corrigir a sua posição – não se trata de negar a evidente crise de influência social e política da religião institucional no mundo moderno ocidental, mas de constatar e explicar as novas formas de religiosidade e de espiritualidade que entretanto nasceram e se desenvolveram. Este regresso global do religioso está sendo acompanhado por afirmações e reafirmações identitárias culturais (incluindo algumas “invenções da tradição”) extremamente poderosas. Pode mesmo afirmar-se que o religioso e o cultural são hoje (outra vez), e numa escala global, os principais elos sociais e, portanto, de identidade sociocultural dos grupos e comunidades. A vaga de afirmação violenta por parte das religiões (que começou em meados dos anos 70 com a revolução iraniana), essa “vingança de Deus” (Gilles Keppel) ou esse “aumento global da violência religiosa” (Mark Juergensmeyer), faz parte de um “ressurgimento global da religião e da cultura” (Scott Thomas), o qual, é preciso dizer, não apresenta aspectos exclusivamente violentos, mas também altamente benéficos – o que está mais de acordo com a faceta tolerante e pacífica das religiões –, como a participação de religiões e movimentos religiosos em acções ecuménicas em prol da paz (ver, por exemplo o papel da Comunidade de Santo Egídio, do Dalai-Lama, etc.). Deste ressurgimento “efervescente” são manifestações evidentes não só correntes como os fundamentalistas evangélicos do “ born again ”, os pentecostais (ou pentecostalistas) protestantes, os carismáticos católicos e ainda algum do espiritualismo New Age , mas ainda outras manifestações da enorme (e talvez paradoxal, face à “privatização” do religioso) importância do religioso na esfera política, como é o caso das transformações políticas na Polónia, por acção da Igreja Católica (transformações que se estenderam depois aos outros países do lado de lá da então “cortina de ferro”). No entanto, é forçoso constatar, os diversos fundamentalismos, milenarismos, apocaliptismos e revivalismos assumem, em boa parte dos casos, características extremistas e violentas, quer no âmbito dos impropriamente chamados “cultos” e “seitas”, na verdade, novos movimentos religiosos (7) – lembremos apenas os casos do grupo terrorista Verdade Suprema no Japão e a suicida Ordem do Templo Solar na Suíça, em França e no Canadá –, quer no âmbito de franjas no seio das chamadas “grandes religiões” ou “religiões históricas” – por exemplo, os bombistas cristãos contra as clínicas de aborto nos EUA, o terrorismo budista no Sri Lanka, o extremismo dos ultra-ortodoxos judaicos e, está claro, o terrorismo islâmico, incluindo as suas formas recentes de auto--sacrifício suicidário. Isto deve-se àquilo a que Scott Appleby chamou de ambivalência do sagrado (8), a qual existe em todas as “grandes religiões” (e à qual não escapam, surpreendentemente para alguns, nem o hinduísmo, nem o budismo); de facto, como nos diz este autor, “as mais nobres expressões da religião e da espiritualidade, podem também produzir ódio, violência e intolerância” (9), ou (diremos nós) não fossem elas expressões da cultura humana.
A violência do sagrado René Girard, o autor de La Violence et le Sacré e de Le Bouc Émissaire , antropólogo filosófico, mas não etnológico (apesar dos elogios de antropólogos como Victor Turner, num artigo, de Lucien Scubla, no seu livro Lire Lévi-Strauss e ainda das interessantes referências incluídas no livro de texto de Fiona Bowie, The Anthropology of Religion ), elaborou uma doutrina da violência e do sagrado, que identifica a violência como estando na própria origem da religião e da cultura. Para Girard e para os girardianos (de que são exemplo os já citados Mark Juergensmeyer e Scott Thomas), as sociedades promovem a coesão social e a estabilidade política através do “mecanismo da vítima expiatória (e emissária)”, na verdade indivíduos ou grupos sociais que são perseguidos ou marginalizados, carregando toda a culpa dos males da sociedade, particularmente da “violência indiferenciada”, generalizada e caótica, a qual tem origem na chamada “violência mimética”, resultado da rivalidade (mimética) entre indivíduos que desejam o mesmo objecto. Ao canalizar essa violência sobre um indivíduo ou grupo, a sociedade estabelece uma unanimidade violenta que a salva do caos e lhe permite (re)estabelecer a ordem da “violência (recíproca indiferenciada) mimética” ao “mecanismo (purificador e pacificador) da vítima expiatória ou emissária” (“que está na origem da sociedade, da cultura e da religião”). Segundo René Girard – que tem Freud como seu ponto de partida –, a religião é então uma forma de tentar controlar a violência (indiferenciada), através de rituais que comemoram simbolicamente a violência fundadora e o seu “mecanismo da vítima emissária”. A origem da cultura e da religião radicará, segundo Girard, nos rituais culturais e religiosos estabelecidos com o objectivo de simbolizar a violência real que se verificou nessa emissão e expiação da vítima (ou vítimas). Da violência simbólica à violência real A questão a que importa responder, no nosso contexto, é saber quando passa essa violência simbólica a violência real. Parece-nos que, na interacção dialéctica entre a infra-estrutura socioeconómica e a superestrutura ideológico-religiosa, pode residir o esclarecimento desta questão. Por exemplo, no caso dos novos movimentos religiosos, o desfecho dramático dos suicídios da Ordem do Templo Solar ter-se-á verificado pelo “cerco” jurídico-policial que se estabeleceu em torno dos seus dirigentes (devido a infracções diversas em que incorreram), o que fez com que o discurso do grupo se radicalizasse, por iniciativa desses mesmos dirigentes; assim, passou-se de um discurso neotemplarista e rosacruciano com tonalidades New Age a um discurso catastrofista e milenarista (10) em que um gnosticismo radical de desprezo pelo mundo prevaleceu: “Este mundo não nos merece”, “temos de preparar o ‘trânsito' (suicídio) para uma nova dimensão”, etc. (11) Este gnosticismo radical de desvalorização do mundo está também presente na doutrina “islamita” da jahillyia (o “tempo das trevas” de Ibn-Taymiyya, aplicado pelos salafistas de hoje, à modernidade ocidental) que está na base do jihadismo contemporâneo. As teorias girardianas (12) são de grande agrado dos especialistas da violência religiosa em geral e do terrorismo religioso em particular, pois (independentemente da sua veracidade histórica, ou pré-histórica, já que se referem à “horda primordial”) são um verdadeiro modelo para se perceber os mecanismos deste tipo de violência. Assim, René Girard ( La Violence et le Sacré , 1972), com as suas ideias da morte sacralizadora (“por ser morta, é que a vítima é sagrada”), do rito religioso como comemoração simbólica dessa violência fundadora, “visando acalmar a violência e impedi-la de se desencadear”, e com a sua reflexão sobre o sacrifício, os ritos sacrificiais, a violência sacrificial e os ritos sangrentos, e também sobre a realeza sagrada e a morte do Rei (“o rei é sagrado porque vai ser morto”), fornece a chave para a compreensão profunda de muito do que se observa hoje no domínio do terrorismo religioso em que acções terroristas de “martírio” suicida constituem não só um ritual de purificação do jihadista , mas sobretudo um ritual de purificação do mundo – aqui, a antropologia tem uma palavra decisiva a dizer pois ela nos recorda que existem na sociedade humana ritos de sacralização, ritos de regeneração e ritos de expulsão de impurezas (expiação e purificação). Mesmo sem recorrer às doutrinas girardianas, parece evidente que a própria estrutura do sagrado – que, segundo Rudolf Otto ( O Sagrado , 1917), é o “numinoso” e o “totalmente outro”, ao mesmo tempo “tremendo e fascinante” – contém dicotomias mutuamente exclusivas, extremamente intensas, como por exemplo a separação entre o sagrado e o profano assinalada pelo sociólogo Émile Durkheim ( Formes élémentaires de la vie religieuse , 1912), ou a separação entre o puro e o impuro referida pela antropóloga Mary Douglas ( Purity and Danger , 1966). Além disso, o conflito organizado socialmente – quer a caça contra um animal, quer a batalha contra um inimigo – é a forma primordial da actividade humana (cf. Mark Juergensmeyer, ed., Violence and the Sacred in the modern world , 1992, p. 169). Até mesmo teorias mais recentes, agora não de um idealista filosófico como Girard, mas de um materialista dialéctico como Maurice Bloch ( Prey into hunter , 1992/L a Violence du Religieux , 1997), da London School of Economics, referem – e isto é decisivo para a compreensão da violência religiosa – que existe um “núcleo do processo ritual”, uma “estrutura mínima fundamental dos rituais” (“quase-universal”), em muitos dos processos rituais (e não apenas nos de iniciação) que se pode estabelecer em três fases de violência: 1.ª Violência – “a dicotomização interior ao participante”; 2.ª Violência – “é dada ao iniciado a parte transcendente da sua identidade a qual passa a dominar ao longo da sua vida”; 3.ª Violência – a “violência de retorno” (que está na origem da violência religiosa). Trata-se de um processo – simbólico – presente em muitas religiões e em tradições iniciáticas, processo que vai da morte para a vida e que constitui uma “inversão do processo natural” (que como sabemos vai da vida para a morte). É ainda de referir, neste capítulo, uma outra componente teórica no domínio da psicologia da violência religiosa, que consiste na chamada “teoria da dissonância cognitiva”, da autoria do psicólogo social Leon Festinger (13). A base da sua argumentação é a constatação de que todas as religiões têm modelos de sociedade e de comportamento humano baseados nas suas tradições e textos sagrados, que esperam ver realizados ainda neste mundo, por vezes apontando mesmo uma iminência na sua realizaçâo (por exemplo, em milenarismos, messianismos e apocaliptismos diversos, dentro ou fora do cristianismo, em grandes religiões ou “novos movimentos religiosos”). A diferença e o conflito entre as expectativas religiosas e a sua experiência neste mundo são fonte de desilusão, de stress e de “dissonância cognitiva” entre a comunidade religiosa e a sociedade envolvente. Ora, o que acontece quando essas expectativas nunca mais se realizam? Segundo Festinger, há três saídas para a “minoria religiosa cognitiva”: ou se rendem à realidade e à sociedade, ou reinterpretam os ensinamentos (vide o conhecido caso dos adventistas do séc. XIX), ou se envolvem numa militância transformadora, como guerreiros escolhidos por Deus, para transformar a realidade – quase sempre de um modo violento – de modo a realizar as suas expectativas, sonhos e modelos que, de outro modo, pareciam nunca se poderem realizar (é este o caso de algumas “guerras santas”). Antes de terminarmos este capítulo sobre a dimensão psicológica da “lógica da violência religiosa” (M. Juergensmeyer) não queríamos deixar de referir as pertinentes observações realizadas por John Mack (referidas por Selengut) (14), que estudou a psicologia da violência de grupos vitimizados – grupos e movimentos que acreditam eles próprios serem vítimas reais ou potenciais de perseguição, discriminação e humilhação – e cuja dor e sofrimento são de tal dimensão que eles desencadeiam uma canalização da frustração e da raiva sobre os inimigos do grupo, o qual se vê a si próprio como totalmente puro e isento de culpa. Esta “guerra como terapia” vai revitalizar e dar energia ao grupo e aos seus membros, dando-lhes um sentimento de poder ( symbolic empowerment , refere M. Juergensmeyer) e de visibilidade. De facto, a violência – e a linguagem da violência – é experimentada como uma força libertadora que restaura a honra, a dignidade, o orgulho e o respeito por si próprios. 1 - Charles Selengut — Sacred Fury – Understanding Religious Violence . AltaMira Press, N.Y., 2003, p. 10. Licenciado em Química pela Faculdade de Ciências de Lisboa. Criminalista do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária durante 19 anos. Docente convidado da FCSH/UNL, durante 18 anos. Doutorando em Antropologia da Religião.
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