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- JANUS 2007 -



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O bispo que enxuga as lágrimas entre Israel e Palestina

António Marujo *

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A história começa em 1970, quando Elias Chacour, então um jovem padre católico melquita (1) acabado de ordenar, é enviado pelo seu bispo para a aldeia de Ibillin, no norte de Israel, próximo de Haifa. Vivem na aldeia cerca de 8.500 habitantes. A nomeação de Chacour era por um mês, por ali ficou desde então. “Mais por perseverança do que por sucesso”, dizia ele em entrevista a Peter Rashkin, na obra “ Voices of Israel and Palestine ”: http://www.voicesofisrael.com

Em 1982, Elias Chacour sentiu “a responsabilidade de construir uma escola” na aldeia. O apelo, confessava num depoimento telefónico para este trabalho, surgiu por ver as crianças palestinianas na rua, sem frequentarem o sistema de ensino. Mesmo sem licenças, começou a construção. Duas décadas e meia depois, a pequena escola deu lugar às Instituições Educacionais Mar Elias, onde estudam 5.000 pessoas (cerca de 4.500 alunos), entre muçulmanos, judeus israelitas, drusos e árabes palestinianos cristãos de diversas denominações. No meio do conflito, “a maneira de fazer a paz é as pessoas aprenderem a viver em conjunto”, justifica Elias Chacour.

A escola ensina em árabe, inglês e hebraico, desde o pré-primário à universidade. Esta, criada em 2003, tem mais de uma centena de alunos e é a primeira universidade muçulmana, judia e cristã (a ordem é arbitrária, diz Chacour) de todo o Médio Oriente. Tem o objectivo de promover as relações israelo-árabes.

Chacour assume em si mesmo essa múltipla condição de palestiniano, cristão melquita, cidadão israelita – o primeiro, aliás, a ser eleito bispo católico (escolhido pelo sínodo da sua Igreja, em Fevereiro de 2006). E essa é a outra parte da história. O mais novo de cinco irmãos e uma irmã, Elias Chacour nasce em 29 de Novembro de 1939 em Bar-am, no seio de uma família cristã, palestiniana e árabe. A sua aldeia, povoação israelita junto à fronteira com o Líbano, no norte da Galileia, era pobre, maioritariamente cristã.

Em 1951, três anos depois da independência de Israel, os habitantes da aldeia são forçados a sair, por alegadas razões de segurança. Quando regressam, vêem a povoação completamente destruída pelos militares. A sua é apenas uma de 460 aldeias destruídas e cuja população foi deportada. Ao invés de o incitar à revolta e ao ódio, o facto leva-o a decidir trilhar um caminho de pacificação e de luta não-violenta nos conflitos da região.

Ordenado padre em 1965, Elias Chacour irá depois para a Universidade Hebraica de Jerusalém. Contacta com judeus, estuda hebraico, aramaico e sírio, lê a Torá e o Talmude, torna-se o primeiro árabe a obter um grau superior na instituição. Em 1970, organiza, com outras pessoas, uma grande marcha pela paz. Logo a seguir, o “Setembro Negro”, com o massacre dos atletas israelitas em plenos Jogos Olímpicos de Munique, deita por terra esse movimento.

Depois de dois anos em várias cidades da Europa, Chacour regressa a Ibillin, onde acaba por criar a escola. A intuição de Elias Chacour foi olhar para a realidade de violência que o envolvia e perguntar: “Devemos concentrar-nos nos obstáculos que os radicais criam ou ajudar a maioria da população, que é pacífica, a viver pacificamente?” Chacour, que em Fevereiro de 2006 foi eleito arcebispo melquita da Galileia, escolheu a segunda opção. A Mar Elias tornou-se uma experiência de aprendizagem da convivência pacífica no meio do conflito.

A experiência em Ibillin, explica, começou pela verificação de que, apesar de um sistema de ensino israelita aberto também às crianças palestinianas, estas ficam muitas vezes de fora – algumas por não terem dinheiro para pagar os livros e material escolar, outras por viverem em aldeias longe da escola mais próxima sem possibilidades de se deslocarem. Assim foi nascendo a ideia da escola. Mais propriamente, de uma sala de aula para vinte estudantes, o número com que a experiência se iniciou. “A minha ideia era dar possibilidades de educação a todos, para que os jovens, ao mesmo tempo, pudessem aprender a viver em conjunto. Pensei que essa seria uma forma de proclamar os valores cristãos”, dizia Elias Chacour no mesmo depoimento.

O agora bispo Chacour entende que cada pessoa tem uma igual dignidade radicada no facto de ter nascido: “Nasci como bebé, à imagem e semelhança de Deus – nem mais, nem menos. Os judeus também nasceram bebés, à imagem e semelhança de Deus. É bom para eles terem uma pátria e liberdade de expressão, mas não se isso significa que outros sejam desalojados e não tenham liberdade de expressão. Todos somos crianças humanas de Deus e todos cometemos erros. No entanto, também somos chamados por Deus a viver juntos em paz e a partilhar tudo o que Deus nos deu.”

 

O chá dos rabinos e dos “terroristas”

Chacour insiste, nas palavras e nas atitudes, que é possível ter convicções profundas e, ao mesmo tempo, respeitar cada pessoa, pensar de forma diferente do adversário, dialogar com ele e defender acerrimamente um caminho pacífico para acabar com a violência. No livro J'ai foi en nous – Au delà du désespoir (Tenho fé em nós – Para lá do desespero) (2) , conta um episódio em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Shimon Peres, faz uma visita à escola de Ibillin. Peres espanta-se positivamente com o que vê e pergunta a Chacour porque não continua ali, esquecendo a ideia do regresso à aldeia natal. O padre devolve a pergunta: “Perdoe-me se o que vou dizer é um pouco ousado. Mas não se recorda? Vocês deixaram a Palestina há dois mil anos e regressaram para fazer da nossa vida um inferno. Diga-me, senhor Peres, quando vão esquecer que a Palestina é o vosso país?” Shimon Peres, por sua vez, pede desculpa e diz: “Eu mereci essa resposta.” (p. 44)

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Esta opção brilha ainda mais em outro episódio: durante o cerco a Beith Jala (junto a Belém), no Verão de 2001, o exército israelita cerca a cidade e os palestinianos não podem sair. Muitas famílias ficam sem alimentos. O então padre Elias sabe das notícias. Um dia, recebe um grupo de sete rabis judeus e duas mulheres que querem com ele conversar sobre modos de trabalhar pela paz. Chacour diz que não tem “interesse em discutir a paz”, mas precisa “de fazer chegar toneladas de víveres a Beith Jala, onde há pessoas a morrer de fome.” Os rabinos perguntam: “O que o impede? Isso não é proibido.” “Não, mas é caro. Precisamos de dois camiões e cada camião custa setecentos dólares”, responde. Os interlocutores colocam 1.400 dólares sobre a mesa.

Não chega, diz Chacour, pois é preciso, também, passar a fronteira. “Não há fronteira”, respondem os rabis (vivia-se ainda antes da construção do muro entre Israel e a Cisjordânia). Mas o exército israelita pode disparar, avisa o padre. E, abrindo o jogo: “Sobre rabinos não o fará.” Os rabis perguntam quem recebe os víveres. “Os terroristas que vos atiram pedras, jovens palestinianos, virão receber esses alimentos das vossas mãos.”

A incredulidade ainda domina o grupo quando Chacour telefona a Zogbi, um cristão de Belém, partidário da não-violência, pedindo-lhe que arranje vinte jovens para descarregar e distribuir comida. Do lado de lá, após semelhante atitude de desconfiança inicial, fica combinado: “Serão rabis que vos irão entregar a comida.” No dia seguinte, às sete da manhã, à hora combinada, os jovens aparecem de trás de um muro, descarregam os camiões e oferecem de beber. O chá acaba por se prolongar por duas horas e meia.

Dias depois, dois dos rabis encontram-se com Elias Chacour de lágrimas nos olhos. “Tentámos fazer o bem toda a nossa vida, mas o bem que nos fez fazer vale muito mais que aquele que fizemos até ao presente. Estamos convencidos que podemos fazer a paz.”

O episódio serve a Chacour para concluir que judeus e palestinianos são capazes de ser solidários. “Mas quando só falam as armas, o ruído que elas provocam impede que se entendam. Depois vem a morte. É possível caminharmos juntos. Não temos escolha, se escolhermos viver.” (pp. 89-94) No conflito entre Israel e o Hezbollah, em Julho de 2006, Elias Chacour confirma de novo a inutilidade da guerra. Na entrevista telefónica já referida, realizada em Setembro de 2006, o bispo conta que, durante o conflito, dedicou muito tempo a acompanhar pessoas e famílias que, de algum modo, tinham sido atingidas pela guerra – os bombardeamentos do Hezbollah chegaram a Haifa e aos arredores. “Foi muito duro para toda a gente. Vivíamos no medo dos mísseis. Foi uma guerra absurda, injustificável.”

São episódios como este que já fizeram com que o seu nome tivesse sido proposto, por três vezes, para Prémio Nobel da Paz (1986, 1989 e 1994) e que lhe tivessem sido atribuídas várias distinções no âmbito da paz e dos direitos humanos, de instituições budistas japonesas e metodistas, bem como de Itália ou dos Estados Unidos.

 

Violência, ausência de alternativa

A opção de Chacour pela não-violência é evidente. Até porque “a violência não é uma escolha nem uma alternativa, é a ausência de alternativa”. Mesmo assim, arrisca que é preciso ir “mais além da não-violência para aceitar o outro como diferente de nós”. Confessa, por isso, que figuras como o Mahatma Gandhi ou Luther King lhe merecem admiração. “Mas o meu primeiro inspirador é Jesus Cristo, homem da Galileia, meu compatriota.”

A fé de Elias Chacour não é alheia à tremenda realidade que o cerca. Antes se assume como factor decisivo de construção da paz, mesmo no confronto com questões como o problema da terra, um dos nós do conflito que tem em Jerusalém um dos seus epicentros: para os judeus, a Terra Santa foi prometida por Deus e dada ao seu povo. O islão entende que toda a terra tornada muçulmana assim deve permanecer para sempre. Para os cristãos, mesmo se a terra não é uma questão central, o que se vê no Santo Sepulcro – a basílica repartida em várias capelas, cada uma entregue à responsabilidade de uma comunidade ou Igreja – demonstra que as tensões e conflitos de séculos se traduziram na conquista física de um espaço concreto. Ali perto, a mesquita (muçulmana) de Al-Aqsa está construída sobre o Muro do Templo (judaico) de Jerusalém.

Perante a questão da terra, Elias Chacour não hesita: “Não há terra santa para mim. Há apenas um povo que é necessário santificar. (...) Uma terra não é muçulmana nem judaica. Ela não pertence nem ao islão nem ao judaísmo. Mas é ao islão e ao judaísmo que cabe aprender a pertencer a uma certa terra, a viver em conjunto, a partilhar e a ser parceiros.” (pp. 101-103)

Os cristãos não ficam de fora da necessidade de entendimento entre os povos da região. Recordando que os judeus esperam a vinda do Messias, enquanto os cristãos acreditam que ele já veio, afirma: “Trabalhemos juntos para que ele apareça. Assim, ele nos dirá se voltou, se volta ou se vem.” (p. 105)

A propósito do significado do “povo eleito” por Deus, Elias Chacour diz que o conceito deve ser apresentado de forma diferente da tradicional para não ser tomado como um apelo à segregação, mas antes como uma responsabilidade especial. Deus, diz, não tem verdadeiros eleitos: “Nem judeus, nem muçulmanos nem cristãos, mas todo o homem e toda a mulher criados à imagem e semelhança de Deus. (...) Não há condenados nem salvos. Não é senão depois de ter vivido que sabemos se merecemos ser salvos ou não. (...) Digo aos judeus para continuarem judeus e aos muçulmanos que continuem muçulmanos.” (pp. 110-113) E, a propósito das divisões entre os cristãos, afirma que Deus não é cristão e pergunta: se o fosse, seria católico, melquita, protestante ou reformado? (p. 127)

 

Seis meses e James Baker para um ginásio

Elias Chacour insiste, permanentemente, na educação das mentalidades, como na história da mãe palestiniana que chama o seu filho, a brincar com uma criança judia: “Vem cá, porque brincas tu com um judeu?” A resposta da criança desarma: “Não é um judeu, é um menino.” Chacour reflecte: “Antes de ser judeu, muçulmano, palestiniano, somos homens e mulheres. Não podemos esquecer a nossa identidade comum. O problema é que nós não educamos as nossas crianças a tornar-se homens ou mulheres, mas a tornar-se sionistas, de direita ou de esquerda, ou palestinianos fanáticos, reivindicando um direito através do ódio. Deixemos de nos atirarmos pedras e de utilizar espingardas, e demo-nos a mão...” (p. 87)

Homem de acção, o conflito não o tem tolhido. Os seus gestos têm, por detrás, princípios claros: “A paz não precisa de precisa de quem a contemple, precisa de actores, pessoas que tenham vontade de sujar as mãos, de se erguer e fazer alguma coisa. O mesmo é válido para a justiça.” A própria construção da escola não esteve isenta de lutas. Para construir um ginásio desportivo, Elias Chacour esperou seis anos pela licença. Iniciou a edificação ilegalmente, construindo durante a noite, mas a obra foi embargada duas vezes. Chacour deslocou-se então aos Estados Unidos, para falar com o então secretário de Estado James Baker, cuja mulher tinha conhecido tempos antes. Foi o próprio Baker que se deslocou pouco tempo depois a Israel, entregando uma carta pessoal ao Governo de Israel. A licença foi conseguida.

O seu objectivo é claro: “Não encontrarei repouso enquanto as crianças judias e palestinianas não se olharem nos olhos dizendo uma às outras: Vós sois a mais bela criação de Deus.” Em hebraico, recorda, a palavra “guerra” significa “aproximar-se demasiado um do outro”, a ponto de não se conseguir respirar. A paz significa “afastar-se um pouco, para que eu possa respirar” (p. 83).

Um dia, disse-lhe o anterior bispo: “Padre Chacour, esta escola é o projecto da sua vida.” Ele respondeu: “Não. O projecto da minha vida é antes de tudo Jesus Cristo, que eu vejo através de cada muçulmano, cada palestiniano, cada cristão palestiniano, cada judeu israelita que sou levado a encontrar. O projecto da minha vida é conquistar os seus corações, de acrescentar um sorriso aos seus rostos e de enxugar ao menos uma das suas lágrimas. Esse é o projecto da minha vida.”

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Informação Complementar

Cristãos emrisco de desaparecer da Terra Santa e Médio Oriente

“A presença cristã na Terra Santa, berço do cristianismo, está em risco de desaparecer.” O aviso é dado pela organização internacional Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que depende do Vaticano e elabora anualmente o relatório Liberdade Religiosa no Mundo .

Nas últimas quatro décadas, diz a AIS, a percentagem de cristãos na Terra Santa (Israel e Palestina) baixou de vinte para dois por cento: há agora 150.000 cristãos numa população de nove milhões. Mais de 230 mil cristãos árabes deixaram a Terra Santa desde 1948 – mais de um terço fê-lo depois de 1967. Em Belém, por exemplo, a população era oitenta por cento cristã até à fundação do Estado de Israel; agora, está reduzida a vinte por cento.

A tendência é comum a todo o Médio Oriente (onde se prevê que os actuais doze milhões de cristãos passem para metade, em 2020). E tem duas causas fundamentais: as famílias cristãs (tal como as famílias judaicas de Israel) têm geralmente menos filhos que as muçulmanas; os cristãos emigram mais, porque são excluídos ou perseguidos em sociedades onde constituem uma minoria. O bispo melquita Elias Chacour define assim a exclusão a que os cristãos estão sujeitos na Terra Santa: eles “são árabes mas não muçulmanos, católicos mas não de rito latino, orientais mas não ortodoxos, e cidadãos israelitas mas não judeus”.

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1 - A Igreja Católica Melquita surge após o Concílio de Calcedónia (451), que define Cristo como uma pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. O imperador bizantino adopta essa definição, ao contrário de outros grupos de cristãos do Oriente (arménios, coptas, sírios), que a recusam. Malká, em sírio, significa imperador ou rei – daí, melquitas. No século X, os melquitas adoptam o rito bizantino e, como língua de culto, o árabe. A partir do século XVI, há várias aproximações de igrejas melquitas ao papado, com quem entram em plena comunhão.
2 - Elias Chacour tem outros dois livros publicados – Blood Brothers (Irmãos de sangue), de 1982, e We Belong to the Land: The Story of a Palestinian Israeli Who Lives for Peace and Reconciliation (Pertencemos à terra: a história de um israelita palestiniano que vive para a paz e a reconciliação), de 1990; as páginas referidas no texto são de J'ai Foi en Nous.

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* António Marujo

Licenciado em Comunicação Social pelo ISCSP. Jornalista do PÚBLICO desde a fundação do jornal (1989), onde se ocupa da informação religiosa. Colaborou com os programas “Toda a Gente é Pessoa” (RDP-Antena 1) e “Setenta Vezes Sete” (RTP). Foi redactor da revista “Cáritas”, do “Expresso” e do “Diário de Lisboa”. Co-autor do documentário “Senhora de Maio”. Vencedor (1995 e 2005) do Prémio Europeu de Jornalismo Religioso na Imprensa Não Confessional, da Conferência das Igrejas Europeias e Fundação Templeton. Tem quatro livros publicados, um deles em co-autoria e outro como coordenador.

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