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- JANUS 2007 -



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Desmond Tutu: sarar as feridas do apartheid

Silas Oliveira *

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Filho de um professor primário, Desmond Tutu desejava ser médico mas, por falta de recursos, começou por seguir a carreira do pai, tendo estudado no Bantu Normal College de Pretória e depois na Universidade da África do Sul. Em 1958, quando o governo do apartheid impôs um sistema de educação inferior para os africanos, ele deixou o seu lugar no liceu de Krugersdorp e aceitou o convite da Igreja Anglicana para estudar teologia. Depois de ordenado, voltou a estudar, desta vez em Londres, onde obteve o seu grau de Master of Theology . Em 1975 era o primeiro africano no cargo de deão da catedral de Joanesburgo, e no ano seguinte bispo do Lesotho.

Em 1984 recebeu o Prémio Nobel da Paz em reconhecimento pela “coragem e heroísmo reveladas pelos sul-africanos negros na utilização de métodos pacíficos de luta contra o apartheid .” Em 1986 foi eleito arcebispo da Cidade do Cabo, portanto primaz da Igreja Anglicana da África do Sul. Ao deixar o cargo, no final de 1995, o presidente Nelson Mandela convidou-o para presidir à comissão que se propunha sarar as feridas de várias décadas de regime de apartheid .

Desmond Tutu descreve o caminho que levou à comissão Verdade e Reconciliação, as questões que ela suscitou e os resultados obtidos, em No Future without Forgiveness (1). Em Maio de 1994, com Nelson Mandela eleito Presidente da República, e no meio de um processo de democratização mal consolidado, havia dois modos extremos possíveis de lidar com o passado recente: um julgamento do tipo “Nuremberga”, ou uma “amnésia nacional”. Ambos foram seriamente avaliados, mas a escolha recaiu sobre uma terceira via, não experimentada em qualquer situação semelhante.

 

A amnistia em troca da verdade

A necessidade de uma “estabilização negociada” com a comunidade branca, que não se pretendia expulsar do país, mas que continuava a ter os meios de provocar um banho de sangue, foi o motivo determinante. Desmond Tutu explica que não havia condições para impor uma “justiça dos vencedores”, que parece fácil de exercer numa nação derrotada por um exército estrangeiro: “tínhamos de viver uns com os outros”.

Mesmo o argumento jurídico ia neste sentido: o aparelho judicial dominante nunca seria cooperante, o aparelho policial e as forças armadas muito menos; a evidência de muitos dos crimes estava literalmente sepultada e protegida pelo segredo dos “esquadrões da morte” locais. O processo resultaria caríssimo e pouco eficaz. Para equilibrar exigências contraditórias de justiça, responsabilidade, estabilidade, paz e reconciliação, foi preciso renunciar a uma “justiça retributiva”.

A alternativa de uma “amnistia geral” era desejada pelos responsáveis por todo o regime do apartheid , que citavam o exemplo do Chile pós-Pinochet. Desmond Tutu contesta a sua justeza e explica as diferenças. Também no Chile se propôs uma Comissão para a Verdade, mas deliberando à porta fechada e sem poderes de exame do ditador e do seu governo. “O general Pinochet, os seus oficiais e governo, perdoaram-se a si próprios: só eles mesmos sabiam exactamente o que tinham feito; eles eram acusados, acusadores e juízes do seu próprio caso. ( op . cit ., pág. 30).

Uma amnistia cega e universal seria, no fundo, uma amnésia decretada. Desmond Tutu, como Nelson Mandela e os proponentes da comissão Verdade e Reconciliação, tinham consciência de que o passado não se deixa apagar (2) e defenderam um processo em que as vítimas pudessem exprimir a sua verdade “curativa” ( healing truth ) – em termos que não seriam possíveis numa audiência de tribunal – e em que, ao mesmo tempo, os carrascos pudessem candidatar-se a uma amnistia em troca da verdade, comprometendo-se a uma confissão total do crime pelo qual solicitavam essa mesma amnistia.

Foi feita uma campanha de esclarecimento sobre a comissão, com anúncios que diziam: “A Verdade Magoa, mas o Silêncio Mata”. O apartheid ficou claramente definido como um crime contra a Humanidade. Quatro formas de crime foram consideradas “violações grosseiras dos direitos humanos”: o assassínio (premeditado ou não), sequestro, tortura e “maus tratos graves” ( severe ill-treatment ). Estes crimes foram objecto das sessões da comissão, mesmo quando cometidos por africanos contra africanos.

 

Ubuntu e reconciliação

Desmond Tutu defende que o caminho seguido permitiu substituir, com vantagem, uma “justiça retributiva” pela “justiça restauradora”, “que era característica da jurisprudência africana tradicional.” Afirma também que esta tem o seu fundamento filosófico num conceito africano que se designa por ubuntu nas línguas do grupo Nguni, ou botho nas línguas Sotho. Dizer de alguém que tem ubuntu é o mais elevado cumprimento possível. Significa que se trata de uma pessoa com um sentido especial de generosidade, afecto e partilha. Em última instância, é uma visão da vida ( Weltanschaung ) segundo a qual a humanidade de cada pessoa está inextricavelmente entretecida com a de todas as outras. Ubuntu significa que, num sentido real, mesmo os apoiantes do apartheid eram vítimas do sistema vicioso que implementaram e que defendiam com tanto entusiasmo. “A humanidade de quem perpetrava as atrocidades do apartheid ficava envolvida e ligada à da sua vítima, gostasse disso ou não. No processo de desumanização do outro, de lhe causar incontável mal e sofrimento, o causador estava a ser, também ele, inexoravelmente desumanizado.” ( op . cit ., pág. 35).

Noutro dos seus livros, Desmond Tutu liga este conceito à mensagem cristã:

“Por vezes chocávamos, na África do Sul, quando dizíamos que o presidente do Estado do apartheid e eu, gostássemos ou não, éramos irmãos. E que eu tinha de desejar e rezar pelo seu bem. Jesus disse: ‘Se eu ascender levarei todos comigo' (3). Não alguns, mas todos. É radical o que Jesus diz, que somos todos membros de uma família. Fazemos parte dela. Portanto, Arafat e Sharon pertencem-lhe juntos. Sim, George Bush e Osama bin Laden pertencem os dois a ela. Deus diz ‘Todos, todos são meus filhos'. É chocante. É radical.” (4)

Desmond Tutu descreve vários casos em que a sorte de militantes anti- apartheid dados como “desaparecidos” só foi esclarecida na comissão. Agentes da polícia culpados de execuções extra-judiciais puderam assim, indirectamente, entregar à família das vítimas a única coisa que algumas pediam, ao fim de tantos anos: os restos mortais, para lhes dar um “funeral decente”. “Na comissão Verdade e Reconciliação, o perpetrador tinha de fazer uma revelação completa para se candidatar à amnistia, enquanto em tribunal ele tentava defender a sua inocência mentindo.” ( op . cit ., pág. 188).

Ao mesmo tempo, reconhece as limitações do trabalho feito e lamenta que nem todos tenham aceite a oportunidade que a comissão representava. Muitos agentes da polícia cooperaram, mas não as forças armadas (SADF). Alguns oficiais acabaram por aparecer mas só por serem mencionados pelos polícias que tinham feito operações conjuntas com eles. O ex-presidente Pieter Botha recusou-se sempre a comparecer perante a comissão. “Há muita verdade que a nação precisa ainda de conhecer, para que o nosso processo de cura e reconciliação seja durável e efectivo.” ( op . cit ., pág. 189).

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1 - No Future without Forgiveness . Rider, Random House, London, 1999.
2 - Este livro abre com a citação famosa do filósofo George Santayana, afixada à entrada do campo de concentração de Dachau: “Aqueles que não conseguem recordar o passado são condenados a repeti-lo.”
3 - Ev. S. João, 12:32.
4 - Deus Tem um Sonho , Guevel Edições, Lisboa, 2004.

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* Silas Oliveira

Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Jornalista e Assessor em órgãos de soberania.

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