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Onde estou: | Janus 2007> Índice de artigos > Religiões e política mundial > Violência e pacifismo > [ O terrorismo religioso em geral e o islamita em particular ] | |||
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Essa matança “indiscriminada” dos “infiéis” coloca o terrorismo religioso no nível máximo de violência religiosa, já que não se trata apenas de matar –com mandato divino – o inimigo no campo de batalha clássico, mas de atingir todos fora dele, mesmo que sejam civis inocentes, incluindo mulheres e crianças. É importante recordar que este tipo de terrorismo – o “religioso” – é o dominante na última década, como refere Gus Martin (5): “O terrorismo motivado pela religião tornou-se um problema global. O terrorismo religioso (…) cresceu de modo a desafiar a estabilidade política nacional e internacional durante os anos 90 e no começo dos anos 2000. A frequência dos ataques sectários e as suas vítimas cresceram rapidamente durante este período. (…) A violência religiosa continuará a ser um aspecto central do terrorismo do século XXI.(...) Contrariamente às acções relativamente cirúrgicas dos esquerdistas seculares dos anos anteriores, os terroristas religiosos provaram ser particularmente mortíferos (...) Esta espécie de letalidade tornou-se um elemento central do terrorismo religioso internacional”. Veremos adiante outras consequências desta perspectiva, mas saliente-se desde já duas características deste (novo/velho) tipo de terrorismo: a matança indiscriminada de vítimas e a não inocência das vítimas (na sua perspectiva) (6). Os actos de terrorismo religioso são actos, não apenas de destruição, mas também de derramamento de sangue, executados com intensidade e acentuando o carácter extremo e “selvagem” da violência dramática, de modo a desencadear o medo, o desespero, o horror e o pânico (quanto mais generalizado melhor), através da arbitrariedade dos atentados conjugada com a escolha de alvos simbólicos. Trata-se daquilo a que Mark Juergensmeyer denominou de “violência demonstrativa”, que pretende ter, para além da destruição e da morte, um significado simbólico, e impactos secundários e estratégicos. Segundo este mesmo autor, estes “acontecimentos dramáticos” têm de ser analisados em termos de símbolo, de mito e de ritual. Tal como os rituais religiosos públicos que parecem, ou pretendem, imitar (tal como também os teatros de rua), os actos de terrorismo religioso são, para Mark Juergensmeyer, uma performance , isto é, um espectáculo público destinado a ter um enorme impacto emocional nas diversas audiências que pretendem atingir (adversas ou não). Neste sentido, eles são, a mesmo tempo, acontecimentos de performance – pois querem fazer um discurso simbólico – e actos “performativos” – pois querem mudar as coisas. Por seu lado, ainda segundo Juergensmeyer, as vítimas dos actos de terrorismo são tratadas simbolicamente – em virtude da ideologia religiosa legitimadora desses actos – como animais ou seres corruptos e desprezíveis, vítimas expiatórias (cf. R. Girard) pois são arbitrárias e recolhem a unanimidade violenta e reforçam os laços da comunidade que apoia esses actos. Além disso, o “palco” (o lugar), o tempo (determinados aniversários) e, por vezes, o alvo humano, são escolhidos de modo a ter um significado simbólico. O terrorismo é uma “linguagem para ser noticiada”, sem a qual ele perde a sua dimensão, ou a dimensão pretendida, não porque precise de publicidade (para atrair adeptos ou membros, dessa maneira), mas porque necessita de espalhar o choque, o terror e o pânico. Para os terroristas religiosos, eles estão participando numa “guerra cósmica” (M. Juergensmeyer), um confronto escatológico entre as forças do Bem e do Mal que exige o martírio e o sacrifício dos seus actores. A religião é um meio privilegiado como agente de honra – que vinga a dignidade (religiosa, política, social, nacional, económca, etc.) e afirma a identidade, passando simbolicamente da humilhação à afirmação identitária absoluta, sagrada (cf. o “eu sagrado chamânico” de Jacob Pandian, Culture, religion and the sacred self , 1991) – e também de legitimação da resistência, da luta, da guerra – que é “tremenda e fascinante” (R. Otto). Como refere Benjamin Beit-Hallahmi, no seu artigo “The return of martyrdom: Honour, death and Immortality” (in Religious Fundamentalism and Political Extremism , Leonard Weinberg, Ami Pedahzur eds., Frank Cass, London, 2004, pp. 26 e 23), “se a honra é mais importante que a vida, ela inspirará a violência e o auto-sacrifício”, “(isto é) o martírio justificado por um sistema de crenças religioso (assente na) imortalidade (pelo que) “a morte violenta sacralizada atinge (assim) um significado cósmico”. Como e quando é que uma confrontação é caracterizada como uma “guerra cósmica”? 1) quando a luta é concebida como uma defesa da identidade e da dignidade básicas de todo um universo, de toda uma religião (p. ex.: da Nação Islâmica), quer no que diz respeito à vida, quer no que diz respeito à cultura, religiosa e particular. Também queremos referir aqui, para além da dimensão individual, a dimensão psicológica social da “lógica da violência religiosa” (M. Juergensmeyer), para a qual a “guerra como terapia” vai revitalizar e dar energia ao grupo e aos seus membros, dando-lhes um sentimento de poder (o symbolic empowerment , que refere M. Juergensmeyer) e de visibilidade. De facto, a violência – e a linguagem da violência – é experimentada como uma força libertadora que restaura a honra, a dignidade, o orgulho e o respeito por si próprios, não apenas dos indivíduos, mas de todo o grupo social. O fundamentalismo islamita radical Vejamos agora quais os fundamentos doutrinários do terrorismo de raiz islâmica, denominado mais propriamente de “islamita radical”, para não o associar a todo o islão (com os seus 1.300 milhões de crentes) (7), que, no seu fundamento e etimologia, é uma religião de paz ( salam ) – como todas as outras religiões, embora todas elas contenham apelos à violência, como já vimos nos capítulos anteriores. Esta vaga tão intensa, espectacular e dramática de terrorismo que tem atingido não só os países e interesses ocidentais (com particular destaque para o mais poderoso de todos eles, os EUA, mas incluindo também países como a França, Inglaterra, Espanha, etc.), mas também os próprios países islâmicos (de Marrocos à Indonésia) e mesmo não ocidentais e não islâmicos (como a Índia), começou com os atentados de Beirute, em 1983, contra interesses e posições norte-americanas e francesas – realizados pela “pioneira” (no que diz respeito ao terrorismo suicida de raiz religiosa) Hezbollah (8) –, passou pelo atentado contra o metro de Paris (1995), pelo de Bali (2002), pelo de Casablanca (2003), para só citarmos alguns exemplos, até chegar ao “apocalíptico” atentado de 11 de Setembro nos EUA (torres gémeas, que já tinham sido alvo de um atentado em 1993, e Pentágono) e aos mais recentes atentados de Madrid (11 de Março de 2004), de Londres (7 de Julho de 2005) e de Bombaim (12 de Julho de 2006). Trata-se de uma vaga de atentados terroristas que tem duas vertentes: uma assente em agendas locais e realizada por organizações nacionais (embora com solidariedades internacionais), como é o caso da libanesa Hez-bolah ou das palestinianas Hamas e Jihad Islâmica, e outra vertente, de carácter global (embora a elas possam pertencer algumas organizações com agendas também nacionais) (9). Ambos estes tipos de terrorismo são condenáveis (tal como eram condenáveis os terrorismos laicos do IRA, da ETA e da OLP), mas apenas nos debruçaremos aqui sobre o chamado “terrorismo global”, pois a ele está associado uma ideologia de um grande fervor religioso – assente num plano de dominação política global. De facto, este terrorismo religioso de raiz islâmica, melhor dizendo, este terrorismo “islamita” radical, atinge a sua maior expressão destrutiva e mediática com a operacionalidade eficaz da Jihad global desencadeada, federada e inspirada pela “Al Qaeda al Jihad” (“a Base da Jihad”), dirigida por Osama bin Laden e por Al Zawahiri e, embora tendo uma doutrina cultural e religiosa com raízes profundas em certo islão, apresenta algumas inovações. Constituída a partir de 1984, no Afeganistão e “baptizada” com o seu nome actual em 1988, bin Laden teve, para tal, o apoio do seu “primeiro mentor” (10), o palestiniano Abdulah Azzam, lider do ramo palestiniano dos Irmãos Muçulmanos, que era (entre outras razões pelo receio da fitna (11), ou discórdia, no seio do islão) um defensor da jihad tradicional, defensiva – o que lhe terá acarretado a morte, face a opositores que defendiam uma jihad ofensiva. A Jihad (luta) divide-se em jihad maior – uma luta interior, ou seja, o esforço de melhoria espiritual e religiosa do fiel, que a tal é obrigado – e jihad menor – a luta exterior contra um inimigo do islão, que em princípio é apenas defensiva, mas que pode ser também ofensiva, particularmente no caso das versões mais radicais do islamismo. Os textos corânicos são por vezes contraditórios, sustentando as duas posições. Assim, por um lado podemos ler no Corão (Sura II, vers. 186) uma sustentação da primeira perspectiva: “Combatei no caminho de Deus os que vos combatem, mas não sejais os agressores”. Deus não ama os agressores. No entanto, mais à frente podemos encontrar um trecho que parece abrir portas para a segunda perspectiva (ao mesmo tempo que incentiva a conversão dos “idólatras”): “Matai os idólatras em todo o lado onde os encontrardes, fazei-os prisioneiros...; mas se eles se converterem...então deixai-os tranquilos, pois Deus é indulgente e misericordioso” (Sura IX, vers. 5). Uma grande disputa – com alguma “discórdia”, fitna – verificou-se nos últimos decénios entre os que partidários da jihad defensiva (contra os que ocupam “terra do islão”, como os soviéticos no Afeganistão e os israelitas na Palestina) e os da jihad ofensiva (contra os “infiéis”, sejam eles “cruzados” ou “sionistas”), mas também entre os que consideram que a jihad deve ser realizada também contra o “inimigo próximo” (os “apóstatas”, os maus dirigentes dos países árabes e islâmicos e os maus muçulmanos) e os que defendem que ela deve atingir apenas o “inimigo longínquo” (o Ocidente, particularmente os EUA e seus aliados) – de notar que o maior receio da fitna reside precisamente nesta última oposição, devido às consequências divisionistas que pode acarretar a jihad contra o “inimigo próximo” (12). Mas não é só a ideologia do “jihadismo” que fundamenta a acção extremista do “islamismo” radical pois, se é verdade que é ela que fundamenta directamente a sua acção violenta, a verdade é que doutrinas como a da reconstituição do Califado (o império muçulmano, o último dos quais foi o otomano, que terminou nos anos 30 do século XX) e da umma – a comunidade original dos crentes – são indirectamente inspiradoras da violência e da guerra. Mas, nos dias de hoje, existe um ressurgimento de antigas doutrinas islâmicas rigoristas e fundamentalistas, nem todas violentas nas suas manifestações, mas que apresentam um caldo de cultura favorável a todas estas perspectivas e, logo, à violência mais extremista. Trata-se do salafismo, do wahabismo e da doutrina da “nova jahilyia ”. O salafismo – o caminho dos “antepassados” ou “antigos” ( salaf ) – é uma doutrina de revivificação religiosa que se desenvolveu em finais do século XIX e que está intimamente associada a uma das antigas escolas jurídicas do Islão, a mais rigorista, e também ao wahabismo saudita – fundado por Ibn Abd ad Wahab (1703 - 1791) – o qual assenta na absoluta declaração da unicidade divina – de facto, no primeiro dos 5 pilares do Islão, “só há um Deus e esse Deus é Allah, e Maomé o seu Profeta” –, com a recusa do princípio da intercessão dos santos (presente no sufismo, esoterismo místico do islão, e também em algumas formas do islão popular) e a consequente proibição de orar junto aos túmulos dos mesmos. O wahabismo defende um islão estrito e puritano (presente, por exemplo, através da importação cultural saudita, nos talibãs do Afeganistão que proíbem a música e a poesia) que condena como infiéis os muçulmanos que não seguem a sua concepção religiosa e cultural (por exemplo os mongóis) e condenam os xiitas como heréticos. Outra concepção presente no fundamentalismo islamita e que alimenta as suas manifestações mais violentas, é a da “nova jahilyia ”. A jahilyia é o tempo das “trevas”, da “ignorância” e dos “idólatras” que existia no tempo em que o Profeta começou a sua pregação junto dos povos da Arábia que seguiam as antigas religiões – as religiões “pagãs” autóctones. O grande cultor da doutrina da jahilyia foi Ibn Taymyia (1263 - 1328), expoente máximo da escola jurídica sunita mais rigorosa, a do “hanbalismo” que, ainda hoje, serve de modelo aos fundamentalistas islâmicos mais estritos, os quais consideram ser o mundo de hoje uma “nova jahilyia ”, uma nova época de ignorância, de trevas e de idolatria. Assim o afirmaram o indiano Abu Ala Maududi (1903 - 1979) e também o egípcio Sayid Qutb (1906 - 1966), para os quais a “nova barbárie” é, entre outras coisas, uma sociedade em que as leis de Deus (a sharia , que mais do que código legal, é um código de vida) são substituídas pelas leis dos homens, votadas em parlamentos (mais ou menos) democráticos. Haveria aqui lugar para uma discussão acerca do chamado “choque das civilizações” (Samuel Huntington) mas, se ele existe, é apenas entre uma determinada concepção estrita, fundamentalista e, por vezes radical, do islão – que defende a indissolúvel ligação entre a religião e o Estado, rejeitando, portanto, o laicismo ocidental – e a chamada civilização ocidental.1 - Jonathan R. White — Terrorism – 2002 update. 4 th ed., Wadsworth/Thompson, Belmont, CA, USA, 2003, p. 10; as traduções são nossas. Licenciado em Química pela Faculdade de Ciências de Lisboa. Criminalista do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária durante 19 anos. Docente convidado da FCSH/UNL, durante 18 anos. Doutorando em Antropologia da Religião.
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